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Existem dois tipos de memória, a do corpo e a da mente. Lógico que a da mente é muito importante, mas a do corpo também é.

Mokona, Tsubasa 13

Histórias coletivas e pessoais que não seriam esquecidas com a escravidão muito menos num porão de navio, e que constituíam um único e verdadeiro tesouro..14

Marilda Castanho

Trarei neste memorial as duas memórias: da mente entre conversas e diálogos com amigos, a TV e familiares, mas também a do corpo que viveu e vive a vida dentro e fora da escola e nunca foi um corpo dócil.

Eu, Cristina, tataraneta de Inácia, bisneta de Joana, neta de Messias Joana “Kassange dos Sange”, nega forra. Cresci ouvindo de minha mãe Terezinha a história da minha origem. Através de relatos que ela ouvia de sua mãe Messias, que por sua vez ouvira de sua mãe Joana, que ouvira de sua mãe Inácia: a história do meu povo e da minha etnia. A escravidão não calou nessas mulheres a sua história, cultura e saberes, e elas, através da transmissão oral, deixaram registrada a história do seu povo para seus descendentes.

Somos da tribo Kassange, pertencente à Bacia dos Kassange, uma tribo africana próxima a Angola, por isto também chamados de Angolanos, que vieram para o Brasil junto com outros povos e desembarcaram na Bahia. Minha avó Messias nasceu em Minas Gerais, já na vigência da Lei do Ventre Livre. Não tinha a data precisa, só sabia que nasceu livre.

Por isso mesmo, quando era tratada como escrava, ela dizia alto, forte e batendo com a mão na cintura: - Eu, Messias Joana Kassange dos Sange, neta

13 Crônicas do Reservatório é uma história em quadrinho produzido pelo grupo CLAMP. Era lançado semanalmente na revista Weekly Shōnen Magazine, desde 2003, até a sua conclusão

em 2009.

14 AGBALÁ, um lugar-continente, p. 06. Agbalá, palavra da língua ioruba (Àgbàlá), significa o que

de Inácia, filha de Joana nega forra, não farei... E depois repetia mais devagar e com calma, para ser ouvida e compreendida. Talvez tenha sido a resistência dos negros presentes assumida e encarnada que justifica a minha relação de (re) existir dentro da escola.

A resistência do meu povo à escravidão é uma marca profunda dentro de mim, mulher negra, professora e militante da infância e juventude, da escola pública e de movimentos por um mundo mais acolhedor, justo e humano para todos que vivem nele.

Sendo Kassange tenho aversão ao controle na vida e na escola, por isso sendo professora trabalho dividindo a aula com meus alunos, muito mais que com meus pares, que acabam caindo sempre nos controles da escola, presos a rotinas de uma escola sem ação, sem vida, valor ou respeito à infância. Geraldi nos fala sobre a rotina da escola:

Rotina construída pela definição de metas medíocres, mensuradas pelos sistemas de avaliação de larga escala. Para que a avaliação se tornasse possível, foi necessário cercear a relativa autonomia do professor, reduzindo-a a quase nada. (GERALDI, 2014, p.7.)

Luto pela autonomia minha e dos alunos, porque acredito que só através da luta pelo direito as nossas vozes, pensar e fazer, aprendemos e ensinamos.

Nasci em Santo André, uma cidade operária do ABC paulista, filha de Terezinha e Antonio Campos, que tiveram doze filhos. Antonio, mestre de obras e Terezinha dona de casa que, por problemas de saúde, passou grande parte da minha infância acamada.

Não posso deixar de registrar minha infância, em uma cidade industrial, sétima filha de doze irmãos, uma família de negros/as, que para muitos moradores do bairro já tinha um futuro determinado: “bêbados/as, drogados/as e prostituídos/as”. Sete homens e cinco mulheres. Só que os que apostavam nesse futuro não sabiam o que se passava dentro daquela casa na hora em que se encontravam pais e filhos, as saudáveis leituras feitas pela mãe e as histórias contadas pelo pai, muitas vezes acompanhadas de música pelo tão bem tocado

violão; as conversas sobre música, cinema e literatura que marcaram para sempre cada um dos 12 filhos de Antonio e Terezinha, que elegeram a arte como primeira grande amiga da vida. Da infância dessa cidade fria e chuvosa que é Santo André trago o gosto pelo Rock & Roll como companheiro para toda vida. Numa cidade de trabalhadores com mínimo acesso à cultura, os adolescentes após uma semana massacrante de intenso trabalho nas fábricas da cidade também tinham o seu direito à preguiça, dançavam ao som de uma música cuja letra era incompreensível para eles, mas a batida da guitarra potente o bastante para embalar namoros, paqueras e a vida.

Na minha casa apesar de toda educação musical que recebemos de um pai seresteiro e amante das boas músicas, o rock também convidou meus irmãos mais velhos para sorrirem e dançarem aos finais de semana ao som das guitarras dos muitos grupos que se apresentavam nos bailes da igreja. Eu, criança, escutava o solo das guitarras, cada vez que se reuniam para escutar músicas na vitrola de casa e confesso: me apaixonei por esse solo.

A escola pela qual todos nós passamos era excludente e as batalhas para ser sobrevivente desse e nesse universo foram árduas. A opção que essa escola deu a nós e a muitos outros de história igual, foi a negação de nossas histórias de vida, cultura, saberes e até mesmo valores. Muitos dos nossos amigos não tiveram força para enfrentar a batalha, trilharam um caminho mais fácil, deixaram a escola. O julgamento do professor era feito já no primeiro encontro.

A atitude do professor de primeiro e segundo graus em relação ao aluno das camadas subalternas parece ser ainda predominantemente pautada por preconceitos e por descrença em sua capacidade de aprender, o que certamente contribui para o baixo rendimento desse aluno. Entretanto, seria indispensável que o professor acreditasse na potencialidade desse aluno, procurasse criar condições que favorecessem seu bom desempenho, valorizasse sua cultura e buscasse promover seu diálogo com a cultura erudita. (MOREIRA, 1999, p.39).

Sobrevivemos a esses professores e a seus julgamentos. Hoje após longa caminhada, temos uma história vitoriosa, passamos de bisnetos de humanos

escravizados a Doutores, Mestres, Professores, Graduandos e mesmo os que não se encaixaram na Academia tiveram êxito em sua escolha profissional.