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4 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.2 LIBERDADE X ESCRAVIZAÇÃO

Refletir sobre a coexistência nas relações de poder aproxima a discussão do paradoxo tecnológico da “Liberdade X Escravização”, o qual indica que a tecnologia pode facilitar a independência ou trazer menos limitações, ou, levar à dependência e a mais limitações aos seus usuários (MENDIETA; MARTENS; BELFORT, 2014).

Para Santos (2011a), essa dupla faceta da tecnologia permite entendê-la de modo paradoxal, pois os meios de comunicação ao mesmo tempo em que nos prendem, geram um sentimento de liberdade individual, de que todo cidadão é cidadão do mundo (FELTEN, 2017). Nessa perspectiva, e pensando o mundo do trabalho, as tecnologias da comunicação podem tanto permitir a suavização da carga de trabalho, quanto o seu contrário. Ou, ainda, podem suprimir o controle excessivo, ou, inversamente, intensificá-lo.

Ao analisar a “Liberdade X Escravização” associada à categoria genealógica

“Sistema das Diferenciações”, o que se constatou nas entrevistas foi,

principalmente, servidores de topo atribuindo aos servidores de posições hierárquicas de base o tratamento displicente quanto ao uso excessivo do WhatsApp para encaminhamento de solicitações. Essa displicência sem limites de dias e horários pareceu despertar uma hiperconexão, um “nunca logoff” em parte dos entrevistados. A respeito disso Felten (2017) afirma:

O telefone celular permite que o empregador (ou chefia) contate o empregado mesmo após a jornada de trabalho, pois o trabalhador hoje é um ser conectado ao mundo globalizado, é um ‘cibertrabalhador’, que tem celular e internet, e faz uso dele sempre que lhe convém. Uma nova ferramenta que veio facilitar ainda mais a comunicação via telefone celular foram os grupos do WhatsApp, que logo permitiu que o empregador criasse a figura dos ‘grupos de trabalho do WhatsApp’. O mau uso destes pelos empregadores causa a hiperconexão do trabalhador e viola os direitos fundamentais à privacidade, ao lazer, ao repouso e à saúde, pois o

empregado permanece conectado com seu contrato de trabalho 24h por dia, sábados, domingos e feriados (FELTEN, 2017, p. 121).

Tendo em vista que não há nenhuma lei que torne obrigatório o uso do WhatsApp no serviço público federal, gestores que pressionam para o uso compulsório do WhatsApp contribuem para um excesso nas relações de trabalho que pode gerar efeitos nocivos aos trabalhadores. Dito de outro modo, essa pressão pode ocasionar patologias, até porque é prejudicial “tudo que passa da medida, tudo o que é excessivo, exagerado. Relaciona-se à perda do senso de realidade de uma pessoa, que superestima suas capacidades, habilidades e competências, sobretudo quando está numa posição de poder” (NIETZSCHE, 2017, p.179).

Entretanto, ao que parece, algumas chefias excedem os limites da jornada de trabalho e tentam, por práticas sujeitadoras, impor suas vontades (FOUCAULT, 2004). Percebe-se essa situação na fala de S8, que é muito semelhante às falas de S1 e S4.

Eu já tive problemas com chefia, de me mandar. Na época, era uma questão que podia ser resolvida no outro dia, e a pessoa me mandou mensagem onze horas da noite, quase meia noite, querendo discutir o assunto e brava porque eu não respondi (...). Eu sinto diferença em algumas chefias, não a minha, delas não gostarem de os servidores não usarem o WhatsApp, ou que não queiram participar do grupo. Eu acho que elas estão querendo disponibilidade o tempo todo, mas a pessoa pode querer só utilizar o WhatsApp pessoal e não querer utilizar para o trabalho, e não tem como obrigar ela a fazer isso. Acho que incomoda algumas pessoas, tanto que algumas saem dos grupos, mas tentam colocá-las de volta e isso causa uma situação chata. Eu já vi gente saindo e sendo colocada de volta, e eu acredito que é porque essas pessoas acham comum fazer essa gestão pelo WhatsApp e acham que as pessoas têm que ficar disponíveis e elas têm que achar normal. Só que eu acho que é um pouco de invasão. Tem que ter um limite que ainda não está bem definido dentro da instituição (S8).

Para Felten (2017), é inegável que se o gestor inseriu seu subordinado no grupo, é porque deseja que ele acompanhe as informações e conversas ali mantidas. Outro ponto é a fiscalização velada (o controle), uma vez que o superior consegue acompanhar quem visualiza as mensagens e interage, fazendo com que o subordinado se sinta desconfortável e impelido a interagir no grupo.

Na medida em que as demandas vêm pelo WhatsApp, a gente, de uma certa forma, está sendo levado a atender essas demandas, e acho que o controle inclui o WhatsApp como uma das formas, pois tu consegues ver se a pessoa está online ou não, tu consegues ver se a pessoa não te responde, tu podes cobrar dela. Então, tu tens ali um controle no sentido de a pessoa estar online, mas não estar te respondendo, acho que é uma informação, a pessoa leu, mas não te respondeu, quer dizer, são funcionalidades do aplicativo que favorecem esse controle e até no sentido de encaminhar demandas (S17).

Em relação à questão de demandas enviadas fora do horário de expediente, S2, S3, S6 e S16, em suas falas, reafirmam esta prática, principalmente no relacionamento com suas chefias ou até outros superiores hierárquicos.

Felten (2017) chama a atenção para o cômputo do tempo de trabalho do empregador fora da esfera de controle presencial ou a distância, que não é mensurado e hoje é relativamente ignorado pelo Direito do Trabalho. As horas de trabalho não computadas também foram pesquisadas por Iversen, Melby e Toussaint (2013), que as nominaram de “trabalho invisível”. O desrespeito ao horário da jornada e às folgas, característico da hiperconexão, foi constatado como fator de prejuízo à liberdade e manutenção da escravização eletrônica nos estudos de Cooper e Lu (2019); Krinski, Goldfarb e Maglio (2018); e Boswell et al. (2016).

Independentemente de o servidor consentir em participar de grupos ou em receber mensagens na forma privada, o trabalho prestado após o término de sua jornada de trabalho se trata de labor extraordinário. A dúvida que paira entre especialistas da área é se, nesse caso, trata-se de teletrabalho, horas extras ou de sobreaviso (FELTEN, 2017).

De acordo com Nascimento (2011, p.13), “se há trabalho, ele toma um tempo de quem vai prestá-lo, logo é impossível trabalhar sem dedicar um tempo a esse trabalho”. Para Estrada (2012), teletrabalhador é aquela pessoa que desenvolve atividades laborais por meio de antigas e novas tecnologias de informação e comunicação, distante da sede da empresa ou da pessoa física para a qual presta serviços.

As posições hierárquicas e a ocupação de função de confiança são apontadas por Foucault (1995, p. 246) como “diferenças de lugar nos processos de produção”, diferenças, que, de forma quase unânime, surgiram nas falas dos entrevistados também como um fator motivador da hiperconexão dos servidores: "(...) parece que, pelo fato de você estar na gestão, você tem que estar disponível 24h para atender às demandas, e é bem ruim. Parece que, por ter FG ou CD, você tem que ter a obrigação de responder a qualquer momento" (S11). Essa fala é corroborada nos relatos de S2 e S12.

Destaca-se, assim, a falta de clareza nos limites das relações de poder, os direitos e deveres dos ocupantes de FG e CD, além da questão cultural da hiperconexão a que são submetidos os servidores. Nesse panorama, os relatos de S15 e S16 são contundentes:

Eu não sei onde está escrito, mas sempre escuto dizer assim: ‘uma vez que a gente ocupou um cargo de direção, você não tem horário’. Não me incomoda, porque eu sempre trabalhei assim, mas, às vezes, eu sinto que alguns colegas possam ficar incomodados com isso, mas isso não quer dizer que eu não me canso. Às vezes, eu estou extremamente cansada, fora do horário de expediente, e já aconteceu inúmeras vezes de eu ter que deixar de jantar, de cuidar de alguma coisa pessoal e atender aquela demanda à noite, isso já aconteceu várias vezes (S15).

Não é algo formal e formalizado. Acho que, entre os diretores, é, porque tem que ter disponibilidade, mas entre FG não. Mas eu acredito que há uma cobrança implícita, que, sim, tu tens que estar disponível, porque tu tens uma FG, e tu tens que trabalhar mais. Eu acho que esse pensamento é de todo mundo, até de quem está abaixo: ‘o cara que tem a FG tem que trabalhar mais’. E isso acaba se estendendo para o aplicativo, vou te dar um exemplo: todos os coordenadores estão nos grupos, e os que não são coordenadores que não, inclusive, uma pessoa que não era do grupo, quando assumiu a FG, entrou no grupo de FG, de gestão, mas não entrou no nosso grupo. A pessoa não estava em um grupo, mas quando assumiu a FG, não sei se forçada, ou constrangida, sentiu a necessidade de entrar no grupo de gestor (S16).

Por fim, ainda no “Sistema das Diferenciações”, foi possível averiguar como o uso do WhatsApp reforça as diferenças nas jornadas entre técnicos e docentes, e, ainda, a diferença entre quem trabalha na reitoria ou nos câmpus. Isso porque reitoria e câmpus funcionam em horários diferenciados, e técnicos e docentes têm uma organização de trabalho também diferente. Desse modo, por vezes, os servidores acabam se demandando por WhastApp fora de suas jornadas.

Foucault (1979) já alertava para o fato de que dispositivos e sistemas tecnológicos estão, quase que invariavelmente, “vinculados” com modos específicos de organizar o poder e a autoridade, e poderiam ser utilizados para a função tripla do trabalho: produtiva, simbólica e de adestramento (ou disciplinar).

Para que a ordenação sistemática das relações de poder e seu encadeamento ocorra, é necessário que se usem as Modalidades Instrumentais, que, como mencionado anteriormente, são os instrumentos utilizados para o exercício do poder (FOUCAULT, 1995).

De acordo com Zapata et al. (2014), embora Foucault não tenha conhecido a internet e os demais recursos do ciberespaço, na forma como estão hoje em dia, ele já enfatizava a relação do desenvolvimento de tecnologias com os dispositivos para o exercício do poder.

Mesmo não existindo uma lei, qualquer regra, que obrigue o servidor, ocupante de cargo de confiança, a carregar um telefone e manter-se conectado 24 horas por dia, o fenômeno do hábito normalizador se instalou com força. Essa

normalização do WhatsApp como fenômeno de hábito é uma das Formas de

Institucionalização abordada pela categoria genealógica de mesmo nome. Os

próprios entrevistados deste estudo mencionam essa “normalização”:

Essa coisa do WhatsApp, ela está muito naturalizada, e ela e parte da jornada, porque, quando eu atendo o WhatsApp de trabalho, mesmo para dizer: ‘olha eu estou de férias’, eu trabalhei 5 minutos durante as minhas férias. Nem que seja para responder depois: ‘te ligo daqui a pouco’, ‘já te retorno’, ‘fulano está em reunião’, isso é trabalho (S3).

Outra maneira de institucionalizar essa forma de comunicação foi cedendo smartphones como um meio de “valorização” dos servidores, os quais se sentem reconhecidos ao receberem um aparelho e números institucionais. Assim, alguns servidores estabelecem quase que uma sujeição voluntária à instituição no modus operandi da hiperconexão.

É a hiperconexão uma geradora de receio frente à oficialização da ferramenta, que poderá gerar o trabalho constante, ininterrupto e “invisível”. Dependendo de como os limites forem postos, poderão escancarar o uso do WhatsApp ao invés de criar limites saudáveis para o uso da ferramenta nas atividades de trabalho.

Fruto da observação participante, durante a pandemia de COVID-19, foi possível registrar um movimento relevante por parte do setor de gestão de pessoas, incluindo a ferramenta do WhatsApp como parte das rotinas de home office. Como exemplo disso, transcreve-se, a seguir, um trecho de comunicação enviada aos servidores da instituição:

Teletrabalho em tempos de pandemia - dicas, sugestões e apoio para gestores: Acordem com o grupo quais os horários de uso da ferramenta Whatsapp. Estamos em um cenário que não temos barreiras entre trabalho e vida pessoal. Para isso, precisaremos do apoio de todos para conseguirmos controlar e respeitar esses espaços tão importantes. Orientem os professores acordarem isso com seus alunos também. Eles devem receber muitas mensagens de alunos, além de todos outros turbilhões de notícias sobre a pandemia (Trecho retirado do documento enviado pela instituição em março/2020).

Também no final de março de 2020, a instituição encaminhou uma pesquisa, intitulada “Pesquisa de Monitoramento”, a qual buscava verificar como se deu a primeira semana de trabalho remoto e se as pessoas possuíam todas as ferramentas necessárias para desempenho das atividades (computador, internet, telefone etc.), para, assim, a instituição se munir de informações, visando a construção de um plano de trabalho remoto, que, certamente, incluiria o uso do WhatsApp como ferramenta relevante.

Em seguida, no dia 31 de março de 2020, foi a vez de o governo federal encaminhar e-mail com orientações para todos os servidores federais, intitulado de “Ao Trabalho!”, estruturado com as seguintes perguntas: “Está em trabalho remoto? Vamos checar se está tudo ok?”. Adiante, com o subtítulo “Kit de ferramentas”, elencando o que é necessário para o trabalho remoto, lia-se: “WhatsApp: não pode faltar a ferramenta mais utilizada no Brasil”, finalizando o texto com: “O ideal é que as informações de contato do time estejam disponíveis e de fácil acesso para todos. Conecte-se e bom trabalho” (BRASIL, 2020). Outros e-mails se sucederam dando dicas de organização do trabalho em casa e o que as chefias e os subordinados poderiam fazer para amenizar possíveis transtornos de conciliação entre trabalho remoto e rotina familiar, confinamento domiciliar.

Todos esses fatos fizeram surgir uma preocupação no grupo que representa os servidores, calcada, principalmente, no fato de que a pesquisa/plano de trabalho da instituição havia sido construído apenas por gestores, sem a participação de representantes de outros segmentos. Outra preocupação relacionava-se com o posicionamento da instituição quanto aos servidores sem condições de trabalho remoto.

Sem dúvida, é preciso considerar a relevância dessa ferramenta em momentos críticos e de distanciamento social, como os de saúde pública, e que requer uma nova organização do trabalho, pois sendo uma ferramenta popular e sem custos de instalação, possibilitou a manutenção da comunicação institucional, em parceria com outras ferramentas como o e-mail.

O WhatsApp também foi utilizado como ferramenta complementar à Educação a Distância - EaD, principalmente porque o aplicativo consome poucos dados de internet se comparados a outras opções, como Ambientes Virtuais de Aprendizagem – AVA.

A “normalização” do WhatsApp na pandemia requereu certa adaptação frente ao momento peculiar, pois, em um dos momentos da observação participante, foi possível constatar a tentativa de gestores contornarem crises em grupos de WhatsApp e em outros ambientes virtuais. Um dos registros se referia a desacatos durante atividades não presenciais de alunos via WhatsApp e o outro caso, se deu por situações constrangedoras em que pessoas infiltradas em salas de aulas virtuais proferiram ofensas e palavras de cunho sexual durante uma aula.

Também foi possível constatar a escalada vertiginosa das trocas de mensagens em todos os horários do dia, incluindo finais de semana. A desordem dos horários se deu pela falta de aproximação dos servidores com o teletrabalho (home office), bem como pela dificuldade de estabelecimento de rotinas, até porque as famílias dos servidores também estavam em casa se adequando à nova realidade.

O home office foi determinado pela reitoria a partir de 17 de março de 2020, com previsão de encerramento em 31 de abril de 2020, em conformidade com o decreto estadual de suspensão de atividades e de isolamento social, recomendado como medida de contenção da propagação do coronavírus. As datas já foram prorrogadas outras vezes e, até o último registro deste trabalho, a previsão para a volta das atividades presenciais é 31 de dezembro de 2020, prazo bastante incerto, uma vez que até o momento o vírus continua se proliferando e a vacina ainda não está disponível para a população.

Já dizia Foucault (2006, p. 232) que, “em toda a parte se está em luta”, e é nesses momentos de clivagem, de rompimento da ordem, que ocorre o estabelecimento de um novo patamar, onde as relações de poder se acirram dentro dos jogos institucionais e sociais, inclusive em situações paradoxais de “liberdade e escravização”, que vêm se estabelecendo no contexto atual do ciberespaço no trabalho home office.

É preciso mencionar, ainda, que algumas pessoas se adaptaram bem ao trabalho remoto, e que os ciberespaços conseguiram colocar as pessoas na “segurança do isolamento”, mas, não se há de esquecer que, ao mesmo tempo que se protegem fisicamente, as pessoas podem se tornar mais vulneráveis nas relações de sujeição por meio do excesso de trabalho, pois o afastamento físico pode dificultar a organização e as lutas coletivas - contracondutas (VEIGA-NETO, 2001).

Vulnerabilidades como a descrita anteriormente podem ser enquadradas como um custo eventual da tecnologia. Os Graus da Racionalização tecnológica, associados ao paradoxo da “Liberdade X Escravização”, se manifestam neste tópico, basicamente pelo custo eventual do WhatsApp em contrapartida aos benefícios do seu “refinamento” tecnológico. Os custos podem não ser apenas da ordem econômica; eles podem advir também das relações intersubjetivas entre as pessoas. Os entrevistados S2, S4, S6, S7, S8, S12, S13, S15, S16 e S17 relataram ter passado por inconvenientes, inclusive em situações familiares, em decorrência

de teletrabalho durante as férias, finais de semana e pós-jornada, e que os grupos de WhatsApp teriam impacto direto nessas situações. Os relatos desses servidores são reforçados por uma estratégia destacada na fala de S11, em posição de chefia, sugerindo ser uma prática entre os gestores:

Eu não posso cobrar de um servidor que ele responda um e-mail às 22 horas, sendo que o horário de trabalho dele é até as 18 horas. Certamente, o servidor não vai olhar o seu e-mail às 22 horas. Agora, a partir do momento que alguém da gestão encaminha um WhatsApp às 22 horas, eu me sinto na obrigação de responder, porque eu, certamente, vou ver meu WhatsApp às 22 horas. Então, pode ser que seja uma omissão (permitir o uso do WhatsApp sem regras), com fins ‘benéficos’, sob o ponto de vista institucional da resolução dos problemas que a instituição tem (S11).

Este tipo de pós-jornada é duplamente desfavorável para aqueles servidores que precisam registrar o ponto e detalhar, em suas justificativas diárias, esse pós- expediente. Nesse caso, parte dos servidores, após estenderem a jornada, precisarão ter esse tempo de pós-jornada (muitas vezes gerados por demanda das chefias), aprovado, ou não, por seus superiores hierárquicos, que avaliarão se o saldo será contabilizado como horas trabalhadas ou não. Entretanto, às vezes, o servidor não está mais na instituição sob a égide do relógio ponto, mas nem por isso, as demandas deixam de ser recebidas e o servidor conduzido a aceitá-las.

Acrescenta-se o fragmento a seguir como uma ilustração daquilo que é fabricado nos sujeitos quando estes internalizam os efeitos da escravização/sujeição das tecnologias. Para a genealogia do poder, estas são, na prática, as

Positividades do Poder (culpa, medo, ansiedade etc.). O trecho foi retirado da

entrevista de S2, mas falas semelhantes foram registradas por S1, S3, S4, S6, S7, S10, S11, S12, S13, S15 e S17.

Na verdade, o que mais me deixa ansiosa é a ansiedade das pessoas. Às vezes, eu acabo lendo as mensagens e percebo que as pessoas não precisavam mandar a mensagem ou mandar naquele horário. Falta um pouco de pensar antes de fazer, e acabam, simplesmente, encaminhando. Por exemplo, a pessoa encaminha uma mensagem para te lembrar o que tem que ser feito, mas a pessoa não precisaria mandar uma mensagem, pois amanhã a pessoa vai estar ali, então, é só conversar. Então, nesse sentido, a ansiedade das pessoas me incomoda (S2).

Foram vários os efeitos de sujeição, principalmente efeitos psíquicos, elencados para o par “Liberdade x Escravização”: estresse e adoecimento mental, distanciamento familiar, ansiedade, preocupação, cansaço e FOMO – Fear Missing Out, síndrome do medo de ficar de fora, ou seja, uma apreensão generalizada, caracterizada pelo desejo de permanecer continuamente conectado com o que os outros estão fazendo (PRZYBYLSKI et al., 2013).

Segundo Butler (2017), que, nesse ponto, se aproxima de Foucault, o próprio sujeito colabora para a produção das positividades do poder, e isso tem um reflexo no processo de formação do sujeito:

O debate contemporâneo sobre a formação do sujeito, oferecendo uma maneira de explicar o sujeito que passa a existir como consequência da linguagem, mas sempre dentro de seus termos. A teoria da interpelação parece representar uma cena social em que o sujeito, primeiro é chamado, depois se vira, e por fim aceita os termos pelos quais é chamado (...). Por que a formação do sujeito parece ocorrer somente após a aceitação da culpa, de modo que não existe um ‘eu’ que possa atribuir um lugar a si próprio, que pode ser anunciado na fala, sem que antes haja uma auto