• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II: Conceitualização, pensamento metafórico e interação no ensino e aprendizagem

2. Competência metafórica e fluência conceitual: a necessidade de uma perspectiva

Como discutimos até aqui, os estudos sobre a relação gesto e fala sob a perspectiva cognitiva já avançaram bastante, bem como a aplicação dos princípios da Linguística Cognitiva ao Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras. Entretanto, pesquisas sobre gestos e interação em sala de aula, sob uma perceptiva cognitiva, ainda são raros. Os estudos de Marianne Gullberg (2006, 2009) mostram que os gestos são relevantes para o estudo tanto da produção quanto da compreensão de L2. Gullberg (2006) explica que os gestos, na forma em que são produzidos na L2, podem oferecer informações valiosas sobre os processos de aquisição de linguagem, como a influência da L1 na L2 e outros fenômenos da interlíngua, bem como revelar o comportamento dos aprendizes em relação às dificuldades de expressão e compreensão da L2.

Gullberg (2009) também discute o papel dos gestos na aquisição dos verbos de posicionamento em holandês, tanto por crianças aprendizes de holandês como língua materna quanto por adultos aprendizes de holandês como língua estrangeira. Gullberg (2009, p. 121) explica que o holandês tem dois verbos de posicionamento, zetten e leggen, cujo significado varia de acordo com a forma como posicionamos um objeto em algum lugar: se o objeto é posicionado na horizontal, usamos o verbo leggen. Mas, se o objeto for posicionado na vertical, deve-se usar o verbo zetten. Assim, o processo de aquisição desses verbos, tanto para crianças quanto para adultos, passa pela diferenciação dessa característica semântica. A despeito de estudos anteriores que sugerem que gestos são usados em L2 para compensar o desconhecimento de vocabulário, os experimentos deste estudo mostraram que os sujeitos testados não usaram gestos como forma para compensar suas dificuldades em diferenciar zetten de leggen. Ao contrário, os gestos mudaram sistematicamente com o desenvolvimento semântico desses sujeitos, ou seja, eles só realizavam gestos para representar os verbos na medida em que aprendiam o significado deles, corroborando a teoria de que fala e ge sto formam um sistema integrado (MCNEILL, 1992, 2008).

Outro estudo interessante sobre gesto e aprendizagem de línguas estrangeiras é o de Lazaraton (2004), que investigou, a partir de uma perspectiva microanalítica, a fala e gestos de uma professora japonesa de inglês como língua estrangeira durante suas explicações sobre 18 itens lexicais, em sua maioria, verbos com sentido mais concreto. Entretanto, apesar de Lazaraton (2004) fornecer transcrições e descrições detalhadas dos gestos, sua discussão girou apenas em torno da importância dos gestos como um input visual para os alunos durante a aula, pois eles são um recurso pedagógico frequentemente utilizado pela professora para a explicação de vocabulário. A análise, apesar de baseada em McNeill (1992), não fornece detalhes sobre a relação cognitiva gesto-fala, como seu potencial de representar esquemas imagéticos e/ou revelar a metaforicidade dos itens lexicais aos quais o gesto se refere.

Em se tratando da relação cognitiva gesto-fala, muitas pesquisas na área de aquisição de línguas estrangeiras têm se dedicado a estudar a hipótese “pensar para falar” (thinking for

speaking) de Slobin (1996), principalmente em aprendizes de inglês e espanh ol como L2. Essa

hipótese defende que a língua é filtrada pelas experiências de cada falante com o ambiente em que vive, sugerindo assim que as línguas variam na forma como decodificam linguisticamente essas experiências. Dessa forma, as pesquisas focaram em aprendizes de L2, com base em um fenômeno linguístico denominado por Talmy (1985, 2000) de línguas satellite-framed (inglês) e línguas verb-framed (espanhol). Segundo essa classificação, satellite-framed são línguas cujos verbos de deslocamento tendem a expressar apenas o tipo de movimento realizado, enquanto a direção desse movimento é expressa por meio de “satélites”, como preposições ou prefixos verbais. Assim, na oração I sneaked out in the morning so my boyfriend would wake

up. (“Eu saí de mansinho pela manhã para não acordar meu namorado.”), o tipo de movimento

está codificado no verbo sneak (“se movimentar lentamente e silenciosamente, com a intenção de que ninguém perceba”)24 e a direção na preposição out (“para fora”). Já as línguas verb-

framed tendem a codificar a informação direcional no verbo, enquanto o tipo de movimento

será expresso por outros elementos, como advérbios de modo. Assim, na tradução proposta “eu saí de mansinho pela manhã para não acordar meu namorado”, o verbo “sair” codifica a direção do movimento e o advérbio “mansinho” sugere a ideia de um movimento lento e silencioso. Nesse sentido, seguindo a hipótese thinking for speaking, aprendizes de L2 enfrentariam dificuldades para expressar linguisticamente movimentos a partir de outro sistema conceitual

24 As explica ções dicionarizadas de sneak é “fazer algo” ou “ir a a lgum luga r secretamente”. Essa explicação foca na funcionalidade da a ção. Porém, para fins de a rgumentação, nossa explicação tende a explicitar a qualidade do movimento verbal.

que não os deles, o que também está em consonância com a noção de competência conceitual defendida por Danesi (2017).

Uma das referências nos estudos da relação entre gesto e a semântica de línguas satellite-

framed e verb-framed é a de Gale Stam (2006), cujos experimentos mostraram que os gestos

dos falantes de espanhol, uma língua verb-framed, tendem a ocorrer simultaneamente ao verbo, enquanto os gestos dos falantes de inglês, uma língua satellite-framed, tendem a ocorrer com o elemento satélite. Além disso, os resultados mostraram que os gestos dos falantes de espanhol, ao falarem em inglês, se aproximavam a de um nativo em língua inglesa. Porém, ao expressar à qualidade dos verbos em inglês, os gestos dos falantes de espanhol se assemelhavam ao padrão de sua língua materna.

Dando continuidade o seu estudo, Stam (2014) investigou se esse mesmo fenômeno continuaria mudando ao longo de um período mais extenso. A pesquisadora analisou os gestos de uma estudante mexicana falante de inglês como L2 (residente nos EUA) ao recontar em inglês as ações de dois personagens de um desenho animado. Esse procedimento havia sido realizado pela primeira vez em 1997, sendo repetido mais tarde em 2006 e em 2011. Os resultados revelaram que os gestos da estudante, para expressar a direção e a qualidade do movimento, continuaram a se aproximar a de um nativo de língua inglesa. Em outro estudo longitudinal, Stam (2017) continuou a acompanhar o mesmo fenômeno, porém estendido por um período de 14 anos. Os resultados indicam que a expressão gestua l para direção de movimento mudou tanto na L1 quanto na L2. Já a expressão gestual para o tipo de movimento mudou apenas na L2. Os resultados sugerem que o padrão adquirido na infância, como sugere Slobin (1996), pode não ser tão resistente a mudanças ao longo do tempo.

A partir de uma perspectiva cognitiva e interacional, Barbosa (2019) investigou os gestos de um professor nativo do alemão e de seus alunos brasileiros durante uma aula sobre os diferentes significados da preposição über.25 Ao discutirem o possível significado dessa preposição na oração Er hat über 500 Euro (“Ele tem mais de 500 euros.”), a descrição gestual revelou que o gesto do professor difere esquematicamente dos gestos rea lizados pelos alunos, como mostra a Figura 9:

Figura 9 - Gestos produzidos para a representação do sentido de über na oração Er hat über 500 Euro. Fonte: adaptado de Barbosa (2019) 2627

Os alunos brasileiros executam um gesto levantando a mão direita fechada, com a palma para baixo, em um movimento em linha reta até a altura da testa. Este gesto é executado simultaneamente ao segmento de fala “acima”. Já o professor executa, logo em seguida , um gesto levantando a mão esquerda aberta, com a palma da mão para baixo, em um movimento de arco para frente, ao mesmo tempo em que acena com a cabeça, concorda com a explicação dos alunos. Barbosa (2009) argumenta que, mesmo tendo significados correspondentes nesse contexto, há uma diferença conceitual entre os esquemas imagéticos de über e acima.28 Essa diferença esquemática é revelada na execução dos gestos e é um exemplo empírico de como os sentidos corporificados podem ser revelados por meio dos gestos durante a interação face-a- face. Além disso, os gestos são uma evidência empírica do mapeamento da metáfora primária MAIS É PARA CIMA, pois a preposição über na oração estudada tem o sentido de quantidade e não de localização.

Como demonstra a breve revisão sobre pesquisas que abordam gestos e aprendizado de L2, ainda há espaço para estudos que abordem os gestos de uma perspectiva não só cognitiva, mas também interacional, envolvendo situações reais de aprendizado, como a interação em aulas de línguas estrangeiras. Com a intenção de realizar uma pesquisa que possa contribuir para a ampliação não só dos estudos sobre fluência conceitual e competência metafórica, mas

26 Vídeo desse trecho disponível em: https://youtu.be/x1_xavAIpQY

27 A filma gem completa, bem como sua transcrição, faz parte do Corpus NUCOI. Disponível em:

http://www.letras.ufmg.br/nucleos/nucoi/

também sobre gestos e aprendizagem de L2, dentro do campo da Linguística Cognitiva Aplicada, focaremos nossas análises no ensino dos verbos separáveis e inseparáveis em alemão cujo comportamento semântico-sintático reflete processos cognitivos que podem ser revelados por gestos, como mostraremos a seguir.