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Estamos vivendo uma crise da comunidade (BAUMAN, 2003) e da identidade (HALL, 2002). O individualismo exacerbado tem nos levado a achar que dependemos cada vez menos do outro, enquanto que as relações da urbanidade contemporânea tem nos tornado cada vez mais interdependentes, precisamos agir comunitariamente no trabalho, no trânsito, no bairro/condomínio, pertencemos a vários grupos/comunidades sem se dar conta, e o não reconhecimento do pertencimento a estes grupos, enfraquece a noção de identidade, fazendo com que enxerguemos o outro, que goza de causas comuns, como inimigo, ou no mínimo como concorrente.

O ideal de comunidade está muito arraigado nas características nacionalistas e homogeneizantes, é necessário compreender que, para cada grupo com um interesse em comum, existe uma série de subgrupos identitários que o compõem. Em um bloco carnavalesco, por exemplo, existem variáveis étnicas, religiosas, de orientação sexual, que se reconhecem como

comunidade através de uma causa comum, mas divergem em outras. O segredo para uma boa convivialidade nas comunidades atualmente é reconhecer a unidade na diversidade, as múltiplas identidades e os conflitos sociais como algo inerente ao seu processo de maturação.

Na tentativa de uma interpretação da sociedade brasileira, o antropólogo Roberto DaMatta trata dos carnavais enquanto ritual nacional, e os insere como objeto socioantropológico importante para a compreensão histórica do Brasil. Aborda características da festa carnavalesca, que acabam por se fazerem presentes nas estruturas sociais durante o ano inteiro, como a malandragem e o conhecido “jeitinho brasileiro”, e características mais comunitárias, como a noção de família e parentesco transbordando os laços consanguíneos. Dois trechos da obra que sintetizam bem o pensamento de DaMatta (1997) acerca da sociedade brasileira são: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei” (p.20) e “Você sabe com quem está falando?” (p.179). Desta forma, vivemos uma “democracia” dos favorecidos, da seletividade.

O carnaval costuma ser propagado como uma festa democrática, de todos, no entanto, pode-se observar que cada classe social tem o seu lugar na festa e apenas se misturam aparentemente. Durante o período colonial até meados do século XIX, o modelo de festa mais praticada foi o Entrudo, com uma versão que aconteciam na residência das elites, e a outra de rua, mais popular. Visando distinção social, a partir de meados do século XIX, as elites começaram a abandonar o entrudo e a participar de bailes de máscaras, modelo recém-importado da Europa, que trouxe junto também o passeio, pois, como maneira de exibir suas elegantes fantasias, a alta sociedade se organizava em grupos que seguiam para os bailes em forma de cortejo, sendo um espetáculo à parte, pelas ruas das cidades. Na tentativa de maior popularização, surgiram os bailes públicos, mais acessíveis, porém ainda distantes da grande camada da sociedade, que costumava assistir aos passeios, ou organizar seus grupos de maneira mais simples, para também apropriar-se das ruas, processo que envolvia uma série de disputadas simbólicas. Segundo Ferreira (2004, p.310), “Corso, Grandes Sociedades, ranchos, blocos e cordões formavam uma espécie de escala ‘decrescente’ da folia, começando pela mais elegante e terminando na mais popular”. Existia nitidamente no Brasil um carnaval burguês e outro popular (QUEIROZ, 1992),

até que, a partir de meados do século XX, as classes mais abastadas, resolveram se apropriar e participar das festas mais populares, fazendo com que em um mesmo espaço pudesse ocorrer o que Ginzburg caracterizou como “circularidade cultural20”. Os usos políticos, midiáticos e burgueses de modelos de festas como os das escolas de samba cariocas, dos blocos de rua pernambucanos e de trios elétricos baianos, colocaram-nos em posição de destaque nacional, fazendo com que eles influenciassem o carnaval de diversos lugares do Brasil, ao que poderíamos associar com o processo conhecido como hibridismo cultural21. As transformações por que vêm passando estas festas levam-nas à espetacularização, surgindo, assim, uma série de críticas sobre o que seria a perda de tradições para atender a interesses do capital. Reconhecendo que tradição é um processo dinâmico, deveremos compreender que existem diversas disputas, onde o que está em jogo são os interesses do que Meneses (2006) chamou de modernidade renovadora22 e modernidade conservadora23.

O carnaval brasileiro, com toda a sua variedade de influências – que segundo Meihy (1986) são europeias, africanas/negras, orientais e indígenas –, e guardando as suas devidas características regionais, foi bastante utilizado politicamente, para contribuir com a construção do Estado Nação. Apesar de toda a diversidade das festas carnavalescas, buscou-se um ideal homogeneizador para tratar da festa como identidade nacional.

No campo da literatura, autores do movimento modernista24 utilizaram bastante o carnaval para tratar da formação identitária nacional, enquanto que, no campo político, Guimarães (2012) chama a atenção para a Era Vargas, quando, por intermédio de seus órgãos de propaganda, o carnaval foi difundido como uma manifestação cultural autenticamente brasileira, de maneira a

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Ocorre quando as culturas das classes dominantes e as das classes subalternas se entrecruzam de maneira dialógica e com influência recíproca. (GINZBURG, 2006)

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É um processo multicultural de diálogo entre diferentes culturas. Por meio da globalização, as hibridações culturais estão acontecendo de maneira mais acirrada. (CANCLINI, 2011; HALL, 2002)

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Sob o ímpeto da Revolução Industrial, o ideal renovador primava pela destruição de construções antigas, como meio de progresso, para a modernização dos centros urbanos. (MENESES, 2006)

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Influenciado pelo Romantismo, o ideal conservador prima pelos monumentos do passado como alvo de culto, que são, ao mesmo tempo, reverência à arte e à celebração de uma identidade regional ou nacional. (MENESES, 2006)

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Mario de Andrade, Carnaval (1919), Oswald de Andrade, Manifesto da poesia pau-brasil (1924), Jorge Amado, O País do Carnaval (1931).

fortalecer a proposta nacionalista varguista, enquanto que Santos Filho (2005), analisando o período da ditadura civil-militar, explica que liberdade, carnaval, futebol, sol, praia, e a beleza feminina atrelada à ousadia, ao erotismo e exotismo foram bastante utilizados pela Embratur25, para se transmitir a imagem de um Brasil democrático, gigante e pró-americano.

A construção da ideia de carnaval enquanto identidade brasileira tem fortes vínculos com governos autoritários, que fortaleciam sua imagem sob a alcunha do Nacionalismo de Estado. Assim, estabeleceu-se um imaginário de uma grande sociedade carnavalesca com perspectiva universal, sendo que, na realidade, encontramos multiplicidades culturais de forma que o termo no Brasil deve ser sempre utilizado no plural, “carnavais”. No caso dos blocos pilarenses, encontramos algumas controvérsias nos discursos dos depoentes. Ao tratar da noção de comunidade, às vezes aparece como aquela “imaginada” e às vezes como a “realmente existente”, conforme tratadas por Bauman (2003). Já a noção de identidade, às vezes aparece em sua acepção nacionalista, que remete à homogeneidade, e às vezes enfoca no diálogo entre as diferenças, conforme tratado por Hall (2005).

Para Bauman (2003), comunidade imaginada é aquela postulada, sonhada, que sempre nos remete a algo bom, traz uma sensação de aconchego e segurança. “Quem não gostaria de viver entre pessoas amigáveis e bem intencionadas nas quais pudesse confiar e de cujas palavras e atos pudesse se apoiar?” (BAUMAN, 2003, p.8). Seria um paraíso perdido no qual almejamos encontrar. No entanto,

a comunidade realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e frequentemente assolada pela discórdia interna; trincheiras e baluartes são os lugares onde os que procuram o aconchego, a simplicidade e a tranquilidade comunitárias terão que passar a maior parte de seu tempo. (BAUMAN, 2003, p. 19)

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Empresa Brasileira de Turismo, órgão público criado em 1966 com a finalidade de incrementar o desenvolvimento do Turismo no Brasil. Segundo Santos Filho (2005), o órgão foi criado com o intuito de melhorar a imagem do país no exterior, que vinha sendo desgastada, principalmente por depoimentos de exilados políticos.

Agora tratando da questão da identidade, Hall (2005) explica que a cultura nacional, tornou-se expressão da industrialização e da modernidade.

As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner (1983) chama de "teto político" do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas. (HALL, 2005, p. 49)

Sob a égide deste teto-político, muitas nações colonizaram e subjulgaram outros territórios, impondo seus costumes como a identidade cultural a ser seguida, e os hábitos regionais que se mantiveram, não decorre de um processo harmônico de interação cultural, mas sim de muita luta e resistência. No Brasil, alguns intelectuais do século XX, como Gilberto Freire, Arthur Ramos e Darcy Ribeiro, estabeleceram teorias baseadas no mito da democracia racial, onde na ânsia de se conceber um imaginário da identidade nacional, acreditava-se na miscigenação entre Europeu, Africano e Indígena, formando harmonicamente o povo brasileiro. Na prática, reconhecemos que esta miscigenação democrática não existe, pois nossa base cultural hegemonicamente imposta é Luso-Euro-Ocidental, tendo resquícios de resistência afrodescendente e indígena. Além de que o termo “raça” para se referir à humanidade, já está em desuso tanto pelas ciências Biológicas, quanto pelas Ciências Sociais, que vêm se preocupando com a questão da etnicidade. Ainda tratando da identidade nacional relacionada ao ideal colonizador, observa-se que após ter passado pelo processo de neocolonização, o continente africano ficou dividido em Estados Nações, que em nada corresponde à sua complexidade de grupos étnicos. Para Hall (2005, p. 59),

não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e

grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?

Na maioria dos blocos carnavalescos, são comuns representações de identidade com acepção nacionalista, no intuito de demonstrar unidade homogênea. Sendo o carnaval uma festa controversa, o que se encontra internamente nos blocos são composições de vários grupos com identidades diversas, relacionadas a classes, gênero e etnia, que se integram apenas aparentemente, pois está em jogo uma série de relações de poder, que advém do cotidiano sociocontextual não carnavalesco. “Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural.” (HALL, 2005, p. 59).

As identidades culturais, não devem ser pensadas no sentido de unidade homogênea, mas a partir de processos que considere a unidade na diversidade. O importante no reconhecimento identitário não deve ser o comum, tentando forjadamente padronizá-lo, estandartizá-lo, mas sim como as diferenças, levando em consideração inclusive os conflitos e contradições, agregam-se em torno do comum.

Ao tratar dos blocos carnavalescos, Caçadores e Leão de Aço, muitos dos depoentes que participaram da pesquisa se contradisseram em suas entrevistas. Em determinados momentos, falavam que grande parte da população pilarense era bastante participativa, mas, em outros, reclamavam do desinteresse das pessoas, que pouco têm ajudado na organização dos blocos. Inclusive, muitos depoentes se autojulgaram, informando que já foram mais atuantes em “seus” blocos e que, apesar de hoje se encontrarem mais afastados, não perdeu a afetividade por eles.

Quando comecei a realizar levantamentos preliminares para elaboração do projeto de pesquisa, encontrei muitas pessoas com a autoestima baixa com relação aos blocos, informando que este não seria um bom objeto de estudo, pois estão em decadência, alguns chegaram a dizer que continuando como está, em breve os blocos se acabariam. Essas indagações me deixaram mais consciente da necessidade de estudá-los. Interessante é que pessoas que a priori apresentaram esse discurso declinológico, foram as mesmas que, em

momento posterior, quando realizei entrevistas com o gravador ligado, apresentaram uma visão romântica relacionada ao senso de comunidade, que mais parece aquela “imaginada”, apresentada por Bauman (2003), e de identidade, conforme a acepção nacionalista, apresentada por Hall (2005).

Um grupo, uma sociedade, uma nação desejam ocultar tudo aquilo que poderia revelar seus paradoxos, suas falhas, enfim, tudo aquilo que poderia comprometer a imagem que pretendem fornecer sobre si mesmos. (GONDAR, 2016, p. 33).

Portanto, tentarei não me deixar seduzir pelo discurso romântico acerca das memórias dos blocos, e por meio das controvérsias apresentadas nas narrativas, traçar um estudo interpretativo que nos aproxime mais da comunidade existente e do senso identitário que leva em consideração as diferenças/diversidades como elemento formador. Quando estamos tratando de realidades cotidianas, existe uma rede de micropoderes na qual os agentes sociais envolvidos apresentam uma série de contradições, e, para realizar uma análise intensiva das fontes, precisamos estar atentos a tudo, inclusive aos pequenos detalhes, conforme preconiza Ginzburg (2014), ao tratar do método de investigação que foi caracterizado como “paradigma indiciário”.