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4 REVISANDO A LITERATURA SOBRE FORMAÇÃO HUMANA NO

4.1 A perspectiva hegemônica dos reformadores empresariais da

4.1.2 Competência SIM, Politecnia NÃO!

Em meados da década de 1990, sob a justificativa de responder a um conjunto de mudanças tecnológicas e de organização do trabalho, emergiu um novo paradigma na educação brasileira: o paradigma das competências.

Apesar de ser um conceito polissêmico, ou seja, que assume diferentes significados, de acordo com o contexto que é utilizado, uma das definições mais empregadas no meio educacional tem sido a de Ropé e Tanguy (1997) que consideram a ‘competência’ enquanto conjunto de conhecimentos, qualidades, capacidades e aptidões que habilitam o sujeito para a discussão, a consulta, a decisão de tudo o que concerne a um ofício, supondo conhecimentos teóricos fundamentados, acompanhados das qualidades e da capacidade que permitem executar as decisões sugeridas.

Embora recente, do ponto de vista da sua incorporação no discurso educacional, o paradigma das competências, segundo Ramos (2006, p. 39), aparece para atender a, pelo menos, três propósitos:

a) Reordenar conceitualmente a compreensão da relação trabalho- educação, desviando o foco do emprego, das ocupações e das tarefas para o trabalhador em suas implicações subjetivas com o trabalho; b) Institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e gerir o trabalho internamente às organizações e no mercado de trabalho em geral, sob novos códigos profissionais em que figuram relações contratuais, de carreira e de salário;

c) Formular padrões de identificação da capacidade real do trabalhador para determinada ocupação, de tal modo que possa haver mobilidade entre as diversas estruturas de emprego em nível nacional e, também, em nível regional (como entre os países da União Européia e do Mercosul).

Nessa perspectiva, Ramos (2006) aponta para um deslocamento conceitual no interior das políticas públicas ligadas ao trabalho e à educação. O conceito de qualificação, forjado no contexto do pós-guerra e profundamente ligado às regulações sociais, progressivamente, foi sendo substituído pela noção de competência, supostamente, mais adequada à nova fase de acumulação do capital cujas principais

características são reestruturação produtiva e a flexibilização das relações de trabalho.

No Brasil, coube ao governo FHC (1995-2002) a institucionalização do sistema de competências. Este, por sua vez, como ocorrido em outras partes do globo, não ficou restrito ao mundo da produção de bens e serviços, influenciando, profundamente as políticas educacionais a partir de então.

Ademais, ao mesmo tempo em que o paradigma das competências tornava-se foco central das Diretrizes Nacionais Curriculares (DCNs) do Ensino Médio e da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, aprovadas em 1998 e 1999, respectivamente, também se tornava lugar comum no discurso dos reformadores empresariais da educação.

Apesar dos textos selecionados não apresentarem de forma explícita a defesa desse paradigma por parte dos reformadores empresariais, não há dúvidas da concordância de ambos em relação ao mesmo. Ainda mais, quando em um dos textos Schwartzman (2016) reserva uma seção para tecer um conjunto de críticas ao ensino médio integrado e o conceito de Politecnia. Notem os fundamentos da crítica:

Enquanto, de um lado, o MEC, em parceria com o Ministério do Trabalho e com o setor de educação profissional, trabalhava para implantar no Brasil um sistema de educação técnica baseado nas competências profissionais demandadas pelo mercado de trabalho, de outro, o próprio MEC, sobretudo a partir do Decreto 5.154/2004, passou a estimular a criação de programas de educação profissional integrados ao ensino médio, segundo as concepções de um grupo de autores marxistas com grande penetração nos cursos superiores de pedagogia e nas escolas técnicas públicas. Inspirando-se nos escritos dos anos 1920 de Antonio Gramsci, eles criticam a ideia de que a educação técnica deveria ter como prioridade preparar profissionais para o mercado de trabalho, o que seria alienante e fortaleceria a divisão de classes na sociedade. Eles propõem, em seu lugar, uma educação integral, que rompa a dicotomia entre trabalho intelectual e manual e que dê aos estudantes dos cursos profissionais sólidos conhecimentos científicos e culturais que os tornem cidadãos críticos e ativos. Daí o uso do conceito de “politecnia”, termo definido como “especialização com o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna. Nessa perspectiva, a educação de nível médio tratará de concentrar-se nas modalidades fundamentais que dão base à multiplicidade de processos e técnicas de produção existentes” (Saviani, 2007, p. 161). A mesma concepção foi empregada na definição, pelo CNE, dos ‘eixos’ usados para a classificação das centenas de ocupações profissionais existentes no país. O entendimento é que cada eixo teria o próprio “núcleo politécnico”, que compreenderia “os fundamentos científicos, sociais, organizacionais, econômicos, políticos, culturais, ambientais, estéticos e éticos que alicerçam as tecnologias e a

contextualização do mesmo no sistema de produção social” e que permitiriam que o estudante começasse sua formação em um curso técnico de nível médio, ou mesmo de formação inicial, e pudesse progredir até o curso superior (Brasil. Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação, 2012). (SCHWARTZMAN, 2016, p. 162-163).

Castro (2008) apresenta argumento semelhante. Porquanto, acredita que entre as razões para o MEC voltar a integrar os cursos acadêmicos aos profissionalizantes, estaria o controle da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) por parte de um grupo que há anos defende as ideias do filósofo italiano de orientação marxista Antônio Gramsci, cuja síntese estaria na noção de ‘politecnia’.

Não há que negar a defesa do ensino médio integrado por parte de um conjunto de educadores marxistas, entre eles Gaudêncio Frigotto, Dante Moura, Maria Ciavatta e Marise Ramos. Para esses educadores, a integração entre educação profissional e ensino médio consiste na “travessia” para outra forma de socialização, ao mesmo tempo em que cria a oportunidade para milhões de jovens brasileiros a terem o direito a um ensino médio pleno e uma formação profissional de qualidade.

Em segundo lugar, o conceito de politecnia para esses educadores e educadoras, especialmente os influenciados por Gramsci e Saviani, seria a alternativa pedagógica à pedagogia das competências que, sob o manto de uma suposta neutralidade, naturaliza a dualidade do sistema educacional e reafirma a sociedade de classes. Esta sociedade, que ao longo da história possibilitou uma educação de qualidade para poucos, em detrimento de uma educação de “segunda classe” para maioria.

Outro argumento utilizado por Castro (2005) para negar a ideia de politecnia associa-se à questão da temporalidade do conceito. De acordo com o economista:

Há muitos problemas com a defesa da politecnia. Antes de tudo, ela foi concebida na década de 1920, antes de ocorrerem às revoluções tecnológicas moderna de significado. Além disso, praticamente todos os sistemas de ensino técnico e profissionalizante do mundo se formaram depois disso e todos empreenderam tentativas honestas de aproximar mais o mundo do trabalho (p. 161-162).

Ou seja, para o reformador empresarial não faz sentido defender um conceito, supostamente, “ultrapassado” e que não teria como finalidade aproximar as instituições escolares das necessidades atuais do mercado de trabalho.

Por último, o principal argumento apresentado por Castro (2005) é que, a politecnia, na verdade, é uma utopia. Nas palavras do autor:

[...] o que é mais importante é que a politecnia é uma utopia, já que não existe escola alguma no mundo que tenha adotado esse modelo em sua forma pura. Comparar qualquer sistema existente com uma utopia não gera uma discussão frutífera porque estaremos comparando uma coisa que traz as imperfeições do mundo real com a pureza de algo que só existe na imaginação (p. 162).

Sobre a ideia de utopia cabe recordar Galeano citando Birri, quando diz que:

Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. Para qué sirve la utopía Para eso sirve: para caminar (GALEANO, 2001, p. 30).

Portanto, diferente da noção de utopia apresentada por Castro, o conceito de politecnia, enquanto fundamento da educação básica-profissional, traz como horizonte a perspectiva de uma formação integral e integrada para todos,

independente de classe, gênero e/ou raça e questões geográficas. Paralelamente,

recupera a perspectiva da universalização da escola pública, gratuita e de qualidade, voltada para as necessidades dos seres humanos em suas múltiplas dimensões (social, cultural, econômica e política).

Não obstante, a incorporação do conceito de politecnia nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) e nos currículos das instituições educacionais de nível médio técnico reafirma a necessidade de promover uma formação para além da preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e para as demandas imediatas do mercado de trabalho. Ou seja, uma formação que contemple, de fato, as diversas dimensões da vida humana.