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3.1.1 Competência docente

Os professores não podem atuar moralmente se são tecnicamente incompetentes (SYKES, 1990:95).

Para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir – saber (Eça de QUEIRÓS, 1947).

Dolz & Ollangnier (2004) percebem a dificuldade em definir competência do ponto de vista pedagógico e acrescentam que, à medida que tal dificuldade aumenta, eleva-se também a necessidade de utilizá-la pragmaticamente. Os autores preferem elucidar três enfoques possíveis à noção de competência: seu alinhamento a um contexto histórico, seu direcionamento a problemas sociais e suas possibilidades ideológicas.

Para Cunha (1996:89), a competência docente é vista como uma “ideação de um papel socialmente localizado” no tempo e no espaço. A autora sintetiza sua percepção:

Mesmo que não de forma expressa, há uma concepção de professor competente feita pela sociedade e, mais precisamente, pela comunidade escolar. Ela é fruto do jogo de expectativas e das práticas que se aceita como melhores para a escola do nosso tempo (CUNHA, 1996:89).

Questionando a formação docente universitária, Zabalza (2004) lança luzes sobre o sentido e a relevância de tal formação, a pertinência e a contextualização de seus conteúdos, as características e necessidades de seus destinatários, a formação de seus agentes e os aspectos processuais e metodológicos que compõem a organização desse tipo específico de formação. Ele também apresenta alguns desafios à formação dos professores universitários, por exemplo, algumas alternativas de práticas didáticas, as possibilidades de flexibilização curricular (conforme permitido a cada instituição, a partir da definição de seu projeto pedagógico), a incorporação de novas tecnologias (principalmente no que tange a comunicação) e, certamente o principal deles, as mudanças de ordem cultural que fazem com que a docência pautada no ensino seja transmutada para a docência baseada na aprendizagem. Este último ponto implica uma mudança drástica em termos de centralização da atividade docente no aluno, e não mais no professor.20

Alinha-se a tais desafios a percepção de Pimenta & Anastasiou (2002) no que diz respeito à precária formação do professor universitário, desprovida de um conhecimento científico, ou mais estruturado, acerca do processo de ensino e de aprendizagem. Segundo

20 A esse respeito, Cunha (1996) alinha, basicamente, cinco características do “bom professor”: dominar a

matéria de ensino; integrá-la ao contexto curricular e histórico-social; utilizar formas de ensinar diversificadas; dominar uma linguagem corporal-gestual; e buscar a participação do aluno.

essas autoras, os sujeitos são titulados em determinadas áreas do conhecimento, no entanto desconhecem as demandas diárias da profissão docente e a necessidade de desenvolver outros saberes que permitam e promovam neles uma fluência e um domínio sobre as diversas atividades pertinentes, comprometendo todo o processo de aprendizagem, de um lado, e a profissão em si, de outro.

Na concepção de Libâneo, Oliveira & Toschi (2003), o professor deve desenvolver saberes que contemplem a docência em si (domínio de conteúdos, acompanhamento de alunos, trabalhar valores etc.), a atuação na organização e na gestão da escola (participação efetiva em reuniões e conselhos, cooperação, solidariedade, respeito mútuo, diálogo etc.) e a produção de conhecimento pedagógico (elaboração e desenvolvimento de projetos de investigação). Segundo os autores, tais saberes devem compor um perfil que não se esgota em si mesmo, mas que permita ao professor o aprimoramento contínuo. Nesse sentido, Grillo (2001:138) descreve a singularidade da situação de ensino:

O cotidiano da sala de aula é sempre instável e exige do professor a reinterpretação de cada situação problemática em decorrência do confronto desta com outra experiência já vivida, a qual nunca se repete. As condições de ensino mudam dia a dia e não existe segurança do que ‘dá certo’. Nessa perspectiva, o professor necessita ser um pesquisador que questiona o seu pensamento e a sua prática, age reflexivamente no ambiente dinâmico, toma decisões e cria respostas mais adequadas porque construídas na própria situação concreta.

Assim sendo, na perspectiva de Perrenoud (1997), a prática docente oscila entre a rotina e a improvisação, entendendo a improvisação não como despreparo, mas como resultado de uma prática criativa, fruto de uma reflexão em um determinado contexto, recuperando o conceito de “habitus”, de Bourdieu (2003).

Grillo (2001) cita Porlán & Rivero (1998) ao enfatizar a relevância do conhecimento prático na conduta do professor. Para este autor, os conhecimentos acadêmicos (que soma conteúdos específicos e didático-pedagógicos), o experiencial puro (pautado em experiências individuais, subjetivas e informais) e o filosófico, ou metadisciplinar (de natureza epistemológica, que permite avaliar os demais conhecimentos formalizados), são elaborados pelo conhecimento prático profissional que

[...] articula-os de forma original e idiossincrática, uma vez que a esses se integram teorias implícitas ou explícitas, experiências e valores pessoais, rotinas e esquemas de ações particulares aceitos pelos docentes após a reflexão (GRILLO, 2001:139).

Pensar na profissão docente como uma justaposição de competência acadêmica (domínio de saberes) e competência pedagógica (domínio da transmissão dos saberes) é algo falacioso na percepção de Perrenoud (1999), pois para ele ensinar envolve desenvolver artesanalmente os saberes, tornando-os passíveis de ensino, exercício e avaliação pelos alunos, com os meios disponíveis, num determinado ambiente acadêmico e num certo macro- ambiente.

Por sua vez, Perrenoud (2000) propõe uma lista de dez grandes famílias de competências, salientando que elas não são exaustivas nem definitivas, mas que podem nortear a conduta do professor. O autor conceitua competência como “uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situações” (PERRENOUD, 2000:15). Ele elucida que as competências não são saberes, mas mobilizam, integram e controlam tais saberes de maneira contingencial – ou seja, atrelada a características percebidas acerca do contexto, com a finalidade de adaptar da forma mais efetiva o professor a tal situação, permitindo sua passagem a outra, e assim sucessivamente. As dez famílias de competências seriam:

a) Organizar e dirigir situações de aprendizagem. b) Administrar a progressão das aprendizagens.

c) Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação. d) Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho. e) Trabalhar em equipe.

f) Participar da administração da escola. g) Informar e envolver os pais.21

h) Utilizar novas tecnologias.

i) Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão.

j) Administrar sua própria formação contínua (PERRENOUD, 2000:14).

Após descrever cada uma dessas competências, Perrenoud (2000) salienta outras virtudes de sua “lista”: fornece subsídios para a manutenção de um plano de formação profissional; promove comunicação e integração da equipe de trabalho; e incita a inovação a partir da reflexão. Para o autor, não há como promover uma profissionalização docente sem o desenvolvimento coletivo de tais competências. No entanto, cabe frisar que essa abordagem

21

está primordialmente voltada para a docência, para a instrumentalização do “saber-fazer”.22 Contraditoriamente, em outra obra, Perrenoud (1999:180-181) afirma:

Trata-se não tanto de estabelecer uma lista de competências, mas de representar de forma precisa os funcionamentos dos professores em situação, entre rotina e improvisação, cegueira e lucidez, realismo e ilusão, stress e aborrecimento, dispersão e obsessão, angústia e boa consciência, indiferença e paixão, egoísmo e altruísmo, depressão e exaltação, racionalidade e intuição, bricolage e método, rigidez e inconstância, inconsciência e conhecimento… Apenas com imagens detalhadas e realistas do exercício da profissão poderemos deixar de lutar contra moinhos de vento, descrevendo simplesmente as competências requeridas bem como os recursos necessários para fazer face à complexidade. […] Não é inútil definir competências mínimas ou ótimas para ensinar. Mas passa-se ao lado do essencial se não se concebem tais competências como componentes do processo de profissionalização da atividade docente.

Redefinir as competências docentes, independentemente do nível de ensino, portanto, é um processo necessário e que implica, segundo Perrenoud (1999), apostas e advertências, conforme Quadro 2.

22

As atividades acadêmicas em nível superior, conforme descrito no item 3.2.1, são mais diversas e amplas, indicando, neste caso, algumas reservas com relação à adoção desse modelo para fins dessa tese.

Quadro 2 - Razões possíveis para redefinir as competências

Apostas Advertências

1. Reforçar a adequação da formação dos professores às necessidades e normas do meio escolar.

A redefinição periódica das competências esperadas permite uma regulação das formações iniciais, no sentido de uma maior conformidade às condições de exercício da profissão docente no terreno.

2. Aumentar a coerência entre a formação de professores e as finalidades da política de educação.

A formação inicial, longe de ser uma simples resposta às necessidade de qualificação, pode ser um fermento de mudança, uma estratégia de inovação.

3. Garantir uma maior estandartização da formação inicial entre instituições de formação.

Pode tratar-se de restaurar uma unidade que se enfraqueceu no decorrer dos anos, para favorecer a paridade de estatutos e a mobilidade dos professores.

4. Melhorar a continuidade da formação entre o pré-escolar, o primário, o secundário, o

profissional e a formação de adultos.

É possível que as diversas formações, inseridas em diversas estruturas, seguindo percursos distintos, não tenham suficiente coerência para assegurar a continuidade de responsabilização pelos alunos ao longo da sua escolaridade.

5. Redefinir as relações entre a formação de professores e os outros setores da ciência da educação na universidade.

A coexistência da formação de professores e de outros setores tradicionalmente mais acadêmicos das ciências da educação nem sempre é harmoniosa, e a formação de professores sente-se, muitas vezes, desfavorecida.

6. Reequilibrar os pesos respectivos das abordagens didáticas

disciplinares e das abordagens transdisciplinares, baseadas em diversas ciências humanas.

O alargamento das funções da escola à integração dos deficientes, dos imigrantes e das minorias, a insistência no insucesso escolar e na inserção profissional e o contributo das ciências sociais modificam o peso dos diversos componentes da formação.

7. Melhorar ou repensar a articulação entre formação teórica e prática, universidade e escolas.

Esta articulação não é nunca inteiramente satisfatória, implica um emparceirar complexo e, por vezes, conflituoso, entre meio escolar e instituições de formação.

8. Rever a repartição dos poderes e a delimitação dos territórios.

A formação de professores é objeto de numerosos grupos de pressão e instituições, sempre em competição.

9. Ter em conta novas concepções da formação e da profissão docente.

Em diversos países, a reflexão avança rapidamente e questiona as evidências nacionais.

Fonte: Perrenoud (1999:174)

Assim sendo, Perrenoud et al (2001) contribuem mais efetivamente com a discussão proposta nesta tese ao afirmarem que é necessário ao desenvolvimento de competências docentes mais amplas proceder a diversas aprendizagens, a saber: aprender a ver e a analisar; a falar e a ouvir, a escrever e a ler, e a explicar; a fazer; a refletir; e a promover a transposição didática na formação profissional. Já na perspectiva de Dubar (1997b), o processo de composição dos saberes profissionais – práticos, teóricos, técnicos e de organização – define a configuração identitária da profissão, em um determinado contexto histórico.23

Outra classificação de conhecimentos é fornecida por Alarcão (1998), a qual contempla como partes do conhecimento profissional outros vários, a saber: o científico-pedagógico, o do conteúdo disciplinar, o pedagógico em geral, o do currículo, o acerca do aluno e de suas

23 Ressalte-se que o construto identidade não se constituiu em alvo teórico central nesta tese. No entanto, em

virtude de sua importância para os construtos envolvidos, construiu-se o Apêndice A - A Questão da Identidade, no qual se sintetizam os aspectos conceituais considerados mais relevantes para esta tese.

características, o dos contextos (internos e externos à sala de aula), o dos fins educativos, o de si mesmo e o de sua filiação profissional.

Já Vasconcelos (1998) afirma que o profissional completo, ou seja, com a formação adequada ao correto exercício da função docente é aquele que consegue reunir todas as facetas da competência profissional de um educador, a saber: formação técnico-científica (domínio técnico do conteúdo a ser ministrado), formação prática (referente à área de formação de seus alunos), formação política (sem desprezar a intencionalidade da educação e a exigência de ética e competência) e formação pedagógica (voltada para seu fazer cotidiano metodologicamente delineado).

Recusando uma classificação de saberes a partir de critérios internos discriminantes, Tardiff (2002) propôs um modelo de análise baseado na origem social. Ou melhor, o autor buscou compreender a relação entre a natureza e a diversidade dos saberes dos professores e as suas fontes, isto é, sua origem social. Um aspecto importante de tal modelo são as possibilidades que ele desnuda em termos históricos, pois contempla a história de vida do docente, tanto no âmbito pessoal como no profissional. Dessa forma, segundo o autor, o modelo

[...] tenta dar conta do pluralismo do saber profissional, relacionando-o com os lugares nos quais os próprios professores atuam, com as organizações que os formam e/ou nas quais trabalham, com seus instrumentos de trabalho e, enfim, com sua experiência de trabalho. Também coloca em evidência as fontes de aquisição desse saber e seus modos de integração no trabalho docente (TARDIFF, 2002:63).

O Quadro 3 permite visualizar tais saberes, suas fontes sociais de aquisição e os modos de integração no trabalho docente.

Quadro 3 – Os saberes dos professores

Saberes dos professores Fontes sociais de aquisição Modos de integração no trabalho docente

Saberes pessoais dos professores A família, o ambiente de vida, a educação no sentido lato etc.

Pela história de vida e pela socialização primária.

Saberes provenientes da formação escolar anterior

A escola primária e secundária, os estudos pós-secundários não especializados etc.

Pela formação e pela socialização pré-profissionais. Saberes provenientes da

formação profissional para o magistério

Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem etc.

Pela formação e pela socialização profissionais nas instituições de formação de professores.

Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho

A utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas etc.

Pela utilização das “ferramentas” de trabalho, sua adaptação às tarefas.

Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola

A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares etc.

Pela prática do trabalho e pela socialização profissional.

Fonte: Tardiff (2002:63)

De maneira sintética, Tardiff et al (1991) organizam os saberes dos professores em saberes das disciplinas, saberes da formação profissional, saberes curriculares e saberes práticos, ou da experiência. Há que se chamar atenção para dois aspectos. Primeiramente, os autores lançam luzes sobre as fontes de saberes e esclarecem como elas são continuamente desenvolvidas e re-configuradas, permitindo-se perceber a complexidade dos processos relacionados à formação e ao desenvolvimento das competências profissionais – em especial, as acadêmicas. Dessa maneira, percebe-se que suas componentes – as competências cognitiva, funcional, comportamental e ética, conforme modelo de Chetham & Chivers (1998), e também a competência política, acrescentada para fins dessa tese – estão em permanente movimento, sendo integradas nas atividades dos sujeitos de maneira peculiar e produtiva. O segundo aspecto que merece destaque transcende os objetivos desta tese, mas não se pode deixar de indicar: refere-se à riqueza de temas que o modelo permite conectar e discutir. Temas como “identidade”, “subjetividade”, “relação teoria–prática” e “conseqüências de ordem prática e política” podem ser abraçados nessa perspectiva, conforme salienta o próprio autor.

Dessa forma, as competências profissionais, incluindo-se as de ordem acadêmica, não se formam nem se desenvolvem descoladas de uma realidade prática e simbólica, nem de maneira permanente. Nesse sentido, convém ressaltar:

Cada universidade não é um todo coeso e unificado: constitui-se em uma estrutura de posições diferenciadas e variadas, uma vez que nela habitam diferentes concepções de mundo e ocorrem jogos acadêmicos diversificados e competitivos,

frutos das disputas dos diferentes atores envolvidos no processo (CATANI & OLIVEIRA, 2002:47).

Torna-se necessário, portanto, conceituar e discutir alguns aspectos relevantes pertinentes à gestão de competências em si antes de se aprofundar nas questões relacionadas à profissão e à profissão docente em especial.