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VOZ E LIBERDADE KALUNGA

3.6. COMPARADO AO QUE ERA ANTES, MELHOROU MUITO

A política de saúde foi talvez a mais elogiada pelos Kalunga, junto ao programa Bolsa Família, que será abordado mais adiante.

Em todas as conversas com mulheres28, eu perguntava quantos filhos tinham. Em todos os casos, com exceção de Titinha, 40 anos, cujos 6 filhos estão todos vivos, eu recebia a resposta de um número X de filhos nascidos, e um número Y de filhos vivos. Dona Persília, por exemplo, de 52 anos, teve 8 filhos e somente 5 estão vivos, e este foi o padrão de respostas: Dona Eva, de 75 anos, teve 12 filhos, apenas 8 vivos, Rita, 44 anos, teve 8 filhos e apenas 7 estão vivos, Dona Getúlia, 56 anos, teve 10, mas 9 estão vivos. Até mesmo Seu Albertino, 75 anos, me informou que teve 18 filhos, mas somente 10 estão vivos.

Para algumas perguntei se a mortalidade infantil ainda era comum no Território Kalunga, e a resposta mais comum foi que ―a vida está mais fácil hoje‖. Os três filhos de Dona Percília morreram com poucos meses ou até mesmo dias depois de nascidos. Hoje ela acredita que isso não ocorre mais porque as mães fazem o pré-natal e as crianças tomam vacina regularmente. Dona Percília diz que nunca realizou um pré-natal e que ganhou seus filhos em casa com parteira.

Segundo os relatos, atualmente as grávidas realizam o pré-natal e os Agentes Comunitários de Saúde chamam a ambulância da cidade para buscar as grávidas quando a data do parto está próxima.

A pesquisa do MDS mostrou que 97,4% das mulheres haviam feito o pré-natal durante a gravidez dos filhos que ainda eram crianças durante a pesquisa.

Ainda, a pesquisa verificou que em 2011, dos 399 que responderam sobre partos, 83% relataram ter tido o parto com médico ou enfermeira, e 15% haviam tido somente com parteira.

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Ressalto que fiz a opção de conversar com mulheres acima de 40 anos, uma vez que o propósito da pesquisa era verificar os efeitos das políticas sociais nos últimos 10 anos. Uma mulher mais jovem poderia não ter conhecimento para comparabilidade entre períodos antes e depois. A única mulher mais jovem com quem conversei foi a Professora Irene, 25 anos. Ela não possui filhos ainda.

Dona Iva, mulher de Seu Mochila, foi parteira, mas hoje ela não mais realiza partos na comunidade, por que ―hoje em dia a mulher tem que ter filho é nos hospital‖, disse seu Mochila. Mas, segundo ele, infelizmente, já ocorreu de mulheres morrerem no Vão do Moleque esperando um carro ir buscá-las para o hospital, por causa da precariedade da estrada.

No Vão de Almas, Dona Eva relatou ter sido parteira ―a vida inteira‖. Segundo seus cálculos, ela já realizou o parto de 271 crianças. Mas hoje ela não faz mais parto por que ―as mulheres tão tudo trapalhada‖. Ela disse achar arriscado realizar partos hoje pelo fato de as mulheres não repousarem e não tomar cuidados durante a gravidez.

Ela diz que ainda há muitas parteiras no território Kalunga. Relatou ter ido a um encontro recente em Brasília, que reuniu parteiras Kalunga. Apesar de não ter entendido o propósito do encontro, ela disse ter gostado: ―Era umas palestras. Todo mundo brincando de roda. Batendo nas cadeiras uma das outras‖. Ela diz que assinou ―um bocado de coisa lá, mas não sei o quê, por que eu não sei ler. Mas eu assinei. Saí assinando.‖ Ela diz que também ganhou um DVD, mas não sabe para que também pois lá não tem energia: ―eu falei que não ia trazer por que não tinha onde pôr, mas mandaram eu trazer‖.

A pesquisa do MDS mostrou que 95% das crianças tinham a caderneta de saúde da criança, sendo que 86,3% das mães as tinham em mãos no momento da pesquisa. Verificou-se ainda que 97% das crianças possuíam Certidão de Registro de Nascimento, o que foi também constatado nas conversas realizadas, pois, segundo todas as mulheres, as crianças já saem do hospital com a Certidão.

Somente durante campanhas de vacinação as crianças do Vão de Almas e do Vão do Moleque tomam a vacina dentro da própria comunidade. E apesar do valor da passagem no ―pau-de-arara‖ (crianças pagam o transporte no mesmo valor do adulto), suas mães as levam para o posto de saúde na cidade de Cavalcante, segundo relatos de todas as mulheres entrevistadas.

No Engenho II, há um posto dentro da própria comunidade. Seu Cirilo relatou com muito orgulho o fato de o Engenho II ter assistência médica regular no posto de saúde. Com o Programa Mais Médicos, essa comunidade passou a ter médicos em seu posto, que fora

construído por uma ONG inglesa. O atendimento do Médico do Programa Mais Médicos já foi diário, mas passou a ser semanal. Porém, quando não há médicos, Seu Cirilo disse que eles têm assistência de enfermeiros e do Agente Comunitário de Saúde, que são Kalunga. No caso de emergência, estes ligam para o município que manda um carro buscar o paciente e levá-lo ao hospital, o que ocorre com tranquilidade, segundo ele, pelo fato de a distância até Cavalcante ser pequena e a estrada ser razoavelmente boa.

Dona Getúlia, também do Engenho II, por sua vez, não ficou satisfeita com o fato de ter diminuído a frequência de médicos na comunidade. Ela contemporiza: ―Se comparar com antes que não tinha nada, melhorou muito. Tem posto de saúde aqui dentro. Já teve médico visitando as casas nos últimos anos‖. Porém, por motivos de reforma no posto, a presença de visitas de médicos havia cessado nos dois meses anteriores à nossa conversa. Mais tarde, conversando com a médica do Programa Mais Médicos, fui informada que o médico que estava responsável pela visita aos Kalunga aproveitou o período de reforma do posto de saúde para ir a Cuba realizar uma cirurgia e que aguardava recuperação para retornar.

A pesquisa do MDS, durante a entrevista com as lideranças, verificou a presença de Agente Comunitário de Saúde em 100% das comunidades Kalunga. O trabalho do Agente Comunitário foi muito elogiado por uns e criticado por outros. Foi reconhecida a relevância de o Agente ser membro da comunidade pelo fato de ele ter proximidade e conhecer as pessoas. Porém, alguns relataram insatisfação por não receber a visita do Agente Comunitário de Saúde em suas casas. Rita, por exemplo, reclamou que ―nunca nenhum agente bateu em minha porta de casa para perguntar como eu estava, para medir minha pressão‖.

Dona Percília também não mostrou satisfação quanto ao trabalho prestado pelo Agente Comunitário de Saúde do Vão de Almas, que é Kalunga: ―Tem uns aí que faz né, mas o que vai lá em casa mesmo, num faz nada [...] eu mesmo num chamo ele pra nada. Ele corre atrás de um carro quando as pessoas precisam, mas ir nas casas mesmo, ele não faz.‖

Dona Titinha e Seu Zezinho, no entanto, haviam relatado que o Agente Comunitário de Saúde visita sua casa para pesar e medir as crianças, devido à condicionalidade do Programa Bolsa Família. Dona Getúlia considerou importante a presença do Agente Comunitário de Saúde, pois ele, além de ser o articulador com o serviço de saúde na cidade,

traz informações importantes sobre benefícios aos quais eles têm direito, como o salário maternidade.

Os Kalunga do Vão do Moleque e do Vão de Almas, quando precisam de assistência médica, devem ir ao posto em Cavalcante. A maior parte dos entrevistados não fazem exames ou consultas de rotina. Os moradores que possuem telefone celular rural, como Seu Mochila no Vão do Moleque e Seu Zezinho no Vão de Almas, são aqueles que ligam na cidade para chamar a ambulância, a pedido do Agente ou dos próprios moradores, quando alguém precisa ser socorrido.

Os Kalunga têm amplo conhecimento sobre as ervas e plantas medicinais, fazendo pouco uso de remédios. Quando os filhos ficam doente, Titinha e Seu Zezinho relataram que os tratam com remédio caseiro feito de ervas. ―Eu sou remedeiro. Eu conheço todas as ervas boa do mato: Raiz de assa-peixe e folha de laranja são bons para febre. Mas não pode pôr açúcar, se não é chá, não é remédio.‖

Dona Eva também atribuiu sua saúde à raizada que ela faz. Ela relatou não fazer exames ou consultas preventivas. No entanto, ela considerou de grande importância que os Kalunga do Vão de Almas tivessem acesso a um posto de saúde dentro do território. Ela afirmou que ―comparado ao que era antes, melhorou muito‖, pois quando sentiu-se mal, ela disse que foi uma única vez, a ambulância foi buscá-la, e ela foi atendida na cidade, onde fez o tratamento de pneumonia.

Seu Albertino, também já idoso, me mostrou uma ferida em sua perna, que, segundo ele, não curava. Ele relatou que foi ao hospital de Cavalcante para consultar, mas que pediram que ele fosse a Goiânia realizar exames. Mas quando chegou ao hospital público de Goiânia a que havia sido indicado, não havia agendamento de exames para ele. Seu Albertino, aposentado, pagou uma clínica particular para fazer o exame. Pagou também alguns remédios que a médica particular prescreveu. Somente o antibiótico, ele conseguiu no posto de Cavalcante: ―Tive que ficar sem comprar o café para comprar esses remédios‖. Seu Albertino falou com revolta, porque ele sabe que teria direito a ter a consulta, aos exames e aos remédios pelo SUS, mas não teve acesso.

Dona Percília reclamou que, devido à estrada ruim e ao transporte, os moradores do Vão de Almas somente conseguem chegar em Cavalcante no fim da manhã. Porém, as fichas médicas são distribuídas logo cedo. Então as pessoas precisam dormir em Cavalcante para pegar a ficha no outro dia cedo, ou ―se tiver necessidade, tem que ir para Campos Belos e pagar médico particular‖, segundo ela.

3.7. A FOME QUE TINHA ANTIGAMENTE, ESSA DEUS NUM DEIXA ENTRAR MAIS