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O Poder Executivo assume o comando das articulações

O PODER LEGISLATIVO E A DISPUTA PELA HEGEMONIA DO SETOR AUDIOVISUAL

2.4 O Poder Executivo assume o comando das articulações

Em resposta aos apelos dos agentes do campo cinematográfico, divulgados tanto na Subcomissão de Cinema do Senado Federal quanto no III Congresso Brasileiro de Cinema, foi criado, por meio de decreto presidencial de 13 de setembro de 2000, o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema (Gedic). O intuito do Gedic era articular, coordenar e supervisionar as ações para a implantação de uma indústria de cinema no país.

O Gedic era coordenado pelo chefe da Casa Civil e composto pelos ministros: chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, chefe da Secretaria de Comunicação do Governo, da Cultura, das Comunicações, da Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; e também por cinco representantes das áreas de produção, direção, pesquisa e distribuição de cinema, bem como de direção de televisão voltada ao cinema brasileiro. O prazo estabelecido para a apresentação de uma proposta pelo Gedic era de seis meses.

Segundo o cineasta Gustavo Dahl, membro do Gedic, em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo34, o objetivo do grupo era propor uma nova política pública para o cinema nacional, que agregasse a televisão: “Durante 30 anos, a TV aberta não se abriu para o cinema brasileiro. Não estou dizendo que o cinema nacional seja uma maravilha, mas não épior do que a média do que a TV vem exibindodo cinema”.

34 Cf. <http:// http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2001/not20010723p2285.htm>. Acesso em:

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Em fevereiro de 2001, um grupo de integrantes do Gedic, composto por Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro, Rodrigo Saturnino Braga, Evandro Guimarães e Gustavo Dahl, apresentou o documento Pré-projeto de Planejamento Estratégico da Indústria Cinematográfica, com um diagnóstico dessa atividade no Brasil. Segundo o documento, três barreiras impediam o desenvolvimento da atividade e precisavam ser eliminadas: a) exclusão do produto nacional da televisão aberta e por assinatura, do vídeo/DVD e do mercado externo; b) falta de articulação entre produção, distribuição e exibição; e c) restrito número de salas de exibição por habitante. Para cada elemento mencionado como inibidor da atividade cinematográfica foi proposta uma série de ações. No quesito televisão, quatro medidas foram consideradas urgentes:

a) Cota de tela: cada emissora de televisão, aberta ou por assinatura, ficaria obrigada a exibir uma quantidade de filmes brasileiros de longa-metragem por ano. A cota sugerida para as emissoras de televisão aberta seria um filme brasileiro a cada 15 dias. Já as televisões por assinatura ficariam obrigadas a exibir um filme brasileiro por semana.

b) Associação na produção: as emissoras de televisão aberta e por assinatura deveriam investir 2% do seu faturamento publicitário na coprodução de filmes nacionais independentes. A emissora não poderia deter mais de 49% dos direitos patrimoniais do filme, e a primeira exibição do filme seria em salas de cinema.

c) Aquisição de direitos: as televisões aberta e por assinatura deveriam investir 2% do faturamento obtido com publicidade na aquisição de direitos de exibição de filmes brasileiros. O preço mínimo sugerido para a aquisição do filme nacional de longa-metragem seria equivalente ao custo médio de uma hora de produto televisivo dramatúrgico nacional, tendo por base o capítulo de uma novela. Sobre esse valor seria acrescentado um prêmio calculado a partir de 15% da receita bruta auferida em salas de exibição no primeiro ano de sua exploração comercial.

d) Promoção institucional, comercial e publicidade: parte do espaço publicitário das emissoras seria reservado à promoção do cinema brasileiro, conforme acordo de cada emissora com o órgão gestor. Seria dado um

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abatimento para a publicidade de filmes brasileiros, de 35% no horário nobre (das 18h às 23h) e de 50% no restante do tempo.

Na avaliação do grupo, o momento era propício para o estabelecimento de regras aproximem o cinema e a televisão:

O principal motivo para essa afirmação é o da repercussão do grande êxito na retomada da produção de longas-metragens, graças à Lei do Audiovisual – nos últimos cinco anos passamos de um “marketshare” de dois para quase 10% de nosso mercado; além de prêmios internacionais, nossos filmes começam a conquistar, com bons resultados, as salas comerciais dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina; os festivais de filmes nacionais em nossa televisão resultam em grandes audiências, comprovadas pelo IBOPE; numa prova de vitalidade e renovação, 59 jovens cineastas estrearam como diretores de filmes neste período, um recorde mundial.

É interessante notar que o grupo se referiu a um momento adequado para a integração entre cinema e televisão, com argumentação baseada num conjunto de elementos relativos ao bom momento vivido pelo cinema nacional, sem, porém, explicitar quais seriam os benefícios ou vantagens para a televisão. Nesse sentido, parece que os cineastas confiaram na capacidade mediadora do Estado e na neutralidade de suas ações:

Essa aliança tem que se originar de recursos novos, criados por acordo mediado pelo Estado, sem ônus para este, e não do avanço sobre aqueles parcos recursos já existentes reservados ao cinema (por exemplo, a Lei do Audiovisual), que mal sustentam a frágil e indispensável produção independente no país. Este é o momento em que as redes de televisão têm que ceder alguma coisa, pois não é ao doente que cabe doar sangue. E essa cessão reverterá, em curto espaço de tempo, em seu próprio benefício.

A Medida Provisória nº 2.228, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 06 de setembro de 2001 (BRASIL, 2001), criou a Agência Nacional de Cinema e o Conselho Superior de Cinema, instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine) e autorizou a criação dos Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (Funcines). Entre as competências da Ancine, destacam-se: executar a política nacional de fomento ao cinema, fiscalizar o cumprimento da legislação, regular as atividades de fomento e proteção da indústria cinematografia e videofonográfica e gerir programas e

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mecanismos de fomento à indústria cinematográfica brasileira. A Ancine nasceu sem o poder de articular o setor audiovisual, em todos os elos de sua cadeia produtiva,

O Conselho Superior de Cinema nasceu vinculado à Casa Civil da Presidência da República e posteriormente foi transferido para o Ministério da Cultura. Suas principais atribuições: a) definir a política nacional do cinema; b) aprovar políticas e diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, com vistas a promover sua autossustentabilidade; c) estimular a presença do conteúdo brasileiro nos diversos segmentos de mercado; d) acompanhar a execução das políticas; e e) estabelecer a distribuição da Condecine para cada destinação prevista em lei.

A associação entre cinema e televisão, com previsão de cota de tela, fundo de fomento a partir de tributação do setor e regras para a aquisição de obras cinematográficas, conforme propôs o Gedic, não foi contemplada pela Medida Provisória nº 2.228/01.

O ex-secretário do Audiovisual e cineasta Orlando Sena35 comenta como se desenrolou a negociação em torno dessa proposta:

Só como anedota, nós temos, na história do cinema brasileiro, o que costumamos chamar de a “Noite do Delete”. [...] Quando estava encaminhada a formulação da proposta para a criação de uma Agência do Audiovisual, desceu alguém de um helicóptero e teve uma conversa com o próprio Fernando Henrique. Começaram então uma série de contra-ordens ao pessoal que estava trabalhando na formulação da agência e o próprio ministro Pedro Parente começou a deletar tudo o que se referia à televisão (2007)

Em junho de 2003, Gustavo Dahl, então presidente da Ancine, durante audiência pública no Senado Federal, fez alusão aos dias que antecederam a edição da Medida Provisória nº 2.228/01: “No caso da MP que instituiu a política nacional do cinema e criou a Ancine, houve uma tormenta nos dias que antecederam a sua divulgação e a interface com a televisão foi retirada da MP”. Na mesma audiência, o então secretário do Audiovisual, Orlando Senna, afirmou que o Ministério da Cultura estava empenhado em retomar a condição de agência do cinema e do audiovisual, perdida pela Ancine ainda no seu nascimento.

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Segundo a exposição de motivos que acompanhou a Medida Provisória nº 2.228/01, encaminhada ao Congresso Nacional, a edição se justificava pela necessidade de proteção da cultura nacional e da preservação da indústria cinematográfica e videofonográfica brasileira em face das rápidas transformações por que passava esse setor no mundo:

Dada a velocidade de consolidação dos novos arranjos econômicos e da propagação das novas tecnologias nos mercados difusores de obras audiovisuais, tornam-se prementes medidas que expressem o apoio do governo brasileiro à produção e difusão de obras audiovisuais brasileiras, no seu próprio mercado ou no exterior. (BRASIL, 2001)

O texto que acompanhou a medida caberia perfeitamente numa legislação mais protecionista e que visasse ampliar o espaço destinado não só ao cinema, mas a todo o audiovisual nacional. Entretanto, a medida ficou basicamente restrita ao mercado cinematográfico, sem qualquer previsão da associação com a televisão, notadamente no que se refere a espaço de exibição.

A nova legislação atendeu em muitos aspectos as demandas da categoria cinematográfica. Propôs a reorganização institucional do setor e promoveu maior articulação na esfera governamental e maior interlocução entre a classe e o Poder Público, por meio do Conselho Superior de Cinema. Mas, no que se refere à televisão, ela é somente silêncio.

O movimento iniciado com o ciclo de audiências promovido pelo Senado Federal se encerrou com a edição da Medida Provisória que criou a Ancine e o Conselho Superior de Cinema. Esse fato determinou o início de uma nova política para o audiovisual brasileiro com maior atuação do Estado. A tentativa de aproximação com a televisão permeou todo o período e esteve entre as principais reivindicações do campo cinematográfico. Razões culturais e econômicas forma utilizadas para justificar a adoção de mecanismos inclusivos. É possível notar no discurso do Povo do Cinema a crença numa superioridade cultural do cinema frente aos produtos destinados à televisão. Nessa perspectiva, seria um bom negócio estabelecer parceria com os cineastas, pois seu produto poderia qualificar a programação televisiva. Outro ponto a ser destacado é o incessante uso da metáfora do espelho. Persiste entre o campo cinematográfico a noção de que os filmes nacionais detém a capacidade de refletir a

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sociedade na sua pluralidade. Esse pensamento decorre da compreensão de que o produto cinematográfico está inserido no campo cultural e não no do entretenimento, como seria o caso da televisão. (Ortiz, 2006).

Nesse primeiro momento, o desejo de produzir conteúdo para as televisões não está presente entre a corporação cinematográfica, apenas a vontade de inserir seus filmes nesse meio de distribuição. A fronteira entre cinema e televisão ainda é muito delimitada, não foi corrompida pela convergência tecnológica.

A metáfora do casamento presente em todas as audiências públicas aponta para um desejo de que a associação entre cinema e televisão seja consequência da adesão voluntária das duas partes, sem medidas coercitivas. Há um grau de incoerência nesse discurso, pois ao mesmo tempo em que pede uma associação pacífica com a TV, exige que o Estado promova a intermediação entre os dois setores, demonstrando haver consciência sobre as dificuldades embutidas nessa estratégia. A proposta da categoria cinematográfica para a televisão envolvia três aspectos essenciais: promoção, financiamento e inserção do filme nacional na grade de programação. Curiosamente, não foram sugeridos quaisquer benefícios para as empresas de radiodifusão ou de televisão por assinatura que pudessem convencê-las a aderir às medidas.

Como o setor televisivo não foi convidado para o ciclo de audiência do Senado Federal, seu posicionamento acerca da aproximação entre cinema e televisão não se tornou público. A exclusão da televisão do texto da Medida Provisória n° 2.228 de 2001 leva a crer que a movimentação do campo audiovisual não ameaçou a posição hegemônica do setor. Ainda assim, deu início a um longo processo de inserção da corporação audiovisual no debate acerca da formulação de políticas de comunicação no Brasil, no âmbito do Poder Legislativo.

116 3. A DISPUTA POR ESPAÇO DE EXIBIÇÃO NOS CANAIS DE TELEVISÃO PARA A PRODUÇÃO INDEPENDENTE: IMPASSES QUE INVIABILIZARAM A CRIAÇÃO DA ANCINAV

Esta investigação compreende os movimentos em prol da inserção da produção audiovisual independente na televisão brasileira como um processo que se desenvolve ao longo dos anos, em diferentes momentos e locais: a criação da Agência Nacional do Cinema, a tentativa de transformá-la em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e os debates em torno do Projeto de Lei n° 29/2007 para a televisão por assinatura podem ser interpretados como diferentes ocasiões em que esse tema esteve em evidência.

Entretanto, a luta pela inserção do conteúdo audiovisual independente na televisão não se resume a esses eventos, nem, tampouco, está restrita ao debate cultural e à esfera do Ministério da Cultura. Esse tema também é parte importante das discussões sobre a produção de uma legislação que substitua o Código Brasileiro de Telecomunicações, na forma de uma Lei Geral de Comunicação. Há ainda uma longa batalha em torno da regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal, que, entre outras determinações, exige das emissoras e programadoras de televisão que destinem espaços para a divulgação da produção independente. Nesses dois casos, a competência é do Ministério das Comunicações. A disputa pela inserção do conteúdo nacional na televisão ocorre nas duas esferas institucionais: cultura e comunicação, mas a corporação dos produtores independentes se reconhece e é socialmente reconhecida como pertencente à esfera da cultura.

A prioridade neste capítulo é investigar a configuração dos atores e seus discursos, no que se refere à proposta de criação da Ancinav, quanto aos aspectos relacionados à televisão, principalmente no âmbito do Poder Legislativo. A proposta ficou restrita a um anteprojeto do Ministério da Cultura que não chegou a ser enviado ao Congresso Nacional. Na ocasião, além da Ancinav, temas correlatos foram debatidos pelo Congresso Nacional. Esses temas serão abordados a seguir.

Tendo em vista que alguns convidados e senadores, durante as audiências públicas que compõem o corpus desta pesquisa, se referiram a outros momentos em que

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a disputa mencionada esteve localizada no âmbito do Poder Legislativo, será feita a seguir uma breve contextualização de momentos que antecederam os debates em torno do projeto que tentou transformar a Ancine em Ancinav.