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2. CAPITULO

6.1 A caracterização do local do Estudo – O espaço asilar revisitado

6.2.2 Comunicação verbal e não verbal entre usuários internados e

Na estrutura psicanalítica de Lacan, há uma mudança de paradigma frente à composição do Ser pautada na célebre frase de Descartes “Penso, logo, existo”. Tal

48 Neste ponto, a pesquisa suprimiu do quadro 4 o campo: Domicílio de Origem. Por entender que tal

eixo de existência é redirecionado para a principal ferramenta do sujeito enquanto ser singular: a Fala. Assim partimos de outra concepção de existência: “falo, logo existo” (LACAN, 2007). Neste sentido, pode-se afirmar que o sujeito pensa onde não é e se faz como sujeito ou não pensa (LACAN, 1995).

Este sentido não se remete puerilmente apenas a fala como constructo fonético, mas sim à capacidade do indivíduo de se expressar e de simbolizar suas angústias, desejos e dúvidas. Neste âmbito, não existe aquele que não tem o direito da fala, aquele que é usurpado em sua manifestação individual ou em casos mais aflitivos, aquele indivíduo que tem esbulhada a sua capacidade frente a recursos legais, culturais e sociais.

Desta forma, temos que o pior a acontecer ao indivíduo é desresponsabilizá- lo, é retirar dele sua autonomia e sua possibilidade de existência segundo seu desejo. Não ouvir, equivale a sepultar a existência de alguém.

Na Clínica, durante toda a observação participante, não foi observado nenhum momento de alteridade e de escuta ao outro, do ponto de vista dos anseios do sujeito. Nem mesmo o psicólogo com poucas visitas durante a semana parece conseguir atender as demandas da Clínica. Há um anseio por falar e nenhuma disposição em realmente escutar.

((ao terminar uma entrevista)) Obrigado viu, a gente não tem com quem falar e nem explicar nossos problemas, falar é sempre bom, aqui ninguém te escuta (ENTREVISTADO 7).

No caso de populações vulneráveis, não basta dar voz, mas principalmente deve-se dar o protagonismo na fala, para que venha com liberdade e que, principalmente, sejam ouvidos em seus anseios. Confinamentos e asilos acabam por padronizar a ausência, a falta negando o sujeito por detrás do rótulo.

A padronização de tratamento, geralmente, tem como consequência calar o sujeito, em um processo em que o universo do corpo trabalha em dissintonia com a percepção e a experiência vivida. O cerceamento de liberdade em regra dualiza o sujeito e desmerece que o indivíduo não é dentro e fora, ele simplesmente é.

Além disso, deve-se ressaltar que os protagonistas deste trabalho, pacientes da Clínica observada, são usuários de substâncias que alteram as percepções,

exatamente inseridos em uma sociedade de sensações, também chamada de sociedade excitada (TURCKE, 2010).

O cerceamento de liberdade, ao barrar o corpo também condena a voz, uma vez que limita e cerceia a possibilidade de interlocução. As instituições asilares torna não só os sujeitos invisíveis, como também retiram o protagonismo de Ser. A Clínica potencializa isso com a rigidez das regras e da impossibilidade de contraditório.

Assim, de maneira paradoxal, tomamos a voz exatamente daquele indivíduo que representa o resultado imaginado de uma engrenagem social, que exige exatamente a “escravização da percepção” (TIBURI, DIAS, p. 17, 2013). Aquele que ousou participar da sociedade de sensações, resolveu potencializar suas sensações por meio de substâncias e tem retirada sua voz, seu poder de decisão e vontade (TIBURI, DIAS, 2013).

Deve-se ressaltar que trabalhos científicos podem dar voz ao sujeito, mas seu objetivo principal deve ser incentivar que o sujeito reivindique essa voz a partir do trabalho. De maneira narcísica, o conhecimento científico se apropria do direito de produzir o conhecimento do mundo, mas sempre com um olhar estranho ao objeto de estudo. Neste trabalho o viés foi dar voz, deixar falar (RODRIGUES, et al. 2005).

Assim, quando se dá voz e protagonismo a quem não tem, o dentro e fora acabam por perder todo e qualquer sentido, pois não se erguem construtos dualistas entre os interlocutores e não existe a exclusão pela anulação do outro enquanto sujeito reivindicatório. Dar protagonismo é deixar que fale e na falta de palavras que o lapso seja utilizado como manifesto a favor da produção de sentido (RODRIGUES, et al. 2005).

Desta maneira, deixar articular e falar os sujeitos vulneráveis, deve ser o princípio do entendimento da engrenagem que os excluí, pois em suas falas vão se evidenciar de maneira latente onde falha e qual a barreira que o confinamento traz aos indivíduos. A voz deve se inserir tanto na dimensão de diacronia, como da sintonia e neste ponto, não existe neutralidade do sujeito que fala, pois o falar deflagra sua posição no mundo frente ao poder do real e também do simbólico (GINZBURG, 2007).

No entanto, o trabalho em tela encontra uma grande barreira, pois ao tratar de usuários de drogas que vêem na substância seu outro, está-se diante de um corpo que quer calar. Kato (p. 66, 2014) afirma: “na toxicomania, o impossível está posto desde o início, apresenta, de uma forma contundente, o rechaço ao Outro e ao saber”.

O desafio dentro das estruturas da Clínica foi fazer o usuário de drogas entrar no discurso, e a partir daí estabelecer laços para empoderar esse sujeito e o fazer protagonista em sua fala. Fazer e principalmente deixar falar aquele corpo que muitas vezes quer calar (KATO, 2014).

Desta maneira, o escopo do trabalho foi além do mero constructo acadêmico distante que objetifica por vezes o sujeito como instrumento de pesquisa. Neste trabalho, apesar do desígnio inicial ter sido compreender a percepção dos usuários de drogas internados involuntariamente sobre a vivência de seus direitos humanos, por vezes nas entrevistas foi necessário deixar falar, pois assim, como salientou Lacan (2007), isto se traduz em deixar existir.

Embora o medo e o receio obstasse grande parte dos usuários de drogas internados involuntariamente na Clínica, os que se dispuseram a falar tinham muito a dizer e por vezes distantes da pergunta inicial do pesquisador.

O senhor vai gravar tudo que eu falar ((risos))

Não consigo entender até agora ((pausa)) por que....o que eu poderia falar que o senhor não sabe?

(ENTREVISTADO 2)

Portanto, o trabalho foi na maior parte do tempo de reafirmação do poder da fala do entrevistado. Um empoderamento que levou em alguns casos a condução de parte da entrevista pelo próprio entrevistado, até ela ser retomada pelo pesquisador pela necessidade da pesquisa, mas sem nunca ter a interrupção, nem a cessação do ímpeto em falar. Enquanto não havia comunicação verbal e não verbal positiva entre os profissionais da Clínica e os pacientes, as entrevistas se tornaram objeto de visibilidade.

O fruto escrito e a descrição pormenorizada destas falas ao longo desta pesquisa se tornaram assim secundários e acessórios. Portanto, ao dar voz, o empoderamento pela fala se tornou o protagonista e restou ao pesquisador às percepções que o discurso dos pacientes deixou.