• Nenhum resultado encontrado

4 REVISANDO A LITERATURA SOBRE FORMAÇÃO HUMANA NO

4.1 A perspectiva hegemônica dos reformadores empresariais da

4.1.1 Ensino médio com sabor de jabuticaba

“Modelo inédito no mundo”. “Currículo extremamente carregado e que mais parece uma camisa de força”. “Se só existe aqui e não é uma jabuticaba será que pode prestar?” “É estarrecedor que não se critique essa aberração. Só o Brasil paga o preço dessa utopia impossível”.

São com esses argumentos e questionamentos que Castro (2008; 2011) e Schwartzman (2010; 2016), há mais de uma década, vêm defendendo a reformulação do ensino médio brasileiro.

Amparados, supostamente, em comparações internacionais, os autores, em diversas passagens dos textos supracitados, apresentam o modelo americano das

comprehensive high schools e a solução clássica européia para demonstrar que, em

pleno século XXI, o Brasil estaria na contramão dos países mais bem sucedidos do globo, no que diz respeito ao ensino secundário.

Nas comprehensive high schools americanas, por exemplo, Castro (2008, p. 117) destaca que:

[...] todos os alunos de uma determinada área geográfica deverão ir para a mesma e única escola. Contudo, dentro de cada escola, há

89

Existem duas versões do texto “Ensino médio: órfãos de ideias, herdeiro de equívocos. A primeira, selecionada para análise, foi publicada em 2008, no v.16, n.58 da Revista Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação da Fundação Cesgranrio (p. 113-124). Já a segunda, faz parte do livro “Os tortuosos caminhos da educação brasileira: pontos de vistas impopulares da Editora Penso, 2014 (p. 119-128). Como houve mais ajustes de forma do que conteúdo optei pela utilização da primeira versão.

oferta diversificada, com disciplinas preparando para o superior e outras de formação profissional.

Além disso, a mesma disciplina pode ser oferecida com níveis diferentes de exigências. Há também disciplinas acadêmicas de cunho mais aplicado, para os menos afeitos à abstração. E há as muito mais abstratas, para outro perfil de alunos. Cada aluno pode escolher seu cardápio de cursos, de acordo com suas preferências e aptidões. Pobres e ricos, futuros filósofos, médicos, carpinteiros e bancários vão para a mesma escola. É o ideal democrático americano em ação. Uns aprendem a soldar, outros estudam os diálogos de Platão ou até sânscrito.

No que diz respeito ao contexto europeu, sobretudo na França,

O modelo dominante lida com a variedade de interesses e competências dos alunos, mediante a criação de alternativas escolares para cada perfil. Por exemplo, na França há cursos profissionalizantes que dão e que não dão acesso ao superior, sem abrir mão da profissionalização. E há os cursos que levam ao baccalaunfat (bacharelado), com vários sabores: os futuros poetas evitam as matemáticas, outros chafurdam nas equações, uns são mais difíceis, outros menos recheados de teorias (CASTRO, 2011, p. 1).

No caso do modelo brasileiro, na teoria é oferecida “a mesma escola para todos, mas na prática não oferece nada para ninguém, nem um ensino que preste”. Ademais, ainda discrimina os mais pobres. (CASTRO, 2008, p. 123).

Corroborando com a crítica ao “modelo inédito no mundo” ou “Ensino Médio com sabor de jabuticaba”, metáfora empregada por Castro (2011), Schwartzman (2010) argumenta que o ensino médio brasileiro possui duas grandes anomalias: “A primeira, é a presunção de que todas as pessoas deveriam completá-lo seguindo em grande parte o mesmo programa de formação [...]. A segunda é que seu currículo é extremamente carregado, com cerca de 14 disciplinas ou matérias obrigatórias” (SCHWARTZMAN, 2010, p. 1).

Para Schwartzman (2010), a combinação dessas duas anomalias levaria a uma terceira: a exigência de que os estudantes matriculados em cursos técnicos de nível médio (forma integrada e concomitante) também cursassem o currículo tradicional do ensino médio, fazendo com que tivessem vinte (20) ou mais matérias obrigatórias em três anos.

Com base na realidade brasileira, para os autores supracitados, o início da ruptura em relação ao “modelo único” se daria pela diversificação de trajetórias formativas no ensino médio. Ainda segundo eles, “não é possível dar uma educação de qualidade que pretenda ensinar um pouquinho de tudo como no Brasil; as pessoas

precisam optar e se concentrar naquilo que mais gostam ou que tenham condições de aprender” (SCHWARTZMAN, 2010, p. 14).

Outro argumento utilizado por Schwartzman (2010), para defender a diversificação do ensino médio, estaria relacionado às diferenças dos meios sociais e do capital cultural dos estudantes, assim como suas diferenças individuais de motivação e mesmo capacidade intelectual. Para o autor, os estudantes não deveriam ser forçados a seguir sempre o mesmo currículo, ainda mais sendo enciclopédicos como os do ensino médio brasileiro.

Associada a diversificação, Schwartzman (2010) defende a redução no número de disciplinas obrigatórias nos currículos. Para ele, haveria um “consenso” no mundo que todos os jovens deveriam ter as mesmas oportunidades educacionais e acesso ao núcleo comum de conhecimento. Por outro lado, o próprio Schwartzman (2010) reconhece que não há clareza do que seria esse núcleo comum, além do domínio da língua e dos conhecimentos básicos da matemática.

Já Castro (2008) acredita que o preço de ensinar demais aos alunos é eles aprenderem de menos. Ou seja, o “inchaço curricular”, expressão utilizada pelo autor, impede que haja qualquer profundidade no tratamento do que é ensinado. Isto faz com que, de fato, se aprenda muito pouco na escola. Ainda segundo ele, os currículos do ensino médio precisam ser claramente explicitados. Assim deve ser ensinado não necessariamente o que os educadores gostariam que os estudantes aprendessem, mas o que, realisticamente, eles poderiam aprender.

Quanto ao ensino médio-técnico, objeto de nossa investigação, Castro (2008) entende que tem sido a única exceção em relação ao nosso “modelo único”. Porém, como contém todas as disciplinas obrigatórias do currículo tradicional, tornou-se um ensino médio com um técnico a ele aposto, o que combina com a terceira anomalia supracitada por Schwartzman (2010).

Contudo, no meio educacional, há posicionamentos contrários em relação às teses do “modelo único” e “currículo inchado”, defendidas pelos reformadores empresariais da educação. Moraes (2017), em artigo que analisa o ensino médio brasileiro, a partir de comparações internacionais com a Finlândia e Inglaterra, nega a ideia do “modelo único”.

Ao analisar o discurso da atual secretária executiva do MEC, Maria Helena Souza Castro, sobre a reforma do ensino médio via Medida Provisória (MP), a autora faz a seguinte afirmação:

Cabe enfatizar, em primeiro lugar, que a organização do ensino médio brasileiro não é ‘única no mundo’. Ao contrário, a organização da educação secundária (denominação mais freqüente e consagrada na região para a etapa localizada entre o ensino primário e superior) de alguns países da Europa apresenta elementos comuns como se propõe indicar (MORAES, 2017, p. 408).

Moraes (2017) prossegue a análise afirmando que os países, cujos sistemas de ensino têm mantido uma base comum por mais tempo na escolaridade básica obrigatória, são os que vêm alcançando os melhores resultados educacionais, inclusive no Programme for International Student Assessment (PISA), Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, diversas vezes citado pelos reformadores empresariais para justificar a atual reforma do ensino médio brasileiro.

A partir da afirmação de Moraes (2017), torna-se, no mínimo, questionável o argumento da diversificação enquanto estratégia para a melhoria dos resultados educacionais no ensino médio, haja vista que, se levarmos em consideração a Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, haverá uma redução da Base Nacional Comum (BNC) de 2.400 horas (mínimo) para 1.800 horas (máximo).

Já em relação à quantidade de disciplinas obrigatórias, Freyre (2014) destaca que o problema não reside, em si, na quantidade, mas na forma como as disciplinas são organizadas no currículo e na pouca autonomia e liberdade conferida aos gestores, professores e alunos para dispor e escolher as disciplinas conforme os respectivos interesses.

Apesar da última parte do argumento de Freyre (2014), aparentemente, se aproximar do discurso dos reformadores empresariais, o mesmo não compartilha da ideia de redução da Base Nacional Comum (BNC), pois:

Uma reforma curricular não pode prescindir da tarefa de fomentar ferramentas intelectuais para a compreensão da sociedade, isto é, de como ela em seus mais diversos aspectos se conecta e impacta a vida dos indivíduos, em suas oportunidades, seus modos de ser e agir, suas aspirações, os problemas que enfrentam cotidianamente, as decisões que precisam tomar ao longo de suas vidas etc. Sem isso, abortam-se, aliás, as próprias condições de reflexão que, por exemplo, uma reforma educacional exige. Não há como mudar uma sociedade e construir as reformas necessárias sem compreender o que conforma esta sociedade e mantêm determinadas estruturas e padrões de relações sociais que tolhem as transformações aspiradas para a vida dos indivíduos e para o desenvolvimento, num sentido amplo, do país (FREYRE, 2014, p. 1)

Assim, diferente de Schwartzman (2010), que acredita que o núcleo comum deva ser formado basicamente pelo domínio da língua e dos conhecimentos básicos da matemática, Freyre (2014) demonstra a importância de irmos além do currículo mínimo, com a presença, por exemplo, da Filosofia, Sociologia e Artes na última etapa da educação básica.

Por tudo que foi citado, entendo que a tese do “modelo único” e do “inchaço curricular” consistem em uma estratégia ideológica dos reformadores empresariais para descaracterizar o sentido do ensino médio enquanto etapa final da educação básica. Ao defenderem a diversificação do ensino médio com base em uma carga horária máxima – e não mínima – destinada ao que se passou a chamar de Base Nacional Comum Curricular (BNCC), esvazia-se a concepção de formação geral dos estudantes. Sem contar, os graves problemas de formação advindos do ensino fundamental, especialmente para uma parcela expressiva de estudantes que, historicamente, tem sido negada uma formação de qualidade.

Portanto, na teoria, a possibilidade de currículos diversificados e que pudessem

ser escolhidos90 pelos jovens e adultos de acordo com suas “aptidões” e

“preferências” é uma ideia sedutora, mas, ao resgatar a história da educação escolar brasileira e associá-las as últimas medidas do governo Temer (2016-) – Teto para os gastos públicos91, Lei da Terceirização92, Reforma Trabalhista93 e a própria reforma do ensino médio – dificilmente isso acontecerá. O que, praticamente, interditará a

90

A própria Lei que institui a atual reforma do ensino médio não determina a oferta de todos os itinerários formativos pelas escolas, o que indica que, na prática, a maioria dos estudantes não terá o direito de escolher. Ou seja, criou-se uma narrativa da “escolha” sem que as condições para sua efetivação tenham sido garantidas. O que demonstra, no mínimo, uma irresponsabilidade do atual governo.

91

Cf. BRASIL. Emenda Constitucional nº 95 de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União (DOU) Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm>. Acesso em: 20 fev. 2017.

92

Cf. BRASIL. Lei 13.429 de trinta e um de março de 2017. Altera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, Diário Oficial da União (DOU) Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.

93

Cf. BRASIL. Lei 13.467 de treze de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, Diário Oficial da

União (DOU) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

aspiração de milhares de estudantes a terem acesso a uma educação pública, gratuita e de qualidade.