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Comunidade – entre a nostalgia e o pragmatismo Curiosamente a nostalgia do rural é ainda notória em muitos rela-

tos sobre a cidade, concetualizada negativamente como o lugar onde se perde- ram sentimentos de comunidade, vizinhança, interesse pelo outro, proximidade afetiva e solidária, à medida precisamente que aumentava a proximidade física e que o encontro com o outro, mais do que fortuitidade, se tornava uma inevita- bilidade. Com a indiferença instala-se também o medo e o entrincheiramento passa por cambiantes que vão desde a ocupação gentrificada dos possidentes até à guetização extrema dos excluídos.

Louis Wirth, um dos primeiros a refletir sobre a cidade dum ponto de vista sociológico, fá-lo muito com uma visão de nostalgia em Urbanismo

como forma de vida. Refere a tal propósito Weber, segundo o qual um «grande

número de habitantes e densidade de ocupação significam que o conhecimen- to mútuo pessoal entre os habitantes que ordinariamente se inserem numa vizi- nhança falta» (1938, 11). E também Simmel fala numa redução a átomos dos habitantes da cidade e da queda numa impensável condição mental. Condição que ele próprio designa por segmentação das relações humanas.

No confronto urbano/rural, o viver na cidade trouxe um aumento de relações com outros mas uma quebra da proporção de gente conhecida e

um menor conhecimento de cada um, com a dependência dos outros como se- res «confinados ao aspeto altamente fraccionado das suas atividades». «O ca- ráter fragmentário e a expressão utilitária das relações interpessoais» levam frequentemente à anomia (idem, 13). A especialização funcional de cada um estende-se à especialização das próprias cidades gerando uma «interdepen- dência e instabilidade» indesejáveis (ib., 14).

Esta noção de falta, falta de proximidade, falta afetiva e relacional, está na base das reflexões sobre a solidão na cidade. Em diversa literatura e em contraponto, sentir a pertença a uma comunidade surge como interpreta- ção de vestígio da antiga organização social rural no meio da urbanidade atual, ou como a herança de quem saiu de outro tempo e outro espaço, caso dos imi- grantes dos EUA. É o que faz Wirth em O Gueto (1928) ao referir a organiza- ção dos judeus como mistamente defensiva contra o preconceito e assertiva duma identidade própria; é também o caso mais recente de Putnam com o seu

Bowling alone onde se lamenta o desaparecimento das relações de vizinhança

e amizade tradicionais4 na América (2000).

Noutra linha está Robert Park que assume, no dizer de Fran Tonkiss, a cidade segregada, enfatizando a diversidade e a variabilidade da experiência de identidade. Para ele a noção de diferença é espacial, sendo que

4 este trabalho tem recebido duras críticas de autores que entendem que essa comunidade nostálgica realmente nunca existiu

o que carateriza uma comunidade não é apenas «uma coleção de pessoas ocupando uma área mais ou menos claramente definida» mas as «institui- ções», sociais, culturais, políticas e económicas que organizam essas pessoas (2005, 15).

De noção pré-moderna de comunidade (cidade), baseada em la- ços históricos profundos, passa-se, nos textos de Park e de Gans (apud op. cit.), a uma ideia, de modernidade tardia, de comunidade imaginada. Para eles as cidades eram compostas de diversas povoações (villages) com caraterísti- cas próprias, numa rede urbana tecida de acordo com códigos de distinção es- pacial e social (idem, 18).

Por esta época, em Inglaterra, Young e Willmott (apud Tonkiss, 2005) em Family and Kinship in East London, associam classe e laços familia- res a espacialidade ao discutirem a constituição da Londres oriental. Enfatizam o contraste entre a permanência dos laços sociais e os arranjos espaciais em mutação e destacam a importância das famílias (trabalhadoras, brancas) na estruturação desses laços, dando especial relevo ao papel das mulheres, so- bretudo a nível doméstico e emocional. Estes laços aparecem como resistindo à desintegração provocada pelo desenvolvimento urbano e pela suburbaniza- ção e essas comunidades aparecem como localizadas em lugares não catego- rizados como vestígios mas como criações próprias, i.e., como uma espaciali- dade feita pelas novas cidades.

Jane Jacobs segue uma linha diferente, não usando o discurso da comunidade mas antes o dos fluxos que ligam a trama do desenho urbano à tecitura das relações sociais: «o ballet dos passeios das ruas da cidade anima a rua e liga-a aos circuitos mais vastos da vida urbana» (1964, 60). Em vez de vincar a estranheza e dificuldade em vencer os limites dos enclaves sociais ur- banos (como Wirth, a propósito do franquear do gueto) sublinha a mobilidade e fluidez de uso como caraterística do espaço urbano. Aqui há sempre alguém com os olhos na rua, dada a diversidade social e de usos que a cidade contém. A mistura social requer um espaço também misto. A segregação espacial e so- cial dos projetos de alojamento massivo serve, no seu dizer, para des-diversifi- car (undiversify) a cidade. Destaca assim os contactos fortuitos e ocasionais que requerem um nível baixo de confiança, sem compromisso, nas trocas inter- pessoais caraterísticas do que faz funcionar as ruas das cidades.

As vantagens dessa diversificação e o modo como o conceito de comunidade pode realmente esconder valores segregacionistas, para além de ser um mito sem validação empírica credível, são expostas por vários autores. Sennett, em The fall of public man (1977), posiciona-se também contra a referi- da visão nostálgica. Afirma ainda, a propósito da evitação do contacto com ou- tros (diferentes, opostos), que valorizar a ideia de interioridade e privacidade, de viver em comunidade entre gente semelhante, é no fundo uma forma de evi- tar o risco de interação com estranhos, naquilo que apelidou celebração do

gueto. A este propósito afirma: uma «cidade é um lugar onde as pessoas po-

dem aprender a viver com desconhecidos, a partilhar experiências e centros de interesse não familiares. A uniformidade embrutece ao passo que a diversida- de estimula o espírito» (2001).

Para Iris Marion Young a defesa da comunidade é uma negação da cidade como lugar de/para a diferença (ver adiante). O discurso sobre o va- lor da comunidade pode portanto, segundo este ponto de vista, estar a reforçar a distância social e afetiva, a sustentar um discurso de exclusão. Note-se que, por isto mesmo, alguns condomínios fechados nos EUA são vendidos com o rótulo comercial de communities.

Nesta mesma linha, Maria Bakardjieva (2004) diz, a propósito do uso quotidiano da Net, preferir o termo união (togetherness)5 virtual a comuni-

dade – termo polémico – virtual para referir esses laços sociais criados tanto dentro como fora da rede.

5 - preferi esta tradução do termo togetherness, embora outras fossem possíveis: