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VOZ E LIBERDADE KALUNGA

3.8. É POUCO MAS TÁ BOM O RUIM É NADA

Conforme foi relatado no capítulo 1, o Programa Bolsa Família, em outubro de 2014, era acessado por 638 famílias quilombolas, dentre as 1.092 famílias quilombolas cadastradas no município de Cavalcante, representando somente 58% de alcance. Se compararmos ao município de Monte Alegre e Teresina de Goiás, onde 73% das famílias quilombolas cadastradas são beneficiárias do Bolsa Família, é possível concluir que aqueles residentes nas comunidades Kalunga dentro de Cavalcante ou possuem renda maior ou não estão sendo atendidos pelo Programa devidamente. A última opção é a mais provável.

Ainda assim, o Programa Bolsa Família foi relatado como o de melhor acesso pelos Kalunga nas comunidades do Engenho II, Vão de Almas e Vão do Moleque. Todos conhecem o Programa, apesar de não conhecerem as regras de elegibilidade, de distribuição de valores entre benefícios e de suspensão e cancelamento.

Muitos atribuíram ao Programa alguma melhoria de sua qualidade de vida, por ser um recurso financeiro garantido mensamente e disponível para livre uso.

Seu Zezinho, do Vão de Almas, relatou que antes do Bolsa Família, o dinheiro era só ―de relar mandioca para vender farinha‖. Porém, a venda da farinha não era lucrativa e nem garantida, pois a atividade produtiva era comum a todos Kalunga, assim a oferta era muito para o comércio de Cavalcante, Teresina ou Monte Alegre. Ele contou com tristeza que havia meses que ficavam sem dinheiro nenhum.

Seu Zezinho utiliza o dinheiro do Bolsa Família, principalmente, para comprar chinelo para as crianças irem para a escola e cadernos, e algum alimento: ―É pouco mas tá bom. O ruim é nada‖.

Porém, o dinheiro do Bolsa Família também precisa ser gasto com o transporte para a cidade. Seu Zezinho ganha R$ 170 de Bolsa Família e gasta R$ 50 de passagem. Ele ainda precisa dormir lá na cidade por que o transporte vai em um dia e só volta no outro. O hotel mais barato custa R$ 40 para solteiro: ―Quando não tem nenhum amigo na cidade, eu tenho que ficar no hotel‖. Então quando ele precisa pagar hotel, sobra somente R$ 80. Dona Titinha falou decepcionada que o dinheiro ―nunca sobrou para comprar umas coisas assim que tinha

vontade. Coisas assim de casa mesmo que mulher gosta: um armário para pôr as roupas ou um colchão.‖

Apesar de o dinheiro ser considerado pouco, a disponibilidade de recursos financeiros para livre uso, no lugar de uma cesta de alimentos fechada e não regular, como eles costumavam receber, é bem avaliada pelos Kalunga. Porém, há insatisfação quanto à falta de entendimento sobre o Programa.

Na escola que visitei, houve uma grande discussão sobre o Programa com Dona Percília, a professora Irene e outros que estavam perto e que resolveram entrar na conversa. Dona Percília relatou que recebe o Benefício de Prestação Continuada - BPC30 por causa de um filho com deficiência e recebia o Bolsa Família, mas este foi cortado, e ela não entende por quê. Tentei ajudá-la ao perguntar se poderia ser por causa do salário mínimo recebido pelo filho que subiu a renda familiar.

Dona Percília não aceitou a explicação, pois disse não entender o motivo de outras pessoas receberem o Bolsa Família, mesmo tendo aposentados na casa. Nesse momento, uma roda de pessoas se juntou, e muitos tinham uma história para contar de gente que precisava e não recebia e de gente que não precisava e recebia. Ao final, ficou claro que não há entendimento sobre o cálculo do valor recebido por família. As regras do Programa não eram claras para eles.

A professora da escola desconhecia as regras da condicionalidade de educação do Programa. Quando perguntei à Professora Irene se na opinião dela as crianças tinham maior frequência na escola devido à condicionalidade de educação do Bolsa Família, ela respondeu que ―tem uns que sim e outros que não‖. Sem entender, pedi que ela esclarecesse, e ela disse que muitos não cumpriam a exigência de frequentar 99% das aulas.

30O BPC é um benefício da Política de Assistência Social, que integra a Proteção Social Básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e para acessá-lo não é necessário ter contribuído com a Previdência Social. É um benefício individual, não vitalício e intransferível, que assegura a transferência mensal de 1 (um) salário mínimo ao idoso, com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Em ambos os casos, devem comprovar não possuir meios de garantir o próprio sustento, nem tê-lo provido por sua família. A renda mensal familiar per capita deve ser inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente. (Fonte: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc

Ao explicar a ela que não era necessário frequentar 99% e sim 75%, senti que ela ficou meio constrangida e justificou que, como não tinha filhos, não entendia nada do Programa, que se tivesse, ela estava mais atenta. Então ela disse que eles têm ―umas faltinhas poucas, mas vem‖.

Como o Bolsa Família é um programa da assistência social, que tem entre suas responsabilidades acompanhar as famílias beneficiárias do Programa, perguntei a eles se já tinham ido ao Centro de Referência da Assistência Social- CRAS31 para entender os motivos dos cancelamentos, das reduções e diferenças de valores relatados por todos. Alguns não entenderam o nome CRAS, pois nunca tinham ouvido falar. Dona Percília disse que tinha ido, mas que o assistente social só informou a ela que o ―sistema tinha cortado‖.

Não me causou surpresa, pois Titinha e Seu Zezinho, além de Rita do Engenho II, já tinham falado que nunca tinham ouvido falar do CRAS e que somente conheciam a Secretaria da Igualdade Racial. Nenhum morador relatou ter recebido uma visita de um assistente social. Quando eu perguntava, a reação era de estranhamento.

Seu Cirilo não é beneficiário do Programa Bolsa Família, mas informou que, no Engenho II, grande parte das pessoas que recebem o Bolsa Família o utilizam para comprar alimentos e material escolar: ―O dinheiro ajuda muito‖. Seu Cirilo apresentou ter melhor conhecimento quanto à elegibilidade e distribuição de valores.

Quando falamos sobre o valor recebido pelo Bolsa Família, ele disse que tem gente que recebe até R$ 800,00 de benefício, mas foi logo explicando que isso se devia ao fato de a família possuir mais de oito filhos na casa. Perguntei se era comum as famílias Kalunga terem tantos filhos, e ele disse que não. Disse que houve um tempo sem ter muita criança na comunidade, mas, como agora os jovens estão ficando no Engenho II, a comunidade está em uma fase de muita ―afilhação‖. Tentei entender se ele achava que o aumento do número de crianças poderia ser causado pelo valor do benefício do Bolsa Família, mas ele não fez essa relação em nenhum momento.

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O CRAS – Centro de Referência da Assistência Social: De acordo com a NOB-RH/SUAS, a composição das equipes de referência dos Estados para apoio a Municípios com presença de povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas e seringueiros) deve contar com profissionais com curso superior, em nível de graduação concluído em ciências sociais com habilitação em antropologia ou graduação concluída em qualquer formação, acompanhada de especialização, mestrado e/ou doutorado em Antropologia

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Dona Getúlia, também do Engenho II, relatou que o Bolsa Família trouxe uma tranquilidade para as mulheres, tranquilidade que ela não teve no tempo em que criou que seus filhos. Ela informou que ―naquela época era o tempo todo na roça, tinha que trabalhar muito para comer‖. As mulheres, segundo ela, não tinham como ter renda. Era preciso plantar tudo que fosse comer: ―Não tinha dinheiro não, tudo que precisava tirava daqui‖. ―Até roupa?‖, perguntei. ―Até roupa‖, e ela me mostra fotos dela e de sua irmã fazendo tear. Elas plantavam algodão e faziam roupas e cobertas, mas, na época do frio, as roupas não eram suficientes.

―Hoje todo mundo é rico, não tem ninguém pobre‖, disse Dona Getúlia. A pobreza que tanto castigou Dona Getúlia para criar seus filhos hoje alivia suas filhas. Suas filhas têm profissão. Duas são professoras na escola da comunidade. Outra é cozinheira do restaurante. Seus netos vão para a escola dentro da comunidade, têm material escolar, roupas e sapatos. Ninguém sofre mais por falta de dinheiro, segundo ela. Quem não tem um salário fixo que permite ter uma boa renda familiar, recebe o Bolsa Família, que beneficia principalmente as mulheres.

Ela então colocou as mãos no rosto e falou com muito entusiasmo que ―a decisão mais acertada do Presidente Lula foi ter dado o cartão para as mulheres‖. Ela acredita que se fosse para os homens, o uso do recurso seria bem diferente. ―Só quem sabe da necessidade de cada filho é a mãe. A mulher pode ter dez filhos e ela sabe do que cada um precisa, o pai não sabe.‖ Dona Getúlia dá um sorriso branco enorme e diz ―por isso que eu amo aquele Lula. Ele pensou nas mulheres‖. Ela me diz que as casas que foram construídas no Engenho II foram colocadas no nome das mulheres, assim como a energia elétrica, o que provocou mudanças na cultura do território: ―Antes quando a mulher queria se separar, ela tinha que voltar para a casa dos pais. Hoje a casa é dela. O homem que sai. Ela fica com a casa e com os filhos‖.

Rita, do Engenho II, é beneficiária do Bolsa Família. Além disso, a família de Rita conta com a aposentadoria de sua mãe, com o Benefício de Prestação Continuada da sobrinha, que mora em sua casa e é portadora de deficiência, com a renda do trabalho de Rita como guia turística e com a renda de seu marido como pedreiro. Devido à pouca regularidade da renda, Rita chamou o trabalho dela e de seu marido de ―bicos‖.

Apesar de relatar ter despesas altas com tantos filhos, Rita disse que acha que vive bem: ―eu não devo reclamar muito não, porque eu passei por dificuldade mais difícil, muito mais difícil e mais precária do que eu tô hoje. Hoje eu tenho que agradecer a Deus e me comparar, porque hoje eu sou uma pessoa rica pelo o que já passei. E muito obrigada‖, disse abrindo um sorriso.

Sendo beneficiária do Bolsa Família desde 2003, ela conseguiu possibilitar que seus dois filhos mais velhos terminassem o ensino médio. Ela diz que com o recurso ela comprava material escolar para seus filhos além de sandálias para irem à escola e algum item de alimentação. Falou com orgulho que acha que sempre fez bom uso do dinheiro, que a possibilitou comprar camas e colchão para cada um de seus filhos. O único mal uso que ela julga que pode ter feito foi a compra de um aparelho de DVD que seus filhos queriam. Mas ao mesmo tempo ela disse que acha que não foi mal uso, porque era o que seus filhos queriam. E ela tinha o dinheiro e comprou. Ficou feliz.

Rita então suspirou lembrando que só conseguiu comprar seu primeiro sapato aos 11 anos quando foi trabalhar. Lembrou de tudo que já passou e que felizmente seus filhos não precisaram começar a trabalhar tão cedo, pois ela os incentiva a estudar.

Segundo Rita, as crianças do território Kalunga normalmente ajudam os pais a trabalhar na roça ou fazer as tarefas de casa, mas estão todos indo para escola: ―Aqui ninguém tira os filhos da escola para pôr os filhos para trabalhar‖. Primeiro, porque eles recebem o Bolsa Família e sabem que têm de cumprir a condicionalidade. Segundo, porque: ―Quem sofreu o analfabetismo sabe o quanto dói. Por isso nenhuma mãe ou pai faz isso. Tem muitos pais e mães analfabetos nessa nossa região e eles sabem o quanto dói a gente ser analfabeto‖.