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Espaço imaginado, espaços outros: Heterotopias, Espaços terceiros, Lugares Terceiros

Primeiro há as heterotopias do tempo que se acumula até ao infinito, por exemplo os museus, as bibliotecas; museus e bibliotecas são as heterotopias em que o tempo não cessa de se acumular e de se alcandorar em cima de si mesmo, enquanto que no séc. XVII, até mesmo ao fim do XVII, os museus e as bibliotecas eram a expressão duma escolha individual. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de encerrar num lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos, a ideia de constituir um lugar de todos os tempos que seja ao mesmo fora do tempo e inacessível à sua mordedura, o projeto de organizar assim uma espécie de acumulação perpétua e indefinida do tempo num lugar que não se mexeria, ah bem, tudo isso pertence à nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias que são próprias da cultura ocidental do séc. XIX.

Des espaces autres. Michel Foucault, [1067],(realces

meus).

O conceito de heterotopia de Foucault é por vezes invocado na li- teratura sobre bibliotecas (Lees, 1997; Rossetto, 2006; Silva, 2006), conceito delineado de forma relativamente difusa e que foi utilizado em nas suas obras

Des espaces autres (1984), uma conferência de 67 e em Les mots et les cho- ses de 66 (2008), esta uma obra mais do âmbito linguístico. Na primeira refere-

se ao conceito de heterotopia nestes termos: «lugares reais, lugares efetivos […,] uma espécie de contra-sítios, espécie de utopias efetivamente realizadas nas quais as localizações reais […] que se podem encontrar no interior da cul- tura […] são simultaneamente, representadas, contestadas e invertidas», espa- ços que são «absolutamente outros» em relação a «todos os locais que refle- tem e de que falam. E, contrariamente às utopias que proporcionam consola- ção pelas possibilidades de sonho e desejo, «as heterotopias são perturbado- ras, estilhaçam ou emaranham os nomes comuns, destroem a sintaxe que per- mite que coisas e nomes se mantenham juntos, dissolvem os nossos mitos».

Enumerando os princípios das heterotopias, Foucault carateriza- as como omnipresentes em todas as sociedades, sejam de crise - como os lu- gares de desvirginamento das raparigas e os da iniciação masculina, como as casernas - abundando atualmente as de desvio - como as clínicas psiquiátricas e as prisões. Historicamente as heterotopias vão mudando de significado, po- dendo converter-se num quase oposto, como no caso do cemitério: lugar sa- grado segundo a visão religiosa é no entanto, na atualidade, um lugar afasta-

do, uma outra cidade. As heterotopias fazem com que num só lugar real se jus- taponham vários lugares, como no palco de teatro, no jardim, no zoo. Estão as- sociadas frequentemente a cortes no tempo, a heterocronias, caso típico das bibliotecas.Supõem um sistema de abertura e fechamento simultâneo: sendo isoladas são também penetráveis. Nas heterotopias entra-se mediante determi- nada permissão e determinados gestos, caso dos lugares de purificação, de exclusão real, não aparente, ou até mesmo camuflada como os motéis. Em re- lação ao outro espaço têm uma função: uma função de ilusão (bordéis) ou de compensação (colónias religiosas). O barco, enquanto pedaço de espaço flutu- ante, é a heterotopia por excelência.

Reconhecidamente definido de forma pouco clara (Lees, 1997), o conceito tem aspetos apelativos, podendo ser de aplicação interessante pelas possibilidades interpretativas que permitam leituras outras.

A maioria dos textos sobre bibliotecas que o invocam não o em- prega nem toda a extensão nem na sua completa aceção. Terezinha Elisabeth da Silva (2006) invoca a acumulação de memória, de sobreposição dos tem- pos, a dimensão heterocrónica da heterotopia, provavelmente a mais vincada neste domínio.

Marietta Rossetto (2006) usa o conceito de heterotopia por lhe re- conhecer aplicabilidade interessante no caso de ambientes multiculturais de la-

zer, caso duma biblioteca em Goodwood, Austrália. Aí, segundo afirma, mulhe- res imigrantes encontram um espaço outro estimulante na reconstrução das suas identidades de origem como Gregas ou Italianas agora em território aus- traliano, espaço que propicia amizades e desenvolvimento do sentido de comu- nidade, permitindo ultrapassar os constrangimentos sentidos noutros lugares.

O conceito de espaço terceiro foi utilizado pela primeira vez por Bhabha em 1994 para fazer notar, dum ponto de vista pós-colonialista, como as condições do discurso fazem com que «os mesmos sinais possam ser apro- priados, traduzidos, re-historicizados e lidos de novo» (apud Moje, et al., 2004, 37). Assim através da linguagem e através da interação entre pessoas produz- se o terceiro espaço, podendo-se aí resistir culturalmente e desafiar conceitos dominantes de «unidade e fixidez».

Gutiérrez, Baquedano-López, Tejeda & Rivera em 1999 (apud Moje, et al., 2004) recorrem ao mesmo conceito, duma perspetiva também lin- guística, e agora para aplicação educacional. Encaram o terceiro espaço como um recurso cognitivo e social, dado que a diversidade e o hibridismo de ex- pressões em presença na escola permitiria ultrapassar os limites da comunida- de ou da domesticidade para atingir o nível dum discurso baseado na própria escola onde existe um lugar terceiro propiciado pela diversidade.

Contudo o autor porventura mais citado pelo uso deste termo, em trabalhos sobre bibliotecas, é provavelmente Edward W. Soja (1996). Apelando também ele à ultrapassagem dos binários/opostos conceitos de espaço social e de espaço físico, de espaço real – espaço primeiro – e espaço imaginado – espaço segundo – para atingir novas alternativas e novas definições dum es- paço terceiro. Soja entende que as novas condições de vida, nomeadamente o caráter omnipresente das novas tecnologias, as lutas contra as várias formas de discriminação ou os novos conflitos e arranjos geopolíticos reforçam a ideia de que «a dimensão espacial das nossas vidas nunca teve tão grande relevân- cia prática e política como tem hoje em dia», tornando patente que «somos, e sempre fomos, seres intrinsecamente espaciais, participantes ativos na cons- trução social nas nossas espacialidades abrangentes» (p. 1).

É assim um autor que se insere numa corrente pós-coloniaIista e feminista, crítica. E assim sendo defende (op. cit.), baseando-se em Lefèbvre, que se construa uma trialética do ser na análise do social: espacialidade, en- tendida como produção de espaço; historicidade, com a dimensão tempo; e so- ciabilidade, entendida como ser-no-mundo. Espacialidade, da sua perspetiva, refere-se não só à produção social do espaço como à sua interpretação social. Ficam assim abertas as perspetivas para análises do espaço que integrem também as dimensões sociais de classe, género, etnia, ou das relações de po- der. E terceiro espaço é também uma perspetiva que favorece posicionamen-

tos dos que se opõem às opressões e que se estruturam em torno dessas ca- tegorias assumindo assim qualidades não só discursivas como performativas (Morgan, 2008).

Soja (1996) aproxima os conceitos de heterotopia e de espaço terceiro pela capacidade que ambos têm de romper leituras tradicionais do es- paço, tal como as visões disciplinares da Arquitetura e da Geografia. Na falta de definição precisa no conceito foucaultiano de heterotopia, vê Soja uma van- tagem, a de permitir não só adicionar outros espaços – o espaço terceiro – a estas análises como, acima de tudo, a vantagem de permitir perturbar e romper com a mesmidade convencional e de pensar o espaço com outras formas, pen- sá-lo com alteridade.

Ainda para o mesmo termo thirdspace ou third place, um outro conceito usado, talvez com bem mais frequência em literatura sobre bibliotecas é o dos lugares terceiros de Oldenburg (1989)2: lugares que não são nem casa,

nem trabalho, onde, como visitante habitual, se pode estar informalmente em público em amena interação, como acontece nos cafés, nos cabeleireiros, nos clubes (Harris, 1998; Harris, 2003; Lawson, 2004; Audunson, 2005). Carateri- zar-se-iam por serem lugares neutros socialmente, despretensiosos, que não requerem credenciais especiais, onde qualquer um pode entrar. Harris e Law-

son, estabelecem também comparação entre os centros comerciais, abertos, e uma abertura ideal proposta ou efetivamente existente nas bibliotecas.

O conceito de lugares terceiros é estendido à Net, estabelecen- do-se analogias entre aqueles lugares físicos de interação relaxada e os luga- res virtuais criados com essa mesma pretensão (Turkle, 1997; Wellman, 2001; Liff, Steward & Watts, 2002).

Na realidade o acesso às bibliotecas públicas, sendo universal no direito, não o é na prática quotidiana: desde o desigual acesso condicionado pela proximidade geográfica, ao fechamento a todos os que não reúnem os re- quisitos mínimos de literacia e até aos desiguais hábitos de frequência de luga- res associados a um capital cultural relativamente alto.

Para além disso, investigação sociológica recente aponta para o facto de os próprios locais para passar os tempos livres, incluindo os ligados ao consumo – no caso de Portugal ver por exemplo em Estanque & Mendes (1998) – não serem abertos a todos nem socialmente neutros, mas de compor- tarem, pelo contrário, as marcas do social, do simbólico e do tempo histórico que os suporta e envolve, como referido em anterior trabalho (Sequeiros, 2007a).

Uma outra vertente desta questão prende-se com a forte pressão privatizadora e consumista exercida sobre o atual espaço urbano (Pirodi & Mattogno, 2002). O dispositivo sócio-espacial, o designado espaço público ur- bano, caraterístico das cidades tradicionais, está agora conformado por novas relações de poder entre público e privado, sendo cada vez menos cívico e me- nos público. As próprias pessoas que usam espaços para atividades de consu- mo os vêem como sendo públicos, de uso público, apesar de serem de proprie- dade privada. Neste novo tipo de espaço urbano, onde o consumo está hege- monizado e exclui outras atividades, onde a dimensão económica retira espaço à dimensão política, a exclusão do consumo não só comporta a exclusão duma parte da vida e dos espaços públicos, como pode dar lugar a segregação cultu- ral: se não se pode impedir o acesso ao espaço público urbano pode-se desva- lorizá-lo e torná-lo menos «cívico» privando-o da sua dimensão política através duma cultura de uso baseada no consumo (idem, 203).

O espaço feito Cidade, um espaço desigual