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3.4 A CIDADE VIVIDA NA PRAÇA

3.4.3 Comer e se divertir na praça

“[...] os tempos de indigência eram sucedidos por épocas mais alegres [...]. [...] a nova abundância fazia a cidade extravasar [...]. É hora de concluir o século dos ratos e iniciar o das andorinhas [...]”. Italo Calvino

Figuras 16, 17 e 18 – Pessoas comem e se divertem durante as edições da FenaMassa montada na Praça Garibaldi

Fonte: www.fenamassa.com.br.95

Mais uma vez voltamos à Idade Média e à obra de Bruegel para fazermos referência à Cidade Vivida na Praça, espaço em que os moradores e os visitantes de Antônio Prado se entregam à gula na FenaMassa. Assim como na cidade medieval e nas obras O país da abundância, também conhecida sob o título O país da cocagna, pintada em 1567, e Dança de camponeses e A ceia de casamento, produzidas em 1568, pelo artista flamengo Bruegel, na festa da massa, a música, a dança, o movimento e o riso são incorporados ao ato de comer na praça tomada por pessoas.

Na pintura O país da abundância, Bruegel sugere que para se chegar a esse país é preciso passar pela montanha. Nesse reino utópico, os gulosos encontram satisfação para seus apetites nas ocupações diárias na terra que tudo dá aos seus habitantes. Contudo, por trás da fantasia de um país lendário em que o alimento se encontra em grande quantidade, existe a dolorosa experiência da fome, fenômeno semelhante vivido pelos imigrantes italianos que migraram para os países da América entre 1870 e 1920, na esperança de escaparem da miséria e da insegurança reinantes em suas terras de origem.

Figura 19 – O país da cocanha

Fonte: Google imagens.96

Bruegel mantém um vínculo sólido entre o cômico e a vida dos aldeões e camponeses, pois “o velho, ele próprio um habitante da cidade e simpatizante dos humanistas, sugere que se supunha que as pinturas fossem vistas como contribuições a uma tradição de sátira humana” (ALPERS, 1977 apud BURKE, 2017, p. 205). Assim como em A dança de camponeses, em que o pintor coloca uma multidão de pessoas em movimento, inclusive com a presença de uma criança em primeiro plano, num vigoroso cromatismo, em A ceia de casamento, o artista realça a existência corporal do homem e mostra que o organismo tem necessidade de comida, destacando também a criança que lambe o dedo sentada no chão. A partir da análise da criança, Peter Burke (2017) chama atenção dizendo que pode, à primeira vista, parecer um exemplo de arte de descrever, mas alguns pequenos detalhes sugerem uma intenção cômica e satírica do pintor. Argumenta o historiador francês:

Há a criança em primeiro plano, por exemplo, usando um chapéu muito grande para ela; o homem no extremo da mesa entrerrando a cabeça no jarro; e talvez o homem que carrega os pratos com uma colher no chapéu (provavelmente um sinal de vulgaridade no século XVI, como o lápis atrás da orelha na Grã-Bretanha, há uma geração) (BURKE, 2017, p. 205).

Peter Burke observa que essa tradição cômica foi levada até o século XVII nas imagens de feiras de camponeses e de camponeses dançando em estalagens, bebendo, vomitando e brigando.

96 Disponível em:

<https://www.google.com.br/search?q=O+pa%C3%ADs+da+Cocanha&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0 ahUKEwizubqn04jZAhXHUJAKHTqNC1gQ_AUICygC&biw=1366&bih=637#imgrc=m0b106Ajlx1YqM:>. Acesso em: 08 set. 2016.

Em A ceia de casamento, aspectos da vida camponesa são representados de forma cômica e satírica, evidenciando o banquete composto por pães e sopas, que constituíam os principais pratos da época. A parede de palha, os ramalhetes cruzados na parede e o ancinho pendurado talvez sejam elementos colocados pelo artista para reforçar a necessidade do trabalho dos camponeses para tirar da terra o alimento e levá-lo à mesa. Na obra, percebe-se que os alimentos são passados por entre as mesas e levados à boca.

Figura 20 – Dança de camponeses

Fonte: Google imagens.97

Figura 21 –A ceia de casamento

Foto: Google imagens.98

97 Disponível em:

<https://www.google.com.br/search?q=Dan%C3%A7a+de+camponeses&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved= 0ahUKEwjV44eB1YjZAhUDgpAKHWoKCscQ_AUICygC&biw=1366&bih=637#imgrc=J6-

vvM_yQP8GHM:>. Acesso em: 08 set. 2016.

98 Disponível em:

<https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=637&tbm=isch&sa=1&ei=0xt1WovkN4OnwgTk5bX4Dg &q=A+ceia+de+casamento+Pieter+Bruegel&oq=A+ceia+de+casamento+Pieter+Bruegel&gs_l=psy-

ab.3...6293.15509.0.15867.19.17.2.0.0.0.188.2461.0j16.16.0....0...1c.1.64.psy- ab..1.0.0....0.mzxsxBhBYqM#imgrc=y2zbIBzNS7hGOM:>. Acesso em: 08 set. 2016.

A arte e o cinema incluem uma lista de obras que têm como temas a mesa, o ato de reunir-se ao redor dela e alimentar-se. Colocar a mesa para o jantar, reunir-se à mesa para o banquete de casamento, para a festa de aniversário, para a liturgia da comunhão, na Igreja Católica, envolve dois atos sagrados: comer e rezar. Entre alguns filmes, estão: A festa de Babette, dirigido por Gabriel Axel (1987), Como água para chocolate, dirigido por Alfonso Arau (1992) e Comer, rezar, amar, dirigido Ryan Murphy (2010). Neles, os roteiros são impregnados de ensinamentos, compartilhamentos de pratos e conversas despertados por prazeres gastronômicos que envolvem todos os sentidos e são responsáveis por mudanças de posturas morais, novas escolhas e novos apetites pela vida.

João Francisco Duarte Jr. (2003) afirma que o ato de comer e o modo como nos relacionamos com a comida, desde a forma como a preparamos, quando, onde e com quem comemos, contrapõe-se ao ato de comer no espírito europeu, em que a refeição é um momento da pausa e em que o prazer sensório das refeições continua sagrado, resistindo à velocidade frenética dos nossos dias. As refeições, entre um compromisso e outro, sejam fast- foods, em que ingerimos, apressadamente, alimentos produzidos em série, sejam pratos sofisticados de grandes restaurantes que se reservam para os almoços de negócios, afiguram- se tão somente uma desculpa para ininterrupção dos lucros e uma mecânica reposição de energias, como se apenas estivéssemos abastecendo um veículo em um posto de gasolina. Visto assim, não há um tempo e um espaço para a ritualização, não há pausa para almoço, mas somente continuidades.

Ao abordar a mais elementar atividade humana, o autor também traz a figura do boia- fria e a sua relação com o ato de comer, quando ele assim o descreve:

[...] um trabalhador rural cujas péssimas condições no campo o obrigam a ingerir, fria, uma paupérrima refeição trazida de casa numa tosca marmita, refeição essa que lhe empresta a pópria designação. O drama de sua condição de vida, aliás, serviu de inspiração aos compositores João Bosco e Aldir Blanc, que a tais trabalhadores dedicaram a bela marcha: “Rancho Goiabada”, na qual o bóia-fria sonha, entre outras coisas, com uma boa porção de goiabada cascão com queijo, essa sobremesa tipicamente brasileira tornada ali um símbolo “estético-afetivo-alimentar” de um paraíso perdido (ou nunca conhecido), no qual a comida e o ser humano reverberam e brilham em toda a sua dignidade (DUARTE JR., 2003, p. 93-94).

Seguido o pensamento do autor, podemos estabelecer uma analogia entre o imigrante italiano que colonizou a Região Nordeste do estado do Rio Grande do Sul e o boia-fria de hoje e o camponês que remete à Idade Média de Bruegel, pois os três conhecem a escassez da comida e os sacrifícios para colocá-la na mesa. Assim, o ato de comer em momentos coletivos é um ritual de celebração regado pelo prazer sensorial despertado pela comida (suas cores, aromas, texturas e gosto), fruto de muito trabalho e de muitas privações. Comer na Praça

Garibaldi, durante a FenaMassa, significa resgatar as práticas do passado na representação dessas práticas no presente da cidade. A massa, personagem principal do espetáculo, é símbolo da identidade de uma cidade e, por conseguinte, de uma região, já que, como argumenta Pozenato (2003), Antônio Prado deve ser preservada porque é monumento da região. A FenaMassa é um elemento cultural que concretiza a premissa de Marcelo da Silva Etcheverria (2008), o qual conjectura que o ato de tombamento não preservou só a arquitetura em madeira, mas as experiências e as expectativas das pessoas daquela época. O autor, que afirma que não podemos nos esquecer de que nós somos o futuro daquele passado, acrescenta:

A comunidade preserva esse patrimônio quando mantém em funcionamento os lugares de encontro, de culto religioso, de festas; ou quando as tradições permanecem vivas na produção de bens específicos, como peças de artesanato, de uso diário, de indústria caseira. Como exemplos disso, há o modo de se construir uma casa e os materiais usados em sua construção ou, ainda, o modo de preparo de determinados alimentos (a sopa imperial), típicos de uma área (ETCHEVERRIA, 2008, p. 173-174).

Antônio Prado preserva o lugar do encontro na Praça Garibaldi, a mesma praça do tombamento, dos cultos, das tradições, do artesanato e da massa. Entre tantas cidades dentro de uma mesma cidade, entre tantas cidades possíveis, Antônio Prado é a Cidade Vivida na Praça Garibaldi. A praça é, em suma, o lugar da vida coletiva em Antônio Prado.

4 AS CIDADES DE ANTÔNIO PRADO NAS LEITURAS DE NEUSA WELTER