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A opção por um estado de caso deve-se ao facto de considerar que, um estudo aprofundado, intensivo dum caso singular, inserido na análise mais ampla das questões envolventes fundamentais para a sua compreensão, é capaz de produzir conhecimento científico de aplicação a situações ou casos análogos.

O conhecimento científico pode também ser alimentado por pro- cessos que têm paralelo com os da forma como os indivíduos acumulam co- nhecimento ao enriquecerem o seu repertório de construções sociais, se não na obtenção de soluções pelo menos na formulação de novas questões. Aliás uma abordagem quantitivativa, que parta de grandes amostragens para inferir regularidades e probabilidades, pode até dar lugar a estereótipos e a profecias auto-cumpridas (Donmoyer, 2000).

Se a opção pela abordagem qualitativa já apontava para uma ori- entação distante das abordagens estatísticas, quantificadoras, esta outra op- ção vinca o ponto de vista de que não só de procedimentos estatísticos se pode obter conhecimento suficientemente teorizado a ponto de ser aplicável noutros casos.

O que aqui adotarei, é antes o abandono do conceito tradicional de generabilidade (generalizability) pelo de transferibilidade (idem).

A propósito desta mudança de paradigma, é sabido que todos os resultados em ciências sociais são hipóteses de trabalho, estando sujeitos a serem contraditados. Contudo a similitude de contextos pode originar uma transferência de conhecimento que tenha por base a adequação (fittingness), i.e., a congruência entre contextos (Lincoln & Guba, apud Donmoyer, 2000, capº 2).

Um mesmo conhecimento, produzido a partir de contextos muito diferentes, pode ser transferível. Dái que a transferibilidade seja pensada em termos do conceito de conhecimento experiencial, na linha do conhecimento pessoal de Michael Polanyi e das formas de aprendizagem vicariais, as apren- dizagens baseadas em narrativas de terceiros (Donmoyer, 2000).

Esta é aliás uma das vantagens dos estudos de caso: pode-se conseguir construir generalizações a partir dum acumular de experiências vivi- das em contextos diferentes ou relatadas e, com base nessas generalizações, ficar-se mais preparada para agir e ganhar capacidade de antecipação. Esta forma de conhecimento tem vários pontos de contacto com o conceito referido de transferibilidade. Recorrendo à teoria dos esquemas de Piaget, segundo a qual o mundo empírico é lido através de estruturas cognitivas, num processo

de assimilação, compreende-se que estas estruturas podem ser reconfigura- das complementarmente através dum processo de acomodação destinado a incorporar novos aspetos relacionados com situações anteriormente vividas; então pode-se chegar a uma fase onde haja mais integração, pela incorpora- ção de mais diversidade, e mais diferenciação, dado que uma estrutura pode passar a estar subdividida em subestruturas. Como se depreenderá a diversi- dade de casos contribui para um conhecimento mais rico, porque mais diferen- ciado, e portanto com mais capacidade operacional. O mesmo se passaria com as experiências vicariais vividas através da narrativa, na produção duma «reali- dade virtual».

Os estudos de caso, enquanto experiências vicariais, apresentam ainda várias vantagens em relação a estas. Em primeiro lugar, tornam acessí- veis casos concretos que não estariam facilmente ao nosso alcance, dado que essas experiências nos transportam a lugares onde provavelmente nunca po- deríamos ir pessoalmente. E, em segundo lugar, ainda que a interpretação pro- posta pelos autores possa não ser aceite por nós, aqueles casos podem ser in- cluídos no nosso repertório, reinterpretados por nós mesmos; revelam dados e situações aos menos experientes, acrescentam detalhe e riqueza às teorias que utilizamos, tornando-as menos estereotípicas e lhanas; e os relatos pesso- ais, os pedaços de realidade transcritos nestes casos são oferecidos para uma reinterpretação e possível contestação de quem lê. Em terceiro lugar, por se-

rem vicariais, estas experiências têm probabilidade de serem apreciadas com menos resistência à aceitação e com menos defesas: uma experiência vicarial difícil pode ser abordada mais facilmente do que uma experiência própria aná- loga (idem).

Na metodologia proposta por Burawoy, foram tomados em conta os seus princípios de regulação (Mendes, 2003).

Em primeiro lugar o princípio da intervenção: tal como já referido, defende-se uma postura interventiva da investigadora, que usa a intersubjetivi- dade entre si e os sujeitos em estudo. Em segundo, o princípio do processo: tem-se em conta não só a dimensão discursiva das vidas mas também a que se pode analisar através da participação, atendendo a formas de conhecimento tácito, não verbalizadas, pela entrada no mundo vivido das pessoas a estudar. Partindo da teoria preexistente reelabora-se e agrega-se a informação recolhi- da em processos sociais segundo os princípios da estruturação – deve ter-se em conta a relação dos processos locais com as forças externas, e de proces- sos seguir para o patamar da estruturação das forças sociais, passando pelo desvelamento das relações de poder que aí se fazem sentir. A par disto, e se- guindo ainda o princípio da reconstrução, deve dar-se prioridade ao enfoque de situações sociais sobre o de casos individuais. Partindo das teorias que infor-

maram o arranque da pesquisa, busca-se a sua refutação – não a confirmação – no sentido de a aprofundar; o objetivo é reconstruir teoria já existente, aten- dendo à ligação entre teoria e ideologia.

Foi tido em conta que o grande obstáculo aos preceitos do méto- do qualitativo são as assimetrias de poder que perpassam todo este processo de relacionamento entre analista e sujeitos em estudo.