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4 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.4 COMPETÊNCIA X INCOMPETÊNCIA

A tecnologia pode fabricar, nos sujeitos, novas habilidades ou inabilidades, despertando sentimentos de valorização e desvalorização.Tudo o que difere do padrão de “excelência” pode ser classificado, julgado e até punido – por exemplo, o trabalhador menos preparado para o uso das ferramentas tecnológicas (MENDIETA; MARTENS; BELFORT, 2014; FOUCAULT, 1987).

Esses sentimentos, como já discutidos anteriormente, são produtividades do poder. O sentimento de incompetência e o receio pelo julgamento, o esforço em mostrar competência, principalmente para a chefia imediata, foram comportamentos identificados nas entrevistas, e que sugerem a combinação desse paradoxo tecnológico com o “Sistema das Diferenciações”.

Os relatos das entrevistas sugerem que o esforço em parecer competente pode estar atrelado ao fato de os servidores se sentirem examinados, julgados, por suas chefias e pares. Para Silveira (2005, p. 76), “o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as sanções que normalizam, configurando-se como um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir”. Essa atenção sugere uma diferenciação sobre os demais, o que Foucault chama de “cerimônia do poder”, uma demonstração de força e estabelecimento da verdade. “No coração dos processos de disciplina, ele (o exame) manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam” (FOUCAULT, 1987, p. 154).

Em “Vigiar e punir”, Foucault (1987) cita o controle dos corpos em espaços racionais que propiciam o adestramento, mencionando as escolas e os ambientes

religiosos, e como o poder pastoral nesses ambientes guia e examina o seu “rebanho”.

A figura do gestor na instituição parece funcionar como um diretor da consciência do grupo, examinando, cuidando, dirigindo e, quando necessário, compensando ou reprimindo aqueles que estão sob sua tutela (VEIGA-NETO, 2001).

Por vezes, aquele que é investido de autoridade e considerado o mais competente é justamente o que mais sofre os efeitos de poder, pois, por ocupar uma posição hierárquica superior, recebe cobranças próprias e pressões exteriores. Então, para se mostrar mais competente e merecedor do cargo de confiança, serve mais docilmente ao modus operandi da instituição e, para isso, se apoia nas tecnologias, como se pode perceber na fala seguinte:

Por outro lado, quando eu estive substituindo a chefia imediata como diretor, eu ficava muito apreensivo por... Algumas vezes eu recebia mensagens de noite, em casa, de manhã cedo, 07 horas da manhã e isso me causava uma apreensão, e eu ficava pensando: ‘nossa tenho que responder logo, tenho que resolver’ pela responsabilidade do cargo, pela confiança que me havia sido dada (S12).

Os “Graus da Racionalização” regulam o funcionamento das relações de poder, utilizando as tecnologias. Vale ressaltar que as ferramentas tecnológicas também podem gerar uma falsa sensação de competência, quando, no afã de repassar a demanda, diante da facilidade de um clique, o sujeito faz seu trabalho de modo superficial ou incompleto. Ele considera ter feito a “entrega”, mas, na verdade, acaba mobilizando outras pessoas, conforme se destaca no relato a seguir:

O WhatsApp passa uma falsa sensação de problema resolvido, então, eu acho que esse é um fator que também contribui em específico com a comunicação. O cara do câmpus tira 4 ou 5 fotos, manda um áudio de 1 minuto, passa para frente, entendeu? O cara quer que quem de fato recebeu aquela informação esteja satisfeito com aquilo, e faça daquilo um produto publicável. Então, essa facilidade de comunicação que o WhatsApp trouxe ela dá essa sensação de cumprimento de serviço, entendeu? (S9). Entre aqueles que lidam melhor com as tecnologias, o sentimento de competência é mais presente, no entanto, aqueles que não conseguiram se adaptar com a velocidade das mudanças podem carregar consigo receio e até aversão.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000, era comum se encontrar pessoas que tinham medo de computadores, achavam que qualquer toque num botão errado poderia estragar tudo. Ainda hoje, no entanto, é possível encontrar alguma pessoa com esse mesmo receio; pessoas com inaptidão, que não foram

capacitadas, que não conseguiram adotar estratégias de enfrentamento contra seu desconhecimento ou fobia.

O certo é que, com o passar dos anos, os desafios tecnológicos do século XX são diferentes dos do século XXI, mas as pessoas continuam lutando com sentimentos dúbios frente à tecnologia, conforme se contata no trecho de S12: “São poucos os que te perguntam se você tem alguma dificuldade com a utilização dessa ferramenta, dessa tecnologia, se você permite ser colocado no grupo ou não” (S12).

O WhatsApp, como tecnologia, pode colaborar com o sentimento de competência a partir do momento que, mais rapidamente, deixa as pessoas “por dentro” dos acontecimentos. É nessa perspectiva que seguem as falas de S2, S4 e S9, relatando o que ocorre frente aos grupos de WhatsApp:

Eu senti que era importante e que vários assuntos eram tratados ali, e se eu não me incluísse eu estaria ficando à margem de alguma situação ou algum assunto que poderia ser importante para o desempenho das minhas atividades (S2).

Não é só uma cobrança externa, mas é uma cobrança da gente de não se sentir confortável de ver todo o conjunto de pessoas que estão relacionadas com aquele tema participando e você alheio. Fica estranho (S4).

Mas não me senti assim forçado, e sempre tive a liberdade para sair, quanto para as pessoas saírem. No meu caso em específico, que ocupo uma função de direção, eu acho que faz parte da minha função estar em alguns deles, em especial os que reúnem os gestores todos da instituição, enfim são importantes para o meu trabalho (S9).

Segundo Guimarães (2000), o desafio que se coloca para a administração pública é o de transformar estruturas burocráticas, hierarquizadas e que tendam a um processo de insulamento, em organizações flexíveis e empreendedoras. Essas investidas na racionalização organizacional se apoiam, em parte, nas tecnologias, na busca por eficiência. No entanto, quando não há planejamento e estruturação adequados, o que se encontre é a ineficiência. Percebe-se, portanto, que o discurso da competência hierarquiza, classifica e normaliza os sujeitos trabalhadores. Os efeitos da sujeição estão nas identificações e nos estados assumidos por todos aqueles que usam a tecnologia (WhatsApp) para aquecer a sua lógica verticalizada de poder.