• Nenhum resultado encontrado

Para o desenvolvimento da nossa proposta, foi fundamental trabalhar a relação existente entre os conceitos de memória, identidade e cidadania. A compreensão da relação entre tais conceitos somente se torna possível na reflexão da capacidade de (re)significação. Como Ricouer nos apresenta, não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela”148. Por meio do exercício de esforço da ars memoria149, a memória pode ser encarada não somente como uma ferramenta de guardar dados, mas, sobretudo, como uma capacidade de (re)significação das coisas e de si mesmo; trata-se de uma representação das coisas já mostradas anteriormente, uma possível reconfiguração de tais dados guardados na memória despertados pela rememoração.

É fundamental em nossa abordagem, a compreensão do que Manuela Reis, em

Cidadania e Patrimônio: Notas de Uma Pesquisa Sociológica, apresenta: as dificuldades em

relacionarmos patrimônio e cidadania. Ela propõe uma reflexão sobre as intercessões entre patrimônio e o que ela chama de ‘novos tipos de cidadania’, envolvendo a luta por direitos culturais e padrões de qualidade de vida. Apesar de não ser óbvia a ligação entre cidadania e patrimônio, há uma espécie de conexão estrutural entre eles. A educação, a igualdade de condições no sentido da igualdade de oportunidades de acesso, a tomada de consciência, a capacidade de mobilização e associação e novas oportunidade de ação política, são algumas condições e alguns meios comuns à inteligibilidade, tanto das práticas sociais relativas à cidadania, como da valorização do patrimônio.150

Lorena Sancho Queirol em Para uma gramática museológica do (re)conhecimento:

ideias e conceitos em torno do inventário participativo, argumenta que os estudos e

discussões sobre essa temática que buscam relacionar cidadania, memória e patrimônio,

148 RICOEUR, Paul. Memória pessoal, memória coletiva. IN RICOEUR, Paul. A memória, história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p 2007, p. 40

149 Ibidem.

150 SANCHO QUEROL, Lorena. Para uma gramática museológica do (re)conhecimento: ideias e conceitos em

torno do inventário participativo. Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXV p 165-188, 2013.

abrangem cada vez mais espaços nos meios intelectuais de diversas ciências e, ao longo das últimas décadas temos visto o conceito de patrimônio cultural ampliar-se a outras dimensões do foro cultural, uma significativa mudança de paradigma alimentada pelos princípios e pelas metodologias de movimentos. Desse modo, o eixo central do processo de patrimonialização é constituído pelo sujeito e pela diversidade cultural, ressaltando que durante a segunda metade do século XX, com o aparecimento e a evolução de ideologias baseadas na democracia participativa, em que a participação funciona como critério primordial para as sociedades, observa- se que o conceito de patrimônio histórico, até então associado ao Monumento como uma forma de poder, e a uma noção de História unidirecional sofreu uma série de modificações provocadas pela necessidade de ampliação. Queirol reforça que esse percurso “desmonumentaliza” o patrimônio e torna a leitura da História mais plural, aproximando-se dos indivíduos e favorecendo a participação151.

Para Castells152, toda identidade é socialmente construída, e seus significados e símbolos são determinados pelos próprios atores que as constroem, ou seja, no processo de construção de identidades, são herdados elementos históricos, geográficos, biológicos, econômicos e institucionais dos próprios indivíduos construtores.

Acreditamos que nosso tripé conceitual se expõe indubitavelmente na execução de sua parte prática, em cada proposta de oficina de café com memoria ou em cada visita de campo. A metodologia da experiência interativa nos possibilitou reforçar as pontes existentes entre estes três conceitos, MEMÓRIA, IDENTIDADE e CIDADANIA, em que cada um desses elementos se relaciona de forma cíclica e contínua, como um moinho que se move em um único sentido triturando e unindo os grãos depositados em uma só matéria, no qual a memória funciona como alimento primordial ao sujeito que vive em comunidade, dando e atribuindo sentidos, regando e nutrindo as raízes sociais que interligam este sujeito à sociedade. Uma vez que o sujeito está consciente de suas memórias individuais e coletivas, ele se apropria, alcança e fortalece sua identidade, a qual cria vínculos de pertencimento entre o sujeito e seus laços sociais, tornando - o apto a alcançar uma autonomia cidadã, pois as ressignificações das memórias (individuais e coletivas) despertam no sujeito o sentimento de dever de memória que assume novas configurações na sociedade contemporânea em que está inserido, ou seja o capacita na busca de novas oportunidades e novos direitos. É certo que com sua identidade afirmada e fortalecida,

151 SANCHO QUEROL, Lorena. Para uma gramática museológica do (re)conhecimento: ideias e conceitos em

torno do inventário participativo. Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXV p 165-188, 2013.

152 CASTELLS, M. O poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e Cultura. 3º Ed. Lisboa:

suas memórias ressignificadas e as raízes culturais servirão como uma base rochosa resistentes a qualquer vento de tempestade. É um processo contínuo no qual cada um desses conceitos deve ser aplicado na prática em uma mesma órbita, em um mesmo movimento, até que possamos enxergar, na fusão dos três conceitos, uma única imagem, ou seja, um indivíduo que conhece sua história, delimita sua identidade e busca sua cidadania plena, sobretudo sua cidadania social (direitos básicos como saúde e educação).

Maria Cecilia Londres Fonseca153 afirma que com a ampliação do conceito de cidadania, que implica reconhecimento de direitos culturais de diversos grupos que compõe a sociedade, como: direito a memória, de acesso à cultura, tanto como o reconhecimento de produzir e consumir cultura, o patrimônio cultural foi ampliado além do que é “nacional”, levando a sociedade a adaptar uma concepção mais rica de patrimônio cultural e mais próxima dos interesses de todos grupos sociais. A releitura do patrimônio não pode acontecer apenas no nível conceitual, deve implicar o envolvimento de novos atores, busca de novos instrumentos de preservação e divulgação. Para Fonseca, as novas políticas implantadas nesse campo devem visar enriquecer a relação da sociedade com seus bens culturais, os parâmetros devem ser necessidades, demandas e recursos disponíveis. A autora ressalta que mesmo que os conceitos continuem imprecisos, é fundamental sair da teoria e ir para a prática, na esperança de que as experiências venham enriquecer a reflexão numa dialética de processo de produção do conhecimento e transformação da sociedade.154

Todas questões debatidas por Fonseca são linhas que conectam todo o objetivo do nosso trabalho, saindo das teorias, da conceitualização e indo literalmente para prática como uma sugestão de ação de educação patrimonial que pensa e trabalha os conceitos transcorridos, alçando no futuro causar apropriação da comunidade da sua cultura como de seus direitos.