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2. Competência ortográfica: como se adquire?

2.1. Competência ortográfica e consciência fonológica – que relação?

A importância consignada ao conhecimento fonológico de uma língua parece reunir algum consenso junto dos investigadores. A aquisição e aprendizagem da ortografia insere-se num sistema linguístico oral, por um lado, e, por outro, porque se trata de sistemas alfabéticos, apresenta uma correspondência mais ou menos regular entre sons e letras (Fayol & Jaffré, 1999). Embora a utilidade da mediação fonológica

“Ces exemples, et d’autres, suggèrent que les orthographieurs débutant dèveloppent une sensibilité à des patrons orthographiques simples beaucoup plus précocement que ne le suggèrent les modeles actuels du développment orthographique. (…) les connaissances orthographiques émergent beaucoup plus précocement que l’on avait coutme de le penser.”

79 possa ser considerada como apenas típica de uma fase inicial da aprendizagem, essencialmente destinada à constituição de um léxico ortográfico, têm surgido evidências de que “les performances precoces aux habiletés phonologiques – et donc dans la mise en œuvre de la médiation phonologique – prédisent les performances ultérieures en lecture et écriture de mots irréguliers” (Idem: 152). Deste modo, A. Silva refere que “a consciência fonológica é uma competência necessária, ainda que não suficiente, para o pleno entendimento conceptual do princípio alfabético” (2004: 188). As crianças necessitam, portanto, de “desenvolver, gradualmente, a consciência de que as palavras são decomponíveis em segmentos fonémicos” (Ibidem). M. Pestun partilha igualmente das ideias expostas ao afirmar (2005: 408):

Nesta linha, M. G. Pinto (1994) considera igualmente que, tendo em conta a consciencialização exigida pelas várias tarefas linguísticas, a criança tem necessidade de possuir uma competência explícita das propriedades fonémicas62 da fala para ler/escrever.

M. De Lemos (2002) corrobora esta ideia ao citar um dos trabalhos levados a cabo por Byrne & Fielding-Barnsley, 1992 (apud De Lemos, 2002), que se baseou no treino da consciência fonémica. Segundo aquela autora, os resultados vieram reiterar “the accumulating evidence that phonemic awareness is one of the critical factors that underlie children’s success in learning to read” (Idem: 30). Assim, tem sido evidenciado que “phonemic awareness is a strong predictor of success in learning to read, and that explicit instruction in phonics is a more effective teaching strategy” (Idem: 32).

O papel que a consciência fonológica desempenha na aprendizagem da leitura e da escrita tem sido verificado através de algumas investigações. S. Guimarães (2003) realizou um estudo com sujeitos que apresentavam dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita em português, com o objectivo central de avaliar os níveis de consciência fonológica e consciência sintáctica dos alunos, analisando a relação entre essas habilidades metalinguísticas e as diferenças de desempenho na leitura e na escrita

62 Impõe-se, neste momento, a necessidade de clarificação dos conceitos de consciência fonológica e consciência fonémica. De acordo com S. Guimarães, a consciência fonológica refere-se para “designar uma consciência geral dos segmentos que compõem a fala (rimas, aliterações, sílabas e fonemas) e o termo consciência fonêmica para a consciência específica de fonemas” (2003: 33).

“Independentemente de a relação entre consciência fonológica e habilidade para a leitura e escrita ser de causa, de efeito ou de reciprocidade, o que se tem claro atualmente é que o domínio fonológico exerce grande influência no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que possibilita a generalização dos sistemas de escrita alfabéticos”.

80 de palavras isoladas. Desta forma, para avaliar a consciência fonológica, foram propostas por esta autora a realização de três tarefas: a segmentação fonológica, a categorização fonológica e a subtracção de fonema. Quanto à primeira, os resultados demonstraram que todos os sujeitos tiveram maior dificuldade na segmentação fonémica das palavras dissílabas do que na das palavras monossílabas, dificuldade que foi mais acentuada no grupo que apresentava sujeitos com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita. Na segunda tarefa, os resultados revelaram que a identificação e manipulação de sílabas são realizadas mais facilmente do que a identificação e a manipulação de fonemas. Pela análise destes dados, a autora foi levada a concluir: “confirma-se que a consciência fonêmica é fundamental na aquisição e no aperfeiçoamento da leitura e da escrita em Português” (Idem: 42). Os resultados obtidos na tarefa de subtracção de fonema revelaram que, de um modo geral, o desempenho foi bom, tendo sido possível concluir que os resultados relativos às tarefas de avaliação da consciência fonológica “são unânimes em apontar a desfasagem dessa consciência nos sujeitos com dificuldades na leitura e na escrita; desfasagem essa que envolve principalmente a identificação e a manipulação dos fonemas” (Ibidem).

M. Pestun (2005) empreendeu um estudo longitudinal, no Brasil, com o propósito de verificar se crianças (com a idade média de cinco anos e oito meses) que não haviam frequentado a escola até à sua inserção no PréIII63 e que não possuíam conhecimento de leitura e de soletração apresentavam consciência fonológica ao ingressarem no ensino formal, e se a presença dessa habilidade favorecia a aquisição da leitura e da escrita. Desse estudo, a investigadora concluiu que “crianças que apresentam consciência de que a fala pode ser segmentada e que os segmentos podem ser manipulados adquirem e desenvolvem as habilidades de leitura e de escrita de forma mais eficiente” (Idem: 411). Fazendo uma comparação dos resultados do seu estudo com os resultados de um outro estudo encetado por Capovilla & Capovilla, 1998 (apud Pestun, 2005), M. Pestun concluiu que os sujeitos por ela observados haviam alcançado piores resultados em consciência fonológica do que os do outro estudo, o que levou a autora a levantar duas hipóteses explicativas. A falta de escolarização anterior dos sujeitos observados por M. Pestun, por contraste com os sujeitos da amostra de

63 A Educação Básica brasileira está dividida em Educação Infantil, Ensino Fundamental (inicia-se aos

seis anos, é obrigatório e tem nove anos de duração) e Ensino Médio. A educação infantil é oferecida em creches, para crianças até aos três anos de idade, ou em pré-escolas, para crianças dos quatro aos seis anos de idade. O PréIII corresponde, assim, ao último ano da educação infantil que antecede a entrada no ensino formal.

81 Capovilla & Capovilla, 1998 (apud Pestun, 2005) que frequentavam a escola particular desde o préI, parece confirmar que a instrução formal no sistema alfabético é importante para o desenvolvimento da consciência fonológica. A outra hipótese dizia respeito ao nível socioeconómico de origem das crianças: os pais do estudo de M. Pestun eram maioritariamente semi-analfabetos ou apresentavam poucos anos de escolarização. Provavelmente, aqueles pais liam menos aos filhos e realizavam poucos jogos de linguagem, não tendo por isso despoletado o desenvolvimento da consciência fonológica nesse grupo, ao passo que as crianças da amostra de Capovilla & Capovilla, 1998 (apud Pestun, 2005), pertenciam a uma classe socioeconómica média (Ibidem). Após discussão dos resultados obtidos, esta autora regista as seguintes considerações finais:

As ideias explanadas nos parágrafos anteriores podem levar-nos a concluir que a importância da consciência fonológica se apresenta como uma das causas que influi substancialmente no desenvolvimento das capacidades linguísticas mais abrangentes, tais como a leitura e a escrita, assim como nas capacidades linguísticas mais específicas, como é o caso da ortografia. Contudo, também têm surgido algumas evidências de que a ortografia poderá, de forma inversa, contribuir para facilitar e evidenciar essa consciência fonológica. Assim, N. Ellis (1997) ao reconhecer que a consciência fonológica é importante para a aquisição da leitura alfabética, sublinha igualmente que “c’est d’abord par le biais de l’orthographe, plutôt que par celui de la lecture, que l’enfant prend conscience qu’une stratégie phonologique est utile en ce qu’elle fragmente les relations écriture-parole (Idem: 272-273). Dito de outro modo, a prática precoce da ortografia conduz geralmente à divisão das palavras faladas em fonemas e a representar esses fonemas em letras, quer dizer: a prática ortográfica das palavras proporciona a oportunidade de comparar as informações fonémicas entre letras individuais e sons e estudar a maneira como elas são incluídas na palavra (Ibidem). Nesta sequência, no dizer deste autor, “par la pratique de l’orthographe, l’enfant peut apprécier la relation subtile entre le symbole d’un mot et le son correspondant. La découverte de cette relation est la clef d’entrée dans l’alphabet” (Ibidem). Podemos

“(1) parece existir uma relação causal entre consciência fonológica e ulterior desempenho em leitura e escrita, visto que a consciência fonológica foi medida antes de as crianças terem aprendido a ler e a soletrar; (2) parece existir uma relação de efeito entre o ensino formal no sistema alfabético e o desenvolvimento da consciência fonológica; (3) existem diferentes níveis de consciência fonológica, ou seja, primeiro desenvolve-se a consciência da sílaba e, posteriormente, a consciência do fonema; (4) as habilidades metafonológicas são dependentes da idade, do nível escolar e das formas de ensino ”. (Idem: 411-412)

82 concluir que esta habilidade de reconhecer os aspectos fonológicos da língua é influenciada pela prática da ortografia, estabelecendo-se entre estas duas capacidades uma relação bidireccional.

Um estudo realizado por J. Veloso (2007) veio evidenciar essa influência que o conhecimento ortográfico tem sobre o conhecimento fonológico dos falantes, verificando ao mesmo tempo que “à medida que avançam na aprendizagem da ortografia da língua, os sujeitos sofrem também reconfigurações sucessivas do seu conhecimento fonológico” (Idem: 459). Por outro lado, este autor verificou igualmente que, nos falantes nativos do português, “as capacidades de manipulação fonémica são posteriores às capacidades de manipulação silábica, surgindo somente após e em resultado da aprendizagem da escrita alfabética” (Idem: 460). Nesse estudo, o autor submeteu um grupo de 42 crianças falantes nativas monolingues do português europeu a uma observação longitudinal, tendo estas sido observadas ao longo dos dois primeiros anos de escolaridade, com o intuito de proceder à verificação de três hipóteses. A primeira, já referenciada, situa-se a um nível mais genérico e veio replicar resultados encontrados em estudos anteriores. As segunda e terceira hipóteses também vieram a ser confirmadas, mas num âmbito mais específico da língua. Assim, o autor realizou cinco momentos de observação dos sujeitos do estudo em causa, tendo em vista a coroboração da segunda hipótese, na qual se pressupunha que os falantes, na silabação das sequências Obstruinte+Lateral (por exemplo pl, fl, cl), desdobram as duas consoantes em duas sílabas diferentes e sucessivas e que somente após a aprendizagem da escrita é que essas duas consoantes são associadas numa só sílaba. Desta observação e através dos dados recolhidos, o autor verificou que o número de segmentações heterossilábicas destas duas consoantes diminuiu com o decorrer da escolaridade, tendo dado lugar a um maior número de segmentações tautossilábicas (e, portanto, correctas) dessas duas consoantes. De acordo com J. Veloso, este aspecto confirmou a mudança da representação destas sequências no conhecimento fonológico dos sujeitos, que pode ser atribuída, pelo menos em parte, à aprendizagem da representação ortográfica de tais sequências, como resultado de uma conformação progressiva dessa representação à norma ortográfica da língua, formalmente imposta através da aprendizagem escolar (Idem: 392 e sgtes.). A terceira hipótese aventada por este autor prendia-se com a situação de que na silabação das sequências Obstruinte /ʃ/+Obstruinte em posição medial (por exemplo, fresco) os sujeitos, antes da aprendizagem formal da escrita, não aplicam uma estratégia uniforme de divisão silábica e que a divisão das duas consoantes

83 por duas sílabas diferentes e sucessivas emerge nomeadamente após a aprendizagem das regras de translineação gráfica destas sequências. Deste modo, as dúvidas dos falantes estariam no considerar estes grupos consonânticos como heterossilábicos e necessariamente translineados na escrita (fres//co) ou como tautossilábicos e, consequentemente, não translineados na escrita (fre//sco). Assim sendo, o autor formulou a hipótese de que estas dúvidas de translineação resultariam de um conflito no conhecimento fonológico dos falantes entre essas duas possibilidades de divisão silábica (Idem: 406). Após análise dos dados recolhidos, o autor chega à conclusão que a hipótese anteriormente formulada foi confirmada, visto que se operou uma mudança da representação da divisão silábica destas sequências no conhecimento fonológico dos sujeitos, passando-se de uma fase em que não é visível uma preferência clara das segmentações heterossilábicas destas sequências (final do 1º ano) para uma outra fase em que essa preferência já é consistente no conhecimento fonológico das crianças (Idem: 412-3).

Verificamos que a relação entre a competência ortográfica dos sujeitos e a consciência fonológica dos aspectos fónicos da língua são capacidades que se complementam, existindo uma forte interdependência entre elas. Parece evidente o facto de a linguagem oral ser adquirida pelo falante de forma inconsciente e natural. Tal não implica, no entanto, que sobre esse mesmo conhecimento não se realize uma reflexão explícita e deliberada sobre as suas propriedades fonológicas. Além disso, sendo a ortografia uma capacidade humana que só se adquire através da aprendizagem formal (ao contrário do carácter mais espontâneo e implícito da linguagem oral) implica que a ela sejam associadas determinadas operações cognitivas que passam pela consciencialização progressiva das várias convenções que caracterizam a língua, pelo que, o sujeito deve ser considerado como um sujeito activo e implicado no desenvolvimento da sua própria aprendizagem, para que possa gradualmente operacionalizar diversas habilidades que lhe permitam uma cada vez maior mestria linguística.