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4 REVISANDO A LITERATURA SOBRE FORMAÇÃO HUMANA NO

4.2 A perspectiva contra-hegemônica dos educadores e educadoras

4.2.1 Politecnia e a luta pela formação omnilateral no ensino médio

A luta por identidade e sentido próprios para o ensino médio não é nova. Em um esforço de recuperação do passado mais recente, constamos que, na gênese da Lei nº 9.394/1996 (2ª LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), esteve presente a discussão sobre a concepção e os princípios norteadores do ensino médio. De um lado, a defesa da educação geral integrada à formação profissional lato sensu, na perspectiva da politecnia, constante no primeiro Projeto de Lei do Deputado Otávio Elísio (FRIGOTTO, CIAVATTA; e RAMOS, 2005), de outro a separação entre educação básica e formação profissional (MOURA, 2010, p. 2).

Conforme observado no início da seção 4, entre as décadas de 1980 e 1990, duas posições sobre formação humana, no contexto do ensino médio e técnico, ganharam destaque no cenário educacional brasileiro.

A primeira delas, representada pela perspectiva dos reformadores empresariais da educação, cujo conteúdo, em linhas gerais, pôde ser apreendido entre as seções secundárias 4.1 e 4.3, saiu vitoriosa nas disputas em torno da segunda LDB, o que permitiu a inserção do paradigma das competências nos currículos escolares e a separação entre educação básica e formação profissional entre 1997 e 2004.

Já a segunda posição, fundamentada na politecnia e na integração entre educação geral e formação profissional, apesar de derrotada pelo governo FHC, continuou a ser defendida por um conjunto de educadores e educadoras progressistas que, sob um ponto de vista contra-hegemônico à lógica do capital, mantiveram a reflexão e a disputa sobre a temática, especialmente no meio acadêmico.

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Cabe registrar que para a elaboração das seções terciárias (4.2.1 a 4.2.3) também recorri a outras referências.

Sobre o tema da politecnia, objeto dessa seção, inicialmente, cabe registrar dois aspectos importantes apontados por Saviani (2003) no artigo Choque teórico da politecnia: O primeiro deles, é que “o conceito de politecnia integra a tradição socialista – que sofreu um profundo abalo com o desmoronamento das experiências denominadas ‘socialismo real’, fenômeno ocorrido no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 do século XX [...]” (p. 144). Já o segundo aspecto, em certa medida vinculado ao primeiro, sugere que a noção de politecnia deriva, basicamente, da problemática do trabalho. Ou seja, ao adotar a categoria trabalho como ponto de referência, Saviani (2003) reafirma o legado marxista sobre a centralidade dessa categoria para a compreensão da vida social, ao mesmo tempo em que a eleva a condição de princípio educativo geral e base de organização da educação escolar.

Entretanto, diferente do ponto de vista dos reformadores empresariais, que transformaram a categoria trabalho em uma categoria econômica subsumida à práxis produtiva, a perspectiva contra-hegemônica, defendida pelos educadores e educadoras progressistas, reforça a dupla dimensão do trabalho – ontológica e histórica – substanciada na citação de Ramos (2005, p. 107-108):

Primeiramente, como característica inerente ao ser humano de agir sobre o real, apropriando-se de seus potenciais e transformando-o. Por isto, o trabalho é uma categoria ontológica: é inerente à espécie humana e primeira mediação na produção de bens, conhecimentos e cultura (LUKÁCS, 1978). Numa segunda dimensão está o trabalho nas suas formas históricas, que, na sociedade capitalista, caracteriza-se como trabalho assalariado. Vendendo sua força de trabalho a outrem, o trabalhador recebe um valor por meio do qual ele pode satisfazer as necessidades básicas. Nesta sociedade, a satisfação dessas necessidades tende a se reduzir à sua reprodução material. Mas o direito à plena existência humana não permite transgredir as condições necessárias para que o ser humano viva inteiramente como ser social, e por isto, cultural.

Sem deixar de reconhecer à predominância da dimensão histórica do trabalho sobre a dimensão ontológica, e da hegemonia do trabalho assalariado na sociedade capitalista, esses mesmos educadores, ao reafirmarem a noção de politecnia enquanto fundamento da formação omnilateral, apontam para a necessidade de superação das divisões provocadas por essa forma de sociabilidade, que tem a

propriedade dos meios de produção102 e à divisão social e técnica do trabalho como dois dos seus principais pilares.

No âmbito da formação humana, uma das principais divisões que ocorrem na educação escolar brasileira diz respeito à separação entre ensino médio e educação profissional. Para o conjunto de educadores críticos, essa separação tem contribuído para uma formação unilateral, fragmentada, mutilada, ou seja, que impede milhares de jovens e adultos a compreender a realidade em suas múltiplas dimensões.

Em tempo, ao defenderem a noção de politecnia, os educadores e educadoras progressistas também chamam à atenção para o cuidado que se deve ter quanto ao

uso desse conceito. A experiência no Brasil da profissionalização compulsória103 em

nível de segundo grau (atual ensino médio) se constituiu em um verdadeiro fracasso, haja vista a falta de condições estruturais para a sua implantação bem como a

resistência de diversos setores, especialmente do setor privado. Sobre isso Saviani

(2003) reflete que:

Politecnia, literalmente, significaria múltiplas técnicas, multiplicidade técnicas, e daí o risco de se entender esse conceito como a totalidade das diferentes técnicas fragmentadas, autonomamente consideradas. A proposta de profissionalização do ensino de segundo grau da lei 5692/71 (Brasil, 1971), de certa forma, tendia a realizar um inventário das diferentes modalidades de trabalho, das diferentes habilitações, como a lei chama, ou das diferentes especialidades. A escola de segundo grau teria a tarefa de formar profissionais nas diferentes especialidades requeridas pelo mercado de trabalho. E é por isso que, no apêndice do parecer 45/72, listavam-se mais de uma centena de habilitações, e ainda ficava em aberto a possibilidade de se incluírem outras que tinha escapado à argúcia ou à capacidade inventariante dos conselheiros. Os conselheiros estaduais também poderiam acrescentar outras habilitações consideradas necessárias sob sua jurisdição. Caso se entendesse a que a questão nesses termos e se a politecnia fosse o conjunto da totalidade das técnicas disponíveis, haveria uma relação sempre incompleta, sempre sujeita a acréscimo (SAVIANI, 2003, p. 140).

Em face do exposto, é necessário considerar, portanto, que, para a perspectiva contra-hegemônica, politecnia não deve ser compreendia em seu sentido literal, ou

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Segundo Frigotto (2005, p. 62) é crucial que se distinga a propriedade que temos de determinados objetos ou coisas que são para uso de quem as possui – casa, carro, terra, etc. com a propriedade privada que no capitalismo que é utilizada como capital pata incorporar trabalhadores assalariados que produzam para em tem esse capital.

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Sobre a Lei 5.692/1971, recomendo a leitura do trabalho “A Profissionalização do Ensino na lei nº 5692/71” apresentado pelo INEP à XVIII Reunião Conjunta do Conselho Federal de Educação com os Conselhos Estaduais de Educação (1982). Disponível em:

seja, como múltiplas técnicas, mas, enquanto o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho (grifo meu) o que eleva à concepção de formação humana a outro patamar. Ou seja, à formação politécnica ou omnilateral busca romper, justamente, com uma perspectiva de formação específica, voltada quase que exclusivamente às necessidades do mercado de trabalho, que, em termos práticos, se tornou uma verdadeira contradição na atual fase do desenvolvimento do capital, pois cada vez mais o empresariado tem buscado profissionais com formação geral sólida.

Dito isso, vejamos a citação de Saviani (2003, p. 140) sobre o conceito de Politecnia:

Politecnia diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Está relacionada aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho e tem como base determinados princípios, determinados fundamentos, que devem ser garantidos pela formação politécnica.

Nessa direção, corroborando com a perspectiva de Saviani (2003), Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 35-36) destacam que:

O ideário da politecnia buscava e busca romper com a dicotomia entre educação básica e técnica, resgatando o princípio da formação humana em sua totalidade em termos epistemológicos e pedagógicos, esse ideário defendia um ensino que integrasse ciência e cultura, humanismo e tecnologia, visando ao desenvolvimento de todas as potencialidades humanas. Por essa perspectiva, o objetivo profissionalizante não teria fim em si mesmo, nem se pautaria pelos interesses do mercado, mas constituir-se-ia numa possibilidade a mais para os estudantes na construção dos seus projetos de vidas, socialmente determinados, possibilitados por uma formação ampla e integral.

Porém, diante das dificuldades estruturais – consolidação das relações capitalistas e manutenção da dualidade educacional – e conjunturais – falta de financiamento, infra-estrutura, quadro de profissionais aptos a desenvolver essa concepção de formação – no início dos anos 2000, a maioria dos educadores e educadoras progressistas passaram a defender uma solução transitória para a formação de nível médio, o Ensino Médio Integrado (EMI). Assim o EMI, que, apesar de não poder ser confundido com a Educação Politécnica, segundo eles, contém o germe para a sua constituição.

Destarte, com a mudança na presidência da república, saída de FHC (2002); entrada de Lula, em 2003, e a revogação do Decreto 2.208/1997 pelo Decreto

5.154/2004, o EMI, a partir de uma base unitária, fundamentada na integração entre os princípios do Trabalho, da Ciência, da Tecnologia e da Cultura, passou a ser visto como a possibilidade de ‘travessia’ em direção à superação da concepção educacional até então predominante, pautada na separação entre educação básica e educação profissional e na pedagogia das competências.

Apesar do contexto mais favorável em relação ao governo FHC, Moura (2010), ao analisar o ensino médio no Brasil “do real ao ideal, passando pelo possível” (p. 1), destaca que, a efetivação do EMI no Brasil tem ocorrido de modo contraditório mediante duas possibilidades:

A primeira, assentada exclusivamente nos princípios da politecnia ou educação tecnológica, não inclui a profissionalização stricto sensu, ou seja, é o ensino médio baseado na integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura. A segunda é o ensino médio igualmente fundamentado nos princípios da politecnia, mas integrado também a uma formação profissional específica, ou seja, ensino médio integrado à educação profissional. (MOURA, 2010, p. 4).

No entanto, mesmo com essas duas possibilidades, o que se tem observado desde a revogação do Decreto 2.008/1997 é que as instituições educacionais, assim como os profissionais da educação, em sua maioria, ainda não se apropriaram da concepção teórica que fundamenta o EMI, fazendo com que haja um distanciamento entre o pensado e o praticado. Além disso, como foi destacado em outras passagens dessa tese, há contradições e disputas em torno da efetivação do EMI no Brasil – o que demonstra a atualidade do tema e a necessidade de compreensão dos seus fundamentos.

Ante o quadro apresentado, e no sentido de fortalecer a compreensão da base teórica que fundamenta o EMI, na próxima seção abordo os princípios do Trabalho, Ciência, Tecnologia e Cultura enquanto elementos indissociáveis da formação humana.

4.2.2 Ensino Médio Integrado (EMI) e os princípios do Trabalho, Ciência, Tecnologia e