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Socialmente conformado pelas opções de quem providencia e pelas vivências de quem o habita, o espaço das bibliotecas foi recentemente expandido e virtualizado pela Internet.

Expansão que origina receios de perda de controlo sobre opções individuais de leitura, para um meio institucionalmente fornecido, e origina também incertezas pela emergência de serviços idênticos noutras entidades (escolas, pontos Internet municipais, cibercentros) o que reenvia, por sua vez, para o requestionamento sobre as finalidades da biblioteca pública: complemento ou concorrência a estes serviços?

A leitura na Internet será entendida muito como complemento e extensão de outras práticas leiturais, efetivadas nos meios impressos, deixando assim de lado uma suposta oposição entre o real e o virtual, sem contudo obliterar o que ela possa ter de particular. Esta ideia reforça-se pela análise do caráter cumulativo das práticas leiturais dos navegadores da Internet (Moura, 2001; Sequeiros, 2004) e por abundante literatura sobre a falsa dicotomia real-virtual, a que me referi anteriormente.

Um primeiro tópico em torno do qual se produziu alguma investi- gação é precisamente o da complementaridade ou concorrência da Internet em relação à leitura pública. Conclusões apontando no sentido da complementari- dade são avançadas por d'Elia, et al. (2002), a partir de estudo intensivo de- senvolvido nos EUA. Efetivamente os serviços prestados por bibliotecas públi- cas e pela Internet pareciam ser mais complementares que concorrenciais, com 75% dos que usam a Internet a usar também bibliotecas e 60% dos que usam bibliotecas a recorrer à Internet também, numa amostra de cerca de 3100 utilizadores. O uso da Net também não aparentou ter impacte nos moti- vos para o uso da biblioteca ou para a frequência das suas visitas. Em termos comparativos a biblioteca era vista como um recurso bem melhor do que a In- ternet no que toca a custos, disponibilidade de cópias em papel e ao apoio que se pode obter nas pesquisas; e um pouco melhor no que toca à exatidão da in- formação e à privacidade. Por outro lado a Internet era considerada mais aces- sível e cómoda (horários de abertura, distâncias, tempo gasto). As consultas à biblioteca eram muito mais frequentes se o tema era história local (duas vezes mais) ou se se pretendia escolher um bom sítio para ir ou um bom sítio para estar com as crianças (quatro vezes mais). Quem não usava Internet afirmou que as suas razões tinham a ver com falta de privacidade ou dificuldades com a tecnologia, quem não usava bibliotecas invocou as referidas limitações de comodidade ou desadequação dos fundos em relação às suas necessidades. Curiosamente, entre as sugestões feitas para melhorar comparativamente os

serviços das bibliotecas apontaram o reforço da formação e o apoio aos leito- res.

Uma outra equipa de investigadores encabeçada também por d'E- lia publicou mais tarde novos resultados de 2003 sobre relações entre uso da Internet e uso das bibliotecas entre adolescentes do 5º ao 12º ano. Concluíram que, entre os mais de 4000 inquiridos, todos tinham acesso à Rede a partir de um ou mais pontos, com 25% a usar o acesso da biblioteca que era no entanto o ponto menos usado para tal fim. Quem tinha acesso em casa era quem me- nos ia à biblioteca pública por causa da Net sendo o inverso também verdade. Se bem que ter acesso noutros pontos não fizesse com que os estudantes dei- xassem de usar as bibliotecas públicas, usavam-nas com menos frequência e mais para realizar aí os trabalhos escolares e para fins recreativos (d'Elia et. al, 2007).

Um segundo tópico é o do ciberespaço como território a agregar para as atividades bibliotecárias. Alguns autores referem-se-lhe como terreno a ser ativamente apropriado, e não apenas passivamente anexado, e a requerer a mediação profissional nas explorações e usos de leitura. Tirando partido do capital de proximidade, apreço e confiança detido pelas bibliotecas, essa mediação iria desde a eliminação das barreiras de acesso, à criação de

competências, até à promoção da leitura nesse e para esse novo meio. A isto acresce a ênfase no impacto social das bibliotecas pelo reforço das ligações comunitárias, assim como pela diminuição da barreira digital (Aabø, 2005). Ou ainda a ênfase na criação dum espaço de interação, de encontro multicultural num contexto digital, cumprindo um papel social relevante ao prover à necessidade contemporânea de espaços de «baixa-intensividade» relacional e em que se é exposto aos valores e interesses de outros, reforçando a tolerância e a comunidade (Audunson, 2005). Note-se ainda que algumas críticas têm sido dirigidas à forma como esta apropriação se fez, demasiado em continuidade com velhos modelos e normas de bibliotecas, sem repensar as questões da usabilidade que não a partir dos antigos catálogos «herdados», sem aproveitar a oportunidade para, por exemplo, utilizar técnicas participativas no desenho dos portais (

p Leckie, Given & Campbell, 2008).

Como se transforma fisicamente os espaços das bibliotecas, com o crescente uso da Internet é um outro tema com relevo. Lembrando que as bibliotecas públicas atuais derivam dum projeto do séc. 18, sendo «construídas não tanto para promover o conhecimento como para glorificar», Hart, Bains & Jones entendem que é a essa luz que se deve discutir o seu papel atual e não como se fossem «armazéns de conhecimento» (1996, 24). Entendem que, dada a deslocalização das consultas permitida pela Internet, o edifício da biblioteca perderá a sua centralidade, e que esta deverá passar a ser um portal

de acesso à informação mais do que o local da sua guarda, sem esquecer as disparidades entre info-ricos e info-pobres. A isto acrescem observações de que, perdendo as bibliotecas digitais uma determinada forma de importância espacial, deixando de ser armazéns físicos de documentos, reforçam outras dimensões do espaço, não físico mas intelectual, do espaço usado por leitores, individual colaborativo, de convivialidade (Pomerantz,Marchionini, 2007).

Por fim, os referidos usos massivos da Internet para correio eletrónico e chat, (Curry, 2000; Boughey, 2000; Hardy & Johanson, 2003) fazem questionar em muito as finalidades das bibliotecas. É legítimo usá-las para este fim? Poucos são os trabalhos que aludem ao tema claramente, contudo um ou outro, já com alguns anos, ainda referem este uso como pouco aceite e a «tirar tempo» a utilizações mais adequadas (Gomez, Ambikar & Coward, 2009).

A entrada da Internet nas bibliotecas suscitou ainda problemas numa área para alguns imprevista: a formas mais ou menos patentes de censura nos conteúdos, ainda que sob a forma «ténue» da omissão, os filtros na Internet adicionaram novas omissões ou cortes, renovando o debate sobre esta dimensão ética do serviço das bibliotecas.

Por fim, registe-se que a documentação sobre decisão de instala- ção da Internet nas bibliotecas portuguesas, a nível central ou local não elabo-

ra muito sobre as suas justificações. A referência a uma Sociedade da Informa- ção que inevitavelmente, parece, se instalará é o mote enquadrador dessa de- cisão. O Relatório de 1996 refere as tendências na edição eletrónica, do abai- xamento de custos e da melhoria de velocidade da Internet, para de seguida afirmar: «As missões tradicionais de promoção da leitura e do acesso à infor- mação, alargada às suas novas formas e suportes, continuarão a ser funda- mentais no novo ambiente». Considera ainda que os documentos eletrónicos «aumentarão o poder e a liberdade de escolha dos utilizadores» e espera que vão «alargar com rapidez o espectro que caracteriza os potenciais utilizadores das bibliotecas públicas.» (

d Moura, 1996, 4-5 e 14). E recomenda, na linha da

UNESCO, que estes novos meios devem ser incorporados nas bibliotecas pú- blicas. Quanto à forma como essa nova prestação se deve fazer diz que «Um modelo de algum modo semelhante ao dos cibercafés e ciberlivrarias é perfei- tamente adaptável às bibliotecas» (idem, 10). Reforça ainda que «praticar tari- fas privilegiadas para as ciberbibliotecas deveria obrigatoriamente enquadrar- se na política da PT.» (ib., 11). Note-se que se propõe um financiamento a 100% das ligações à Internet durante dois anos, assim como a «[c]riação na In- ternet de páginas das bibliotecas apoiadas, com vista à futura ligação dos res- pectivos catálogos a essas homepages - permitindo as mesmas funções que a qualquer utilizador que se sirva localmente do sistema - que venham a ser cria- das pelas bibliotecas», para o caso de candidaturas a ciberbibliotecas, a criar em pólos geograficamente separados (ib., 16).

Talvez que a proposta dum modelo de gestão próximo dos ciber- cafés ou das ciberlivrarias tenha como pressuposto uma utilização descontraí- da da Internet no seio duma biblioteca. Contudo não deixa de me levantar questões o facto de se propor que um modelo desenvolvido em âmbito comer- cial seja transposto para um outro de serviço público. Precisamente vindo da- queles setores que frequentemente literatura estrangeira vê como grande con- corrente às bibliotecas públicas. Ou será precisamente por isso? O que consta sim é referência à ação concertada comunitária PUBLICA, relativa às telemáti- ca nas bibliotecas, no sentido de na biblioteca se «ter acesso à Internet e utili- zar todo o seu potencial de informação e de comunicação, nomeadamente co- municar com outros utilizadores, debater assuntos de interesse comum, atra- vés de correio electrónico, grupos de discussão especializados, e acesso a ba- ses de dados multimédia» (ib., 14-5).

Em 2007 o Ministério da Cultura redige um Programa de apoio às bibliotecas municipais onde se afirma que «[c]ada pólo ou serviço de leitura, fixo ou itinerante, deve possibilitar o acesso ao catálogo colectivo da rede con- celhia e o acesso à Internet (Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, 2007, 17). A referência aqui mais interessante é a de que «o projecto da biblioteca deve englobar também um projecto específico de utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação que suporte a organização e gestão da biblioteca,

a prestação de serviços e a participação em redes electrónicas a todos os ní- veis, desde o local até ao internacional.» (idem, 14).

Nenhum destes documentos faz referência clara a um papel soci- al na propiciação do acesso nas bibliotecas, mesmo em momentos em que poucos lares tinham já esse acesso assegurado. Tão só se diz que «transfor- mar a biblioteca pública na porta de acesso à informação electrónica na era di- gital constitui uma prioridade» (idem, 14).