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A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. Frequentemente, as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista, na hora do cafezinho, na escada, no jardim, ou na despedida no portão. Muitas passagens não foram registradas, foram contadas em confiança, como confidências. Continuando a escutar ouviríamos outro tanto e ainda mais. Lembrança puxa lembrança. (BOSI, 1994)

Como já mencionamos em alguns momentos desse trabalho, a estória de “formação”, “origem”, “começo” ou “início” da comunidade quilombola do Buieié está atrelada aos reminiscências do período da escravidão que habitaram a região de Santa Rita do Turvo. Antes de adentrarmos no mundo das memórias do Buieié, façamos nossas as palavras de Ecléia Bosi em Memória e sociedade: lembranças de velhos, “fomos ao mesmo tempo sujeito e objeto” nessa pesquisa. Sujeito enquanto indagávamos, procurávamos saber e objeto enquanto ouvíamos, registrávamos, o como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém, um meio de que esse alguém se valia para transmitir suas lembranças141. Tal obra foi essencial para adentrarmos no campo sensível e pessoal que é lidar com memórias de uma

140 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,

1989, p. 3.

141 Bosi, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos (3a ed.). São Paulo: Companhia das Letras. 1994. p.

comunidade que tem como repositório a personificação em seus idosos, saber ouvir neste caso. Antes de ser encarado como uma metodologia de experiência ativa, se fez necessário tornar-se sensitiva, ao passo que as memórias mais ricas em detalhes e sentimentos coletivos só eram expostos depois que um vínculo de confiança já havia se estabelecido.

Durante todo o processo da realização desse trabalho, seja nas entrevistas, visitas, café com memória e oficinas, tivemos a oportunidade de ouvir as muitas memórias individuais que se interlaçam formando a memória coletiva dessa comunidade. Como Ecléia Bosi argumenta, um dos aspectos mais instigantes da construção social da memória é quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, pois há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, criando "universos de discurso", "universos de significado", em que o grupo cria uma versão consagrada dos acontecimentos na sua visão, construindo uma imagem oficial para a sociedade, tudo que não é "atualmente" significativo para o grupo é esquecido, ou mesmo os fatos que não foram testemunhados "perdem-se", "omitem-se", porque não costumam ser objeto de conversa e de narração entre seus pares, e o não reforço ou apoio contínuo dos outros sujeitos do grupo é como se ele estivesse sonhando ou imaginando, assim, hesitamos sempre que devemos falar de um fato que só foi presenciado por nós, ou que sabemos "por ouvir dizer";142. No início quando o vínculo e confiança entre pesquisador e entrevistado não havia se formado, as memórias de formação da comunidade ficavam apenas no “saber por ouvir dizer”, o não saber segundo os entrevistados, mas aos poucos, observamos que as posturas mudavam, e o “saber por ouvir dizer” dava lugar a memoriais individuais ricas cheias de detalhes, não de veracidade de fatos, pois isso de fato nunca foi de interesse dessa pesquisa oral, nosso objetivo sempre foi de conhecer os vários discursos e narrativas imersos nessa comunidade que se transformam e se reapropriam de significados ao longo das gerações, como a autora de Memória e Sociedade ressalta em sua pesquisa, a “veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas consequências que as omissões da História oficial”.143

Uma vez que lidamos com a categoria humana memórias, categorizá-las como verdadeira ou falsas seria totalmente contraditório, pois sua natureza é dinâmica, fluida, o que ela foi ou é não será sua verdade infindável, a memória é filha do presente, mas seu objeto é a mudança e lhe faltando o passado como referencial, o presente permanecerá incompreensível e o futuro escapara a qualquer projeto,144, uma vez que ela muda e se transforma conforme a

142 Ibidem p. 27-28. 143 Loc. cit.

necessidade do homem de seu próprio tempo. Nosso interesse como pesquisadores está “no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de vida” dos sujeitos da comunidade em questão.145

Segundo Bosi, no estudo das lembranças das pessoas idosas é possível verificar uma história social bem desenvolvida, pois segundo a autora, elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis. Enfim, sua memória atual, pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem ou mesmo adulta, que se ocupada com as lutas cotidianas e contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente do que no caso de uma pessoa de idade.146

Encontramos na comunidade do Buieié muito idosos que se tornaram célebres personagens da comunidade, figuras únicas como o Sr. João Laurindo, as irmãs Dona Donária e Dona Isabel, Dona Aleixa, Dona Francisca, que muito contribuíram para a permanência das memórias da comunidade, quem são, de onde vieram e o valor da relação destes com a terra. O trecho a seguir de Memória e Sociedade, relata bem a relação da memória e comunidade, como no caso dos idosos da comunidade do Buieié:

Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta- lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar, ser a memória da família, do grupo, da instituição e da sociedade: Nas tribos primitivas, os velhos são os guardiões das tradições, não só porque eles as receberam mais cedo que os outros, mas porque só eles dispõem do lazer necessário para fixar seus pormenores ao longo de conversações com os outros velhos, e assim, ensinar aos jovens a partir da iniciação. Em nossas sociedades, também estimamos uma pessoa idosa porque, tendo vivido muito empo, ela tem muita experiência e está carregada de lembranças. Como, então, os homens idosos não se interessariam apaixonadamente por esse passado, tesouro comum de que se constituíram depositários, e não se esforçariam por preencher, em plena consciência, a função que lhes confere o único prestígio que possa pretender daí em diante.147

Observamos também como tal memória se molda e se ressignifica na comunidade nas figuras dos líderes. Cidinha, há mais de 20 anos à frente da comunidade, ouviu e aprendeu de seus pais e avós, o valor da medicina natural por meio das plantas locais, sabendo nome e função

145 Op. cit. 146 Ibidem, p. 19. 147 Ibidem, p. 24. Grifo.

de cada planta, sabe também usar as “memórias do cativeiro” para alertar e unir a comunidade. Jovens líderes como Julius Keniata, Wellington Lino, Carina Veridiano e Emília ouviram dos mais velhos as muitas estórias e as utilizam em um processo de ressignificação em busca do seu “lugar no mundo”, cumprir um dever de memória por meio do caminho do conhecimento. Ser quilombola para eles hoje é apropriar-se dessas memórias na busca de novas oportunidades por meio do mundo e da universidade pública.

Durante cada experiência entre a relação mediador e comunidade, ouvimos inúmeros relatos memorialistas, lembranças, mitos e recordações, todas referem-se aos seus ancestrais como sendo negros arrancados da África pelo sistema escravista e que viveram nessa região, o “tempo de cativeiro” com muita dor e sofrimento, falam também de luta de superação de um povo na conquista de uma terra que era sinônimo de sobrevivência e vida abundante, onde puderam plantar, crescer, viver, brincar, festejar, constituíram famílias e devem muito hoje a esta “terra tudo que tem”.

Conseguimos resumir as memórias que tratam da “origem” da comunidade em três discursos principais. O primeiro discurso, relatado principalmente pelo idoso João Laurindo e reproduzido por muitos moradores como sendo o discurso oficial, versa que há mais de 100 anos, a madrinha do Sr. João Laurindo, uma escrava chamada Maria Luiza, ganhou de sua senhora chamada Nhá do Parais, uma fazendeira muito rica e boa para seus escravos, uma porção de terra, a qual com o passar do tempo, se tornou o Buieié. O segundo discurso em torno da formação da comunidade que ouvimos é composto pelos mesmos personagens, a Dona de escravo da região Nhá do Paraiso e a escrava Maria Luiza, más nesta versão, ela não teria ganhado as terras de sua senhora, e sim, teria comprado sua alforria como também essas terras. Alguns moradores relataram que a ex-escrava Maria Luiza, engordou e vendeu porcos “capados” durante toda sua vida, e com esse montante de dinheiro, ela conseguiu comprar sua liberdade e as terras, que foram passando de geração a geração para seus descendentes e acolhendo outros escravos libertos e fugidos na comunidade. Por fim, O terceiro e último discurso em torno das memórias da comunidade, relatado por um número menor de moradores e sem maiores riquezas de detalhes, relata que havia uma senhora de escravos na região que era muito ruim para seus escravos, esses por sua vez, fugiram e se refugiaram nessa área onde hoje é o Buieié.

Uma única comunidade, repleta de múltiplas memórias, as quais relatam o laço e o pertencimento das chamadas “memórias do cativeiro”, na linguagem dos moradores. As raízes pertencentes ao episódio da escravidão ficam muito presentes e latentes nos discursos da história da comunidade, quando não sabiam de fato relatar diziam sempre, eu sei de “ouvir

dizer” ou então, “não sei de verdade, eu só ouvi dos meus avós, dos meus pais, do pessoal antigo da comunidade”

Muitos estudiosos já se debruçaram sobre estudos da comunidade, sobre laços de parentesco, ou mesmo sobre histórias de vida de moradores mais velhos da comunidade, porém ouvi inúmeras vezes durante os processos de troca e reflexão com outros trabalhos desenvolvidos, que eles passam informações incorretas da comunidade, ou mesmo ficam chateados em saber que pessoas que estiveram na comunidade por um único momento, estavam difundindo a memória da comunidade sem dar a eles retorno daquilo que coletaram em suas pesquisas. Algo importante que buscamos desenvolver durante nosso trabalho foi uma relação de troca mútua, parceria, confiança e amizade.

2.3. Entre tradições e esquecimento: Baile do chapéu, Baile da Vassoura,