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É O LUGAR MAIS ESQUECIDO É O NOSSO VÃO DE ALMAS MUITA GENTE DE FORA VEM AQUI, PARTICIPA DE NÓS, USA O NOME DE NÓS,

VOZ E LIBERDADE KALUNGA

3.11. É O LUGAR MAIS ESQUECIDO É O NOSSO VÃO DE ALMAS MUITA GENTE DE FORA VEM AQUI, PARTICIPA DE NÓS, USA O NOME DE NÓS,

LEVA LÁ PRA FORA, E NUNCA QUE CHEGA NADA

Os Kalunga têm amor por seu lugar, preservam e lutam por ele. Porém, parecem estar desacreditados do poder público e da ação externa. Seu Albertino, quando introduzi o tema de políticas públicas no território Kalunga para iniciarmos a conversa já foi logo me avisando: “é o lugar mais esquecido é o nosso Vão de Almas. Muita gente de fora vem aqui, participa de nós, usa o nome de nós, leva lá pra fora, e nunca que chega nada‖.

Com todos que conversei, houve certa desconfiança quanto a razão de eu estar ali. Pois até mesmo a relação com pesquisadores parece estar abalada. Quando pedi a Seu Mochila, do Vão do Moleque, para conversar sobre a pesquisa, ele disse logo: ―não gosto de pesquisador‖. Beto, meu guia, tratou logo de informá-lo que eu trabalhava no ―Ministério que tem o programa Cisternas‖. Então seu Mochila abriu um sorriso: ―Aí eu gostei. Eu gosto de conversar com gente que sabe das coisas‖. Claro que logo tratei de esclarecer que eu não estava ali em nome do Ministério, e sim por causa da minha pesquisa na Universidade. Então ele diz, ―é mas como você trabalha lá no Ministério, quem sabe cê fala para eles lá como é que a gente vive aqui‖. Senti o peso nas costas ao ver a esperança depositada em mim, mas disse a ele que a informação e a visibilidade trazidas pelas pesquisas acadêmicas são de fato fundamentais para a política pública.

O relato mostra que Seu Mochila ainda tem certa confiança no Governo Federal. Isso foi observado em várias conversas. Seu Zezinho, do Vão de Almas, disse que não entende para onde vai o dinheiro do Governo Federal que sai para os Kalunga. Ele acredita que o Governo Federal acha que eles já têm energia elétrica, por isso não faz nada.

Ele afirmou categoricamente que o Governo Federal já mandou esse dinheiro, mas que a prefeitura, em suas palavras, ―deu sumiço‖. ―Para onde foi o dinheiro? Ninguém sabe. A gente só sabe que o povo da prefeitura vai ficando rico.‖

A descrença quanto ao poder local é tão intensa que Seu Zezinho sugeriu que o Governo Federal acabasse com as prefeituras e criasse uma ―instituição que atendesse as famílias, que conhecesse os problemas que as comunidades passam‖. Eu disse que este era o

papel das prefeituras. ―É, não é?‖, disse ele incrédulo. No entanto, acredita que o Governo Federal possui meios de atender o território Kalunga: ―Programa ês (eles, referindo-se ao Governo Federal) tem né, mas num vem pra cá.‖(...)

A informação sobre recursos enviados pelo Governo Federal ao município de Cavalcante foi recorrente em nossas conversas, sempre trazida pelos Kalunga. Rita, moradora do Engenho, sabe que todo o dinheiro que entra na prefeitura está em um site (Portal da Transparência32). Apesar de não lembrar o nome do site, ela sabia informar que o município de Cavalcante não prestava contas do dinheiro. Falou sobre a existência de alguns projetos do Governo Federal para Cavalcante: ―Ninguém nunca viu esse dinheiro. Para onde esse dinheiro foi? Se ele veio, ele parou aonde? Na prefeitura‖.

Seu Albertino também apresentou imensa desconfiança em relação ao município: ―Prefeito só gosta de nós na hora do voto. Votou, virou as costas e babau viola, num olha mais pra trás‖.

Os Kalunga votam e sabem o valor do seu voto, apesar de não acreditarem nas pessoas que estão no poder: ―na hora do voto, eles procuram a gente, depois somem‖ [...] ―Eu até falei que quando tivesse uma eleição, ninguém votava. [...] Kalunga só tem valor na hora do voto, depois, votou, acabou‖, reclamou Dona Persília indignada.

Mas os Kalunga têm consciência da relevância do exercício de sua cidadania por meio do voto, seja para prefeito, vereadores, ou até mesmo presidente de sua associação.

A 33Associação Quilombo Kalunga – AQK (figura 40), associação que abarca as associações Kalunga de cada município (Cavalcante, Monte Alegre e Teresina) elegeu novo presidente em início de 2015. A participação popular foi incentivada para fortalecer o coletivo, relatou Vilmar Sousa, o novo presidente eleito. Segundo ele, 790 pessoas votaram na eleição ocorrida no final de 2014.

32O Portal da Transparência do Governo Federal é uma iniciativa da Controladoria-Geral da União (CGU), lançada em novembro de 2004, para assegurar a boa e correta aplicação dos recursos públicos. O objetivo é aumentar a transparência da gestão pública, permitindo que o cidadão acompanhe como o dinheiro público está sendo utilizado e ajude a fiscalizar. Fonte:

http://www.portaltransparencia.gov.br

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A sede da AQK, em Cavalcante, funciona meio período para atendimento aos Kalunga, que a procura para resolver questões individuais, como acesso ao salário maternidade, e coletivas, como a manutenção da estrada para o Vão do Moleque.

Figura 40: Sede da Associação Quilombo Kalunga em Cavalcante, mar. 2015. Fonte: a autora.

A AQK, fundada em 1999, tem experiência com alguns projetos. Foi citado um projeto pactuado diretamente com a Petrobras, ―Kalunga Sustentável‖, no valor de R$ 1,3 milhão. Além disso, a AQK foi contratada pela Caixa para execução da construção das casas por meio de parceria com a FUBRA-UNB para o programa de habitação quilombola. Segundo Vilmar, o Programa Nacional de Habitação Rural - PNHR está em contato com a associação para uma nova etapa de construção de casas populares no território.

Tanto Dona Aimiram, como seu Zezinho e Seu Mochila relataram participar das reuniões da associação. Porém, a grande reclamação dos moradores do Vão de Almas e do Vão do moleque é a falta de investimento da associação nesses lugares. Segundo eles, o recurso arrecadado na portaria do Engenho II, devido ao turismo nas cachoeiras, são da associação. Os moradores do Vão do Moleque gostariam que associação investisse na manutenção da estrada entre o Engenho II e o Moleque. Os moradores do Vão de Almas gostariam que a associação utilizasse o recurso para encanar água para as casas do Vão, ―para ajudar o povo‖.

A motivação para lutar por seus direitos é grande entre os Kalunga. Dona Aimiram, do Vão do Moleque, relatou que eles formaram uma caravana para ir à posse da Presidente Dilma e que levaram suas principais reinvindicações à SEPPIR: água, estrada e energia.

Os Kalunga, por serem guerreiros, continuam lutando. Apesar da lentidão do Estado brasileiro, ele acreditam que as políticas públicas podem trazer a eles oportunidades de inclusão, de geração de renda, de bem estar social e autonomia:

―Já que começou a melhorar, vamos botar os Kalunga nos planos né gente, não deixa a gente lá no fundo não. Por que os Kalunga também é gente também [...]Eles são é preto, mas tem o mesmo sangue. E é trabalhador. Por que nós nasceu e criou carregando madeira nas costas para fazer nossa roça e criar nossos filhos‖. (Seu Mochila, fevereiro de 2015)

“Esse lugar aqui é um lugar muito ótimo para nós. Nascemos e criamos aqui nessa terra. Nós tem amor por ela. Meu bisavô morreu nela, meu avô morreu nela, meu pai morreu nela e eu vou morrer nela. E eu queria largar para meus filhos. Essa terra é uma terra amada por Deus. Só larga ela quem não tem bondade.”