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Compreensão de morte e renascimento na natureza

No documento carlosqueiroz (páginas 142-147)

CAPÍTULO III RESSURREIÇÃO E IMORTALIDADE: A PREGAÇÃO

3.2 Compreensão de morte e renascimento na natureza

Morte é um tema propriamente antropológico, admite Belini (2009, p. 35). Paulo entendia a morte não como o fim da vida, afirma Radmacher (2010b, p. 525), mas como um momento de transição de um lar para outro. Stamps (1995, p. 789), por sua vez, depreende de 1Co 15,55-57 que, para o apóstolo dos gentios, a morte não é um terror, mas um meio de transição para uma vida mais plena. Não tinha também, para Paulo, a ideia platônica da existência humana como um ciclo de nascimento e renascimento, segundo Dunn (2003, p. 552). Raciocínio a pari tem Westphal (2009, p. 136) ao admitir que a morte não é a destruição de todo o ser humano, mas também não é a libertação da alma da prisão do corpo, como entende a filosofia de tradição platônica. Para este exegeta, “a alma que é o eu, a néfesh, é

despida pela morte para receber uma nova roupa que é o corpo eterno, ou seja, a eternidade é a esperança de vida após a morte da qual o apóstolo Paulo fala de forma inequívoca”. Diante da complexidade desse raciocínio, Paulo utiliza-se das analogias da semente, da carne e dos corpos celestiais para esclarecê-lo.

Em 1Co 15,36-38, Paulo utiliza a ideia muito divulgada na Antiguidade acerca da necessidade da morte como condição para uma nova vida. O momento de descontinuidade, contido nesta convicção, é aplicado pelo apóstolo no v. 38 à livre atuação criadora de Deus que dá a cada pessoa seu próprio sw~~ma, assim como ele deseja. A faculdade divina de criar tanto corpos terrestres como corpos celestiais é para Paulo um sinal de sua força criadora (1Co 15,39-41) que é a garantia para a criação e preservação de um corpo de doxa individual. Em 1Co 15,42-44, Paulo avalia o que foi dito até aqui, ao interpretar a ressurreição daquilo que foi semeado: assim como se semeia algo corruptível e se ressuscita algo incorruptível, assim se semeia o sw~~ma yuxiko/n (“corpo terrestre”) e ressuscitará o sw~~ma pneumatiko/n (“corpo celestial”). Com esta antítese responde-se a pergunta pelo “como” da ressurreição, ao apresentar, por um lado, a corporalidade como condição fundamental da ressurreição, mas ao caracterizar, por outro lado, esta corporalidade como uma realidade pneumática que deve ser estritamente separada do mundo presente corruptível (SCHNELLE, 2010, p. 281, ênfase do autor).

Nessa direção é que Dunn (2003, p. 104) considera a perícope de 1Co 15,35- 50, como no caso do termo soma, a passagem mais reveladora, pois nela o ponto de significação é a distinção clara entre uma “carne e sangue [que] não podem herdar o reino de Deus” (15,50) e um corpo que o fará (15,44). “O ser humano receberá um corpo quantitativamente diferente daquele que está sujeito „à carne e sangue‟” (WESTPHAL, 2009, p. 136). “Paulo não usa sarx em relação a isso (15,39). Mas devemos notar que enquanto usa soma para corpos celestes, seu emprego de sarx é limitado aos seres „inferiores‟: humanos, animais, aves e peixes” (MARTIN apud DUNN, 2003, p. 104). “Corpo”, o termo mais neutro, segundo Dunn, pode ser transformado e ressuscitado. A “carne”, no entanto, não pode como é plausível presumir em Paulo, ao contrário do que se admite sobre o Credo Apostólico na versão católica, como registrado acima.

Ao referir-se aos novos corpos em 1Co 15,39-4183, Vine (2003, p. 839) observa com extraordinária perspicácia que Paulo emprega os termos a0llov (allos) e e9terov (heteros), os quais têm diferença de significado, que, apesar da tendência de ser perdida, deve ser observada, pois o temo allos expressa uma diferença numérica e denota “outro do mesmo tipo”; o termo heteros expressa uma diferença qualitativa e denota “outro de tipo diferente”.

Não são intercambiáveis em 1Co 15,39-41. Aqui heteros é usado para distinguir a glória divina da terrestre, pois estas diferem em gênero, e allos para diferenciar a carne dos homens, pássaros e peixes, que em cada caso é carne que não difere em gênero, mas em espécie. O termo allos é usado novamente para distinguir entre as glórias dos corpos celestes, pois estes também não diferem em tipo, mas só em grau (VINE, 2003, p. 839).

Ao remeter à transformação sugerida, Paulo esclarece que “o corpo é semeado (o sepultamento) em corrupção, pois certamente sofrerá a decomposição; no entanto, é ressuscitado com uma natureza incorruptível.” (WIERSBE, 2012, p. 812). Este O exegeta presume que para o apóstolo não há decomposição nem morte no porvir. Além disso, “se Deus é capaz de criar tipos diferentes de corpos para os seres humanos, mamíferos, aves e peixes, o que o impediria de criar um tipo de corpo diferente para o crente na ressurreição?” (WIERSBE, 2012, p. 812). Nessa direção, Fabris (2001, p. 459) admite que Jesus, que se fez solidário com a condição dos seres humanos, é o protótipo da transfiguração deles, que acaba com a morte. O biblista argumenta que a salvação esperada consiste na transfiguração do miserável corpo dos seres humanos, que será assimilado à condição gloriosa de Jesus Cristo que, desde já, exerce o senhorio de Deus sobre todas as coisas.

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(39) Ou0 pa=sa sa/rc h9 au0th\ sa/rc a0lla\ a1llh me\n a0nqrw/pwn, a1llh de\ sa\rc kthnw~~n, a1llh de\ sa\rc pthnw~~n, a1llh de\ i0xqu/wn. (40) kai\ sw/mata e0poura/nia, kai\ sw/mata e0pi/geia: a0lla\ e9te/ra me\n h9 tw~~n e0pourani/wn do/ca, e9te/ra de\ h9 tw~~n e0pigei/wn. (41) a1llh do/ca h9li/ou, kai\ a1llh do/ca selh/nhv, kai\ a1llh do/ca a0ste/rwn: a0sth\r ga\r a0ste/rov diafe/rei e0n do/ch / (39) Nem toda carne é a mesma carne, porém (uma) outra é a carne dos homens, outra, é a carne dos animais, outra, a carne das aves, outra, a dos peixes. (40) Também há corpos celestiais e corpos terrestres; mas (uma) outra é a glória dos celestiais, outra, a dos terrestres. (41) (Uma) outra é a glória do sol, e outra a glória da lua, e outra a glória das estrelas; pois estrela de estrela difere em glória. In: SCHOLZ, Vilson, op. cit., pp. 658-659.

O Novo Testamento introduz no pensamento bíblico um fato novo, que acelerará o processo de evolução das idéias sobre o destino pós-mortal do homem. O fato novo é Cristo. Sua ressurreição consagrará de forma imprescritível o caráter escatológico da esperança ultraterrena, anunciada já pelo Antigo Testamento. Mas, por sua vez (e esta é a novidade com respeito às crenças vétero- testamentárias (sic)), Cristo proporciona a certeza de que a salvação não é um bem exclusivamente futuro, estritamente escatológico, no sentido temporal do término. O anunciado pelo Novo Testamento já não é algo meramente por vir em um futuro indeterminado (RUIZ DE LA PEÑA, 2000, p. 253).

Em conclusão, Belini (2009, p. 36), alude às perícopes de Lc 23,43; Fl 1,23 e quem sabe mesmo 1Ts 4,14.16 e 2Co 5,6-8, as quais, para ele, ensinam que, a partir de Cristo, os que morrem “nele” gozam desde já dessa perfeita comunhão “com ele” que é a vida eterna. Proença (2008, p. 748) assevera que a ressurreição projeta ênfase sobre o Jesus exaltado e alimenta a espera da volta Dele, embora alguns segmentos das primeiras gerações de cristãos tenham, aos poucos, substituído tal anseio pela posse do Espírito, como foi o caso explícito dos coríntios. Paulo, por seu turno, enfatiza, segundo o exegeta, aspectos de sua concepção escatológica; para ele, a nova vida cristã é realidade, no momento, “em Cristo”84, e no futuro será uma realidade “com Cristo”85, projeção que não esconde relação com

a demora da parusia.

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A expressão en Christo ocorre 83 vezes no corpus paulino (61 se excluirmos Efésios e as pastorais), sem contar as expressões equivalentes que empregam um pronome (“nele/no qual”) definidas pelo contexto.[...] Em (para dentro de) Cristo (eis Christon). O parêntese explicativo é aqui usado para dar conta da preposição original grega eis, que contém a ideia de movimento para, em direção a algo... As traduções brasileiras da Bíblia geralmente traduzem o eis paulino em questão aqui simplesmente por em. Em diversas ocasiões Paulo fala de os indivíduos serem levados eis Christon, “para dentro de Cristo”. As que mais chamaram a atenção são as duas descrições da transição crítica como “tendo sido batizados em (para dentro de) Cristo (Rm 6,3; 1Co 12,13). Nos dois casos é difícil evitar o sentido básico de eis como movimento para dentro de um lugar. Isso ocorre especialmente em Rm 6,3, em que a imagem segue diretamente da de Cristo como segundo Adão. Neste contexto “batizados em (para dentro de [este]) Cristo”, presumivelmente, visa a transmitir o sentido de receber participação neste Cristo. Isso confirma-o o exemplo intimamente relacionado, 1Co 12,13: “batizados em (para dentro de) um só corpo”. O sentido mais óbvio é, mais uma vez, que foi sendo assim batizados que todos os mencionados tornaram-se membros do corpo de Cristo (12,14-27). In: DUNN, James D. G., op. cit., pp. 454, 463.

85 Um aspecto igualmente notável da teologia de Paulo é o seu motivo “com Cristo”. Aqui é fácil deixar

perceber o peso completo do motivo, porque a expressão só ocorre raramente e não tem paralelo “com o Senhor”. Além disso, em vários casos, pode denotar simplesmente “em companhia de” em vez de qualquer participação mística, sacramental ou de história da salvação “em Cristo”. Este parece ser o caso da referência, predominantemente futura, da expressão: estar com Cristo (no céu) em Fl 1,23; aparecer com Cristo na glória ou na parusia, em Cl 3,4. In: Idem, p. 460.

As afirmações, que dizem respeito a uma união com Cristo depois da morte, não eliminam no N.T. a expectativa da parusia, da ressurreição dos mortos e do cumprimento da obra da salvação, mas conservam o seu posto dentro desta expectativa escatológica. As promessas de uma união com Cristo na parusia, e depois da morte, estão pressupostas. Falta ao N.T. o interesse de estabelecer distinções (HOFFMANN, 1970, p. 431).

O filólogo Vine (2003, p. 1058) registra, assim, que zw|opoiei=tai (zõopoieitai – vivificado), presente em 1Co 15,36, diz respeito ao poder da reprodução inerente na semente, que apresenta certa analogia com a ressurreição, pois apenas se revela se ela morrer. Na sequência do raciocínio, em 1Co 15,37, Paulo emprega a expressão gumno\n ko/kkon (gumnon kokkon – grão nu) e gumnos (gumno/v), hapax legomena, segundo Vine (2003, p. 994), denotando “desnudo” e traduzido por “simples”, referindo-se ao grão. O filólogo assevera que o significado é mais claro traduzindo o termo por “grão desfolhado”. Assim, Paulo recorre ao conhecimento prático relacionado à agricultura e à botânica, procurando metaforicamente colocar em termos compreensíveis a questão do corpo que é sepultado para renascer incorruptível na ressurreição.

Porventura, a natureza não ensina que a semente deve morrer antes de “ressuscitar”? Lançada à terra, apodrece para então ressurgir como nova planta. O que se semeia não é a planta futura, e, sim, um simples grão, desnudo (gumnon kokkon), seja de trigo ou de outra espécie qualquer. O resultado será sempre o mesmo: o velho corpo morre para ceder espaço a um novo. Surge nova planta. Deus dá a cada grão semeado um corpo, conforme quis, ou seja, a cada qual seu corpo respectivo. A argumentação mostra que Paulo entende o renascer da planta como criação. Um milagre separa o grão e a planta que dele vingou. É uma concepção amplamente difundida no mundo antigo. Ela desconhece a ideia do organismo que a si mesmo se reproduz. Germinação e multiplicação são vistos não como processos orgânicos, mas como efeitos de ação divina (cf. Jo 12,24)86. Assim pensa também o apóstolo Paulo. É Deus quem age na reprodução das espécies, “ressuscitando” as sementes e dando- lhes nova vida. Evidentemente, a racionalidade científica moderna vai discordar de tal visão. Sabe que a semente não ressuscita, e, sim, frutifica. Ainda assim, ela não deveria ser cega para as maravilhas da natureza. A fala em criação de modo algum caducou. Porventura não acontece criação no próprio desenvolvimento orgânico? O assunto merece discussão à parte. O que Paulo quer

86 “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas,

dizer não admite dúvidas: Deus dá novo corpo a quem vai ressuscitar dos mortos; para isso o grão de trigo serve como exemplo. Este, embora não tenha força de fato demonstrativa, é de alto valor ilustrativo (BRAKEMEIER, 2008, pp. 210-211).

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