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O PODER LEGISLATIVO E A DISPUTA PELA HEGEMONIA DO SETOR AUDIOVISUAL

3.4. Proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual

3.4.2 A Comissão de Educação debate a Ancina

Em setembro, a CE, atendendo a um requerimento do senador Osmar Dias, realizou audiência pública para discutir o anteprojeto do Ministério da Cultura para a criação da Ancinav.

Primeiro convidado a falar, o ministro Gilberto Gil, aprovou a iniciativa do Senado: “Trata-se de uma nova etapa do amplo processo de diálogo que marca a trajetória deste amplo projeto desde sua gênese”. Gil declarou que a decisão de restabelecer o diálogo sobre a proposta de criação de uma agência reguladora para o conjunto do audiovisual resultou de conversas com diversas entidades do cinema brasileiro, assim como com as produtoras independentes de televisão e as empresas de comunicação: “Outras tantas [entidades] apontaram a necessidade de um novo governo recuperar a atualizar a proposta da Ancinav”.

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Gil ressaltou que a proposta de criação da Ancinav não era fruto de “[...] nenhum tipo de voluntarismo governamental”, mas que partia do reconhecimento de “[...] um velho desejo, uma velha demanda de partes significativas, eu diria substanciais do setor”. O ministro lembrou que esse processo havia sido iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso, durante o Congresso Brasileiro de Cinema de Porto Alegre. Para justificar a proposta da Ancinav, Gil recuperou o processo de criação da Ancine:

A idéia encontrou eco na Casa Civil do Ministro Pedro Parente que formou um grupo de especialistas, incluindo representantes do cinema e da televisão, para elaborar um anteprojeto [...] que resultou na medida provisória da Ancine. Era para ser Ancinav, englobando o conjunto das atividades econômicas de produção e de difusão de conteúdos audiovisuais, mas na última hora ficou Ancine mesmo, ou seja, apenas o cinema.

O discurso do ministro sobre a alteração abrupta de rota durante a elaboração da Ancine se equipara às outras tantas narrativas que também reportam essa alteração brusca. Futuras investigações poderão avaliar se o fato ocorreu da forma como é narrado, ou seja, se houve um momento em o governo realmente pretendia editar uma medida provisória promovendo a associação entre o cinema e a televisão, e, mais ainda, criando um órgão regulador para a atividade – algo que já havia sido tentado durante a criação da Anatel, sem sucesso.

Para Gil, a criação de uma agência reguladora para o audiovisual seria “uma exigência do nosso tempo”. O ministro afirmou que coube à Secretaria do Audiovisual a elaboração do anteprojeto, que teria sido baseado em quatro pilares: a) diálogo permanente com o setor; b) pesquisa sobre a legislação de outros países democráticos; c) análise rigorosa sobre a legislação brasileira; e d) estudo sobre a economia do audiovisual no Brasil e no mundo. “Ao longo de 14 meses, uma equipe de técnicos e dirigentes do Ministério da Cultura deu tratos à bola para cumprir a orientação.”

Gil defendeu a transparência do processo de elaboração da proposta: “Todo o setor sabia que o governo estava elaborando um anteprojeto e que havia espaço para contribuições. E mais, que o anteprojeto, uma vez concluído, seria enviado ao Congresso Nacional e aqui estamos nós.” Outro ponto destacado pelo ministro foi a participação do Conselho Superior do Cinema na análise da proposta, bem como a possibilidade de participação da sociedade por meio da consulta pública.

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A insistência de Gil em afirmar o processo democrático de construção da proposta se deveu à virulência das críticas:

Quando o anteprojeto foi divulgado houve uma incompreensão por parte de algumas pessoas que viram, em cinco ou seis artigos, entre os mais de 100, a possibilidade de uma nova agência vir a intervir sobre a liberdade de expressão e programação. Várias das críticas que foram veiculadas pelos jornais davam conta desse viés intervencionista que teria a proposta.

O ministro demonstrou disposição para a busca do consenso:

Determinei à equipe responsável que identificasse as críticas e incompreensões e fizesse uma limpeza no texto, excluindo ou mudando a redação dos artigos polêmicos. Isso foi feito e acho, sinceramente, que a segunda minuta do anteprojeto ficou ainda melhor, mais clara e mais objetiva.

Sobre a questão da interferência nos conteúdos, tema abordado por alguns senadores, Gil afirmou: “A regulação não vai dizer ao cineasta tal que deve fazer o filme sobre a favela A ou sobre o condomínio B. Não! Vai-lhe garantir que, se fizer o seu filme sobre a favela A ou o condomínio B, vai ter espaço junto com o outro cineasta que vai fazer o filme sobre a Favela C e o condomínio X”.

Ricardo Difini Leite, da Federação Nacional de Empresas Cinematográficas, afirmou que os exibidores “não estão contra a criação da Ancinav”, mas avaliou que a previsão da criação de novas taxas é o “grande problema”. Para Difini, o setor não tem capacidade para destinar parte de seus recursos para a Ancinav: “O exibidor vai perder sua capacidade de poupança e ao mesmo tempo não vai conseguir investir em novas salas”.

O cineasta Cacá Diegues disse não conhecer ninguém do setor cinematográfico que “[...] seja contra a Ancinav”. Mas deixou claro que existiam divergências: “A oposição ao anteprojeto não significa uma oposição à Ancinav”. Ele se declarou “[...] uma das primeiras pessoas que manifestei discordância ao anteprojeto”.

Para Diegues, o posicionamento do ministro de alterar e eliminar alguns dos artigos que foram mais duramente criticados demonstra um gesto democrático: “A única

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resposta possível a um gesto democrático como este é realmente colaborar, fundamentar as críticas, fazendo sugestões e trabalhando para chegar ao consenso que todos queremos”.

Carlos Diegues temia que a criação da Ancinav pusesse em risco todo o arcabouço legal e institucional que conduziam a atividade cinematográfica no Brasil, a partir da década de 1990: “Essas coisas têm que ser feitas sem criar uma fratura no modelo que já vinha sendo desenvolvido e bem sucedido, ao mesmo tempo estabelecendo certos critérios para o futuro, que sejam definitivos em relação ao que deu certo”.

O atual modelo, para Diegues, também tem carências. Uma delas é a falta de uma pareceria consolidada com a televisão: “Não existe cinema nenhum no mundo, não existe nenhuma indústria cinematográfica no mundo que não tenha uma parceria sólida com a televisão”. Mas Diegues avaliou que, da forma como o projeto estava proposto, não havia clareza sobre como ocorreria a regulação sobre a atividade: “Se não esclarecermos que limitações, que restrições são essas, estamos passando um cheque em branco para o futuro. Não para o Ministro Gilberto Gil nem para o Governo Lula, mas para sempre”.

Geraldo Moraes, presidente do Congresso Brasileiro de Cinema, afirmou que, em todo o mundo, o Estado vinha retomando um papel mais ativo no desenvolvimento cultural e que a sugestão de um órgão regulador e de um marco regulatório se inseria nesse contexto: “Representam uma histórica demanda do cinema brasileiro, manifestada em congresso e outras instâncias”. Na avaliação do presidente do CBC, a indústria audiovisual nacional estaria limitada pelo pequeno parque exibidor, pelo alto preço do ingresso, pela baixa penetração, pelo alto preço da TV paga e pela ausência de filmes brasileiros e da produção independente na TV aberta: “Em 2001 as televisões brasileiras exibiram 2150 filmes. Quantas produções foram levadas ao público? Numa rede de televisão aberta, foram veiculados cerca de 120 filmes por mês e 10 filmes nacionais ao longo de todo o ano. Duas outras só exibiram filmes estrangeiros”.

Para Geraldo Moraes, o marco legal do setor teria que levar em conta a questão cultural e identitária que é intrínseca ao audiovisual:

Um povo que não tem acesso à sua própria produção audiovisual representa mais ou menos a mesma situação de uma

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família que não pode colocar na parede os quadros, as imagens que lhe agradam e tem que receber, obrigatoriamente, aquelas que vêm de alguém com outro gosto que não lhe diz respeito.

O presidente do CBC acredita que é possível encontrar o consenso na questão da regulação: “Na medida em que tenhamos como objetivo comum a maior presença do conteúdo nacional nos meios audiovisuais”. Para ele, essa é uma condição para a liberdade de expressão, que não seria “[...] só ferida pelas ditaduras, mas também pelo monopólio”.

Antônio Telles, presidente da União TV, destacou que o tema

[...] envolve enormes riscos para a continuidade democrática num país, já que tem no seu núcleo a disposição evidenciada de violar a mais cara das nossas conquistas sociais, pretendendo impor controle, regulação e orientação sobre a liberdade de expressão, que é um princípio constitucional pétreo.

Telles discordou frontalmente das afirmações do ministro Gil sobre a transparência do processo e a disposição para o diálogo: “Valho-me do direito de discordar sob vários aspectos das suas colocações feitas a esta Comissão. Considero sinuosa a maneira como está nascendo o dito projeto Ancinav, não sabemos até o momento a dimensão exata do que se pretende”.

Segundo o presidente da União TV, o texto que circulava era autoritário: “O texto original que vazou por meio de um site, pode ser comparado a um manual de dirigismo cultural”. Outro ponto que chamou a atenção do executivo da União TV foi a prerrogativa do Poder Executivo de “regular, organizar, planejar, administrar, fiscalizar, dirigir conflito entre particulares e aplicar penalidades sobre toda a cadeia de produção da atividade audiovisual”.

Apesar das críticas, Telles afirmou que as tevês não se opunham às iniciativas do Poder Executivo “[...] para desenvolver projetos de fortalecimento da cultura nacional, por intermédio de incremento de recursos e incentivos à produção cultural” – afirmação inócua, uma vez que não caberia manifestação das televisões sobre a política cultural adotada pelo governo, especialmente no que tange ao fomento.

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Segundo Antônio Telles, a União TV não era contra um projeto estruturador para o setor: “Somos contra o controle, a regulamentação e a fiscalização”. Telles retomou a bandeira da liberdade de expressão, aparentemente a mais impregnada de valores fundamentais da sociedade e por isso a de mais fácil utilização:

O setor que aqui estamos representando está preparado e pronto para analisar com isenção e profundidade qualquer proposta do Poder Executivo, inclusive esse projeto chamado Ancinav, mas reafirma, fortemente, que será intransigente na resistência a qualquer proposta que ameace violar a liberdade de expressão.

Alexandre Annemberg, presidente da ABTA, afirmou que, assim como Cacá Diegues, discordava do anteprojeto apresentado, mas não da ideia da criação da Ancinav. “O projeto da forma como está apresenta uma quantidade tal de imperfeições e de inadequações que exigem uma discussão muito mais ampla e muito mais profunda e acredito que esse daqui é apenas o primeiro passo para essa discussão.” Desqualificar o escopo do projeto, por meio da avaliação de que uma Lei Geral de Comunicação deve preceder qualquer outra iniciativa nesse sentido, foi uma das táticas adotadas para evitar que a matéria prosseguisse e se tornasse realidade: “Esse é o risco de nós, prematuramente, estarmos criando uma agência reguladora sem que tenhamos antes, discutido, exaustivamente, princípios e fundamentos de uma lei geral de comunicação social”.

Annemberg chamou a atenção para um ponto que iria, poucos anos depois, dominar o cenário dos debates, a convergência tecnológica: “São celulares que recebem vídeo, televisores que acessam internet, computadores que transmitem voz. Essa é uma realidade que hoje permeia o mundo inteiro e ainda é uma realidade pouco conhecida, muito pouco discutida”. O presidente da ABTA reclamou que as diferenças entre a televisão aberta e a televisão paga não foram consideradas no anteprojeto: “Há diferenças substanciais entre a televisão aberta e a televisão paga”. Para Annemberg, as diferenças não estavam contempladas no projeto de lei, como se a atividade de televisão aberta e a atividade de televisão paga fossem exatamente a mesma coisa, “como se tudo fosse televisão”.

Os pontos do anteprojeto considerados mais críticos pelo presidente da ABTA foram: a) isenção de Condecine para a TV aberta na veiculação de programação esportiva e não para a TV por assinatura – “e por que não a TV por assinatura?”; b)

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aumento do valor retido no país, para as programadoras internacionais que quiserem investir em produção independente – “quem vai pagar esse aumento é o consumidor”; c) percentual de programação nacional e regional nos pacotes – “Como é que se pode obrigar um consumidor a consumir e a comprar um pacote de filmes ou um pacote de televisão por assinatura com um determinado percentual de programação nacional?”; d) possibilidade de a Ancinav estabelecer condições de exploração do serviço de televisão por assinatura pelas prestadoras de serviço de telecomunicações – “isso é passar um cheque em branco para o Governo, sem que fique claras quais são essas condições de exploração”; e) transferência para a Ancinav de algumas competências regulatórias e fiscalizadoras previstas na Lei do Cabo – “estamos simplesmente criando um conflito de competências absolutamente inaceitável”.

O senador Osmar Dias (PDT/PR) cumprimentou o ministro Gilberto Gil “pela forma democrática com que está debatendo o assunto”. Conforme o senador, suas críticas foram incorporadas ao novo anteprojeto: “Talvez tenham soado como sugestões, porque todos os artigos que critiquei foram modificados na minuta mais recente”.

Para Hélio Costa (PMDB/MG) o debate sobre a Ancinav é “um assunto muito delicado”. Entre suas preocupações estava a tentativa de associar a televisão ao cinema: “Deixo bem claro que cinema é muito diferente de TV. São setores totalmente distintos que precisam de um tratamento separado, e o anteprojeto pretende regulamentar essa situação”. O que mais preocupava o senador era a cobrança de uma taxa de 4% sobre as receitas obtidas por veiculação de publicidade nas televisões: “Não existe uma única emissora de televisão no Brasil que não esteja, neste momento, passando por uma seriíssima dificuldade financeira”.