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Jorge foi o primeiro idoso entrevistado em minha pesquisa. Esta informação, sobre a idade em que começou a frequentar o espaço escolar, passou despercebida, dentre outras, acredito eu, por ter sido a minha primeira experiência aplicando a metodologia da História Oral, tendo ficado bastante ansiosa e nervosa com aquele momento, repleto de novidades e desafios.

vigoraram, por lei, os “Exames de Admissão ao Ginásio”, “o fio da navalha” para aquele aluno que almejasse o ingresso no curso secundário, também denominado como Ginásio. Neste contexto, existiam também “Cursos Preparatórios para o Exame de Admissão”, que visavam preparar o aluno para a realização de tal exame.

Segundo o que conta Jorge, provavelmente fora um desses Cursos que ele frequentou, embora não tenha chegado a ingressar o Ginásio, pois: “(o curso de admissão) era pra fazer escola de comércio. Ai, nós mudamos pra São Paulo. Chegando lá, eu não estudei, fui trabalhar.” Foi, então, neste curso de admissão que Jorge finalizou sua vida escolar.

Jorge narra algumas rememorações sobre suas experiências escolares, em referência às disciplinas que cursava na escola e sobre aquelas que mais gostava:

J – Era Aritmética, Língua Pátria, Português e Geografia. Eu gostava de Aritmética. [...] Tinha uma facilidade “tremenda” pra Aritmética.

J – Tinha aula de Canto também. A aula de Canto eu gostava, sim. “Ouviram do Ipiranga...”. A minha voz era boa. Eles divulgavam por causa da minha voz. Então, tinha o dom.

Segundo Galinari (2007), no contexto brasileiro conhecido como “A Era Vargas” (1930- 1945), o qual compreende o período em que Jorge frequentou o espaço escolar, instituiu-se o ensino de música nas escolas brasileiras. Dentre os conteúdos que eram desenvolvidos nesta prática escolar, estava o Canto Orfeônico. Segundo este mesmo autor, o Canto Orfeônico se configurava como um canto coletivo, que entoava canções como os hinos nacionais e outras canções de caráter patriótico e que tinha como figura responsável por dirigir e organizar as práticas orfeônicas no País, o compositor Heitor Villa-Lobos.

Através de alguns dizeres de autoria do próprio Villa-Lobos, é possível compreender qual era o sentido educativo que estava presente nestas práticas musicais. Vejamos:

O canto orfeônico é uma das mais altas cristalizações e o verdadeiro apanágio da música. Porque, com o seu enorme poder de coesão, criando um poderoso organismo coletivo, êle integra o indivíduo no patrimônio social da Pátria. Entretanto, o seu mais importante aspecto educativo é, evidentemente, o auxílio que o canto coletivo veio prestar à

formação moral e cívica da infância brasileira. [...] Entoando as canções e os hinos comemorativos da Pátria, na celebração dos heróis nacionais, a infância brasileira vai se impregnando aos poucos desse espírito de brasilidade que no futuro deverá marcar todas as suas ações e todos os seus pensamentos, e adquire, sem dúvida, uma consciência musical autenticamente brasileira. (VILLA-LOBOS, s.d.11, p. 10-11 apud GALINARI, 2007, p. 174)

É, pois, provavelmente, se relacionando com esta intencionalidade de se educar a infância através do sentimento patriótico, que Jorge realizou suas experiências na “aula de Canto”, em sua escola, na cidade de Sete Lagoas/MG. Durante nossa conversa, quando o entrevistado cantarola “Ouviram do Ipiranga...”, fazendo referência a um trecho do Hino Nacional Brasileiro, percebemos que o conteúdo patriótico estava mesmo presente em suas aulas de Canto.

Portanto, a experiência de Jorge, em sua aula de Canto, se apresenta como a segunda oportunidade – a primeira foi a Corrida do Fogo Simbólico – narrada pelo depoente, em que ele vivencia, de alguma maneira, práticas de cunho macro político, elaboradas com a finalidade de educar o brasileiro para os valores da Pátria, para o sentimento patriótico, para uma determinada noção de cidadania.

Sobre os tempos escolares, o momento do recreio se apresenta, geralmente, como o tempo que ocupa determinado intervalo entre as aulas. O tempo do recreio pode cumprir uma grande diversidade de funções, se apresentando com um caráter mais livre e até mais dirigido e controlado. Sua função depende da perspectiva de educação formal de determinado contexto sociohistórico, bem como depende da perspectiva pedagógica de cada escola. As práticas corporais podem se apresentar como uma possibilidade de experiências vivenciadas no tempo do recreio, também nos moldes de uma prática mais livre, conduzida pelos próprios alunos, ou mais controlada, conduzida por professores/instrutores.

O recreio pode ser um tempo de atividade ou de não atividade. O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1957, p. 229), o qual produziu documento que discutia os problemas educacionais brasileiros na década de 1950, apontava que era “para estabelecer descansos regulares que existem os recreios nas escolas. Cabe aos professores e também aos alunos respeitá-los.”

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O que Jorge conta, através da construção de suas narrativas, é que os momentos de recreio que vivenciou na escola não eram marcados pela vivência de práticas corporais, e nem pelo descanso. Estas experiências não ocupam lugar de destaque em suas narrativas, nem mesmo Jorge conta sobre outros tipos de práticas que lhe suscitavam experiências prazerosas. Sobre a maneira como Jorge vivia os momentos de recreio, ele conta em suas narrativas, destacadas a seguir:

J – “Ah”, o recreio... Tinha o recreio. Eram quatro horas de aula e tinha o recreio. Sei lá, eu não achava muita graça de recreio, não. O recreio da gente, o outro está comendo e você não está comendo. E a vida segue, não tinha muita coisa nada. O outro estava comendo e a gente estava olhando. A vida desse meio é difícil. Dez filhos. Na época, eram oito filhos. Então, difícil. Era muita molecagem contra a gente.

L – Molecagem como?

J – Como é que hoje fala... “Bullying”. Hoje o povo tá nessa bobagem, mas isso já havia muito! De vez em quando, lembro de alguma coisa que aconteceu com a gente. O professor nem “tomava conhecimento”. Se você reclamasse com a professora... Porque é filho de fulano. “Doutor fulano”. Sete Lagoas é cidade de doutor, “doutor fulano”. Eu não gosto. Eu sou “anti doutor”. Pra mim, doutor é a mesma coisa. Por que você vai achar que é maior que ninguém?

L – O que acontecia nesse recreio?

J – “Ah”, briga. A gente brigava. Em uns a gente batia, de outros a gente apanhava. Forçava a gente a sentar num banco cheio de formiga, umas formiguinhas vermelhas. Falava com a professora, a professora nem... É filho de família rica, filho do dono da fábrica de macarrão. “Nossa!” Na saída, eu dei um soco nele e corri. Vinguei. Aproveitei a saída e “pú” e corri, porque a turma dele era grande e era eu sozinho.

L – Por que você acha que faziam isso com você?

J – A gente era mais... A classe pobre era espezinhada. Toda lugar é assim. Você é filha de rico, não sabe disso...

J – Mas não é espezinhada, assim. Hoje já melhorou, mas antigamente era pior... [...] É, realmente. “Nossa”, menina... Difícil. Cidade pequena, era o “doutor” que mandava na cidade.

Portanto, pode-se perceber que Jorge, devido a diferenças socioeconômicas presentes entre os alunos, as quais eram encaradas por seus colegas, também crianças, como elementos que deveriam suscitar a diferenciação dos mesmos – aqueles de status socioeconômico inferior deveriam sofrer consequências físicas, violências, produzidas por aqueles de status superior – teve o seu corpo como alvo de subjugação.

Ou seja, a desigualdade das condições de renda, bem como de status social (Jorge pertencia à “classe pobre” e não tinha qualquer relação com os “doutores que mandavam na cidade”) foram fatores que influenciaram nas experiências corporais de Jorge, quando vivia sua fase de infância. Jorge deveria sentir “na pele”, no plano corporal de fato, os castigos destinados àqueles seres considerados inferiores na injusta escala construída socialmente e reproduzida pelos seus colegas de escola.

A fim de conhecer sobre outros tempos escolares, em que Jorge poderia vir a ter oportunidades de experimentar práticas corporais, em uma de nossas entrevistas, fiz a ele a seguinte pergunta, a qual conduziu à sua resposta, apresentada a seguir:

L – Você lembra se tinha algum momento, ou disciplina, ou algum momento lá na escola, que tinha atividades para o corpo?

J – Tinha Educação Física sim! (risos) Mas era muito simples. A gente fazia um exercício assim (reproduz o exercício que costumava fazer na escola, esticando os braços para o lado e pra cima, sentado no sofá). Era uma coisa boba. Tinha, sim, Educação Física, em um determinado dia da semana. [...] Era Educação Física que falava (e reproduz o exercício, novamente).

L – Fazia sentado mesmo?

J – Não, em pé. Eu não lembro mais de outras coisas, mas era coisa simples, coisa boba. [...] Uma vez na semana. [...] Meia hora só.

[...]

J – Nada. Ninguém falava nada não. Era Educação Física. Se falasse, eu não entendia. Mas não tinha muita explicação, assim, não.

L – E quem que dava a aula?

J – Interessante. Eu não lembro mais se era a mesma professora da gente ou se era uma pessoa diferente. Eu não lembro mais. Também, tem oitenta e tantos anos! (risos)

Em outra de nossas entrevistas, Jorge se refere, novamente, a estes exercícios que realizava na disciplina escolar da Educação Física:

J – Em Sete Lagoas! A gente jogava bola, era correr. A gente fazia exercício, sozinhos. O que fazia na escola, a gente fazia em casa também. (risos) [...] (O entrevistado reproduz novamente os exercícios com os braços, como fez em entrevista anterior.)

Os movimentos que Jorge reproduz em duas entrevistas que realizamos, esticando os braços para cima e para os lados, se referindo a eles quando narra sobre as práticas corporais que realizava na escola, lembram os métodos ginásticos que foram introduzidos no contexto brasileiro, nos tempos da Primeira República e do Estado Novo. Estes métodos podem ter influenciado a ginástica que Jorge praticava na escola, uma vez que este contexto de Jorge, como aluno, se deu no tempo em que o Brasil vivia o contexto político do Estado Novo.

Dentre os métodos ginásticos, principalmente o método sueco e o método francês se fizeram presentes nos espaços escolares e sua prática nestes ambientes foi defendida por pensadores higienistas da época, como Rui Barbosa e Fernando de Azevedo. (SOARES, 2012)

O método ginástico francês, por exemplo, foi o escolhido para ser ministrado aos alunos do Ginásio Mineiro (escola pública oficial, localizada na cidade de Belo Horizonte/MG) a partir do ano de 1937. (PEREIRA, 2001, p. 117)

Já sobre o método sueco, uma lição desta ginástica continha uma série de movimentos e uma parte desta série pode ser assim descrita, incentivando: “movimentos de pernas, movimentos de cabeça, movimentos de extensão dos braços, movimentos do tronco para frente e para trás,

movimentos laterais do tronco e movimentos outros de pernas.” (MARINHO, 195212, p. 188 apud SOARES, 2012, p. 48) Estes “movimentos de extensão dos braços”, a meu ver, lembram bastante os movimentos que Jorge representou para mim em nossos momentos de entrevista, referidos acima. Em Soares (1998), extraio uma figura13 que ilustra o método de ginástica sueco. Jorge, em sua representação da ginástica que fazia na escola, parte das mesmas posições iniciais demonstradas pelo homem na figura, com os braços esticados para baixo, ao longo do corpo, e com as mãos posicionadas próximas ao peito, para, em seguida, estender os braços para cima e para os lados.

Os métodos ginásticos francês, sueco e também o alemão foram os que tiveram maior penetração naquele contexto histórico do Brasil, em ambientes de educação formal ou não, tendo o caráter higienista como uma de suas marcas principais. Cada um destes métodos apresentavam suas particularidades pedagógicas e diferentes origens, mas de um modo geral, possuíam finalidades semelhantes:

[...] regenerar a raça (não nos esqueçamos do grande número de mortes e de doenças); promover a saúde (sem alterar as condições de vida); desenvolver a vontade, a coragem, a força, a energia de viver (para servir à pátria nas guerras e na indústria) e, finalmente, desenvolver a moral (que nada mais é do que uma intervenção nas tradições e nos costumes dos povos). (SOARES, 2012, p. 43)

Nos momentos de entrevista com Jorge, não consegui obter maior profundidade sobre este tema, buscando entender melhor se o entrevistado havia aprendido, por meio da prática corporal da ginástica, estes valores que o ensino da ginástica defendia no âmbito do discurso e do seu ensino. Não consegui perceber, através de fortes indícios, se Jorge havia incorporado os valores morais, os hábitos de higiene, a disciplina e os traços de personalidade que aqueles métodos ginásticos visavam inculcar nos alunos, com claros interesses econômicos e políticos necessários à nação.

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