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CAPÍTULO 1: COMUNIDADE NATIVA DE CALLERIA: ASPECTOS ETNO-

1.2 Quem pode contar uma história?

1.2.1 Comunidade Nativa de Callería

A Comunidad Nativa de Callería está localizada no distrito de Callería, província de Coronel Portillo, departamento do Ucayali, assentada na margem esquerda do rio Callería43. Conta-se que os primeiros habitantes se instalaram por lá no início do século XX e assim como em outras comunidades ribeirinhas, compostas a partir de agrupamentos de duas ou mais famílias, Callería foi formada com a chegada das

42Comunero é o termo local usado para se referir aos moradores que vivem na Comunidade Nativa.

43 Ao norte faz divisa com Comunidade Nativa de Pátria Nova, ao Sul com uma lagoa que a separa de

uma propriedade estatal, ao leste com outro terreno governamental. Na direção oeste está a Comunidade Nativa de Flor Nascente, o caserío Liberdade e o canal Chahusya (NALVARTE, 2015).

famílias de Antônio Maynas e Jacinto Barbaran, acompanhadas por um mestizo conhecido como senhor Shiringote (seringueiro), nome homólogo à principal lagoa da comunidade. De acordo com relatos dos moradores entrevistados por Ramírez Zumaeta (2006), a motivação da vinda teria sido a exploração do caucho, atividade pela qual se ocuparam por anos.

MAPA 3 - LOCALIZAÇÃO DA COMUNIDADE NATIVA DE CALLERÍA

FONTE: Produzido por AIDER (2003) e publicado em Navarte (2015, p.32).

Outra versão sobre a chegada dos primeiros moradores à ribeira do rio Callería é apresentada no Plano de Qualidade de Vida da Comunidade (COMUNIDAD NATIVA DE CALLERÍA, 2012). Segundo essas informações, um homem chamado Adolfo Chapalbay teria liderado uma expedição composta por duas famílias vindas de Paoyhan,

baixo Ucayali, impulsionadas pela notícia de que havia uma abundância de peixes na região. Por lá, se fixaram na entrada do canal de Chashuya44, local que precisou ser

abandonado, posteriormente, devido às modificações ocorridas no barranco em que estavam assentadas. Determinadas a permanecer pelo rio, migraram para o terreno que acomoda atualmente a CN de Callería.

Em 1938 Adolfo Chapalbay foi eleito o primeiro chefe da aldeia. Período em que não eram reconhecidos como Comunidade Nativa, e, sim, como um agrupamento de famílias. O modelo de chefia e as “eleições”, também eram concebidos de outra maneira. Como explica o professor e pesquisador shipibo, Ángel Soria:

En esa época, no había comunidades, vivían en familia. Había un hombre que ocupaba el cargo de curaca, él tenía muchas cualidades, era elegido por sus habilidades. Cuando moría, lo reemplazaba su hijo, pero no cualquiera de ellos, sino el que tenía estas habilidades. Así vivían antes de que salga la ley de comunidades, en el gobierno de Velasco. Cuando aparece la ley de comunidades nativas, el curaca se pone al otro lado, pero no pierde, se mantiene, porque este hombre tiene experiencia, es consultado por los jefes, Cuando llega la ley, es elegido el jefe en la asamblea, es una estructura del sistema nacional de movilización social. En las familias todavía se mantiene el interior (Trecho da entrevista com Ángel Soria, publicado em TURBINO & ZARIQUIEY, 2007, p.144)

Apesar de Adolfo Chapalbay ter sido uma pessoa importante, não consegui estabelecer qualquer mapa genealógico em relação à sua família. Os moradores não sabem dizer quem seriam os seus parentes, tampouco existem pessoas com este sobrenome na aldeia, diferente dos Barbarán e dos Maynas. Embora, se a gente considerar que todos os sobrenomes Shipibo são heranças dos patrões, existe a possibilidade deste ter sido alterado. Inin acredita que isso tenha acontecido não por vontade das famílias, mas por interesses dos próprios patrões, que os tratavam como

criados, nomeando e os renomeando.

Na primeira entrevista dada por Ray Koshi o nome de Adolfo Chapalbay não foi citado e no que diz respeito à chefia, ele fez o seguinte relato:

Eu fui o primeiro chefe da Comunidade, quando o governo militar Juan Velasco Alvarado ditou uma lei a favor das populações indígenas do Peru e haviam muitas organizações competentes nesta época e isto nos ajudou muito. A Lei das Comunidades Nativas 22.175, que foi ditada pelo governo militar nos ajudou muito porque falava das prioridades e de suas titulações e assim fomos reconhecidos e registrados (Ray Koshi, 2017, tradução própria).

44 Os Shipibo descrevem que nesta localidade, adentrando a floresta, vivem os encantados ou homens Hierba Luisa.

O ex-chefe da Comunidade lembra a época do governo militar de General Velasco Alvarado45 e do SINAMOS (Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización

Social) como um período significativo aos direitos dos povos indígenas do Peru,

sobretudo, porque foi criada a lei que garantia a titulação das comunidades nativas46. Por outro lado, confessou que não lhe agradava o termo “Comunidade Nativa”, preferindo a opção “Comunidade Indígena”, e quanto perguntei o motivo do seu descontentamento, me respondeu: ¡Porque soy indígena, pues!

A diferença entre os temos pode até parecer pequena, contudo, a crítica proposta por Ray Koshi exemplifica bem a relação que ele estabelece com o governo. Apesar dos discursos conciliadores e institucionais que assume algumas vezes, em muitas outras, o líder se posiciona contra o Estado, principalmente quando este nega os seus direitos enquanto indígena.

Orgulho semelhante sente por sua comunidade, “Callería tem em si muita

trajetória”, afirmou Ray Koshi no começo da nossa entrevista. Segundo o ancião, a

comunidade leva este nome devido a uma adaptação feita pelos mestiços, “nos primeiros tempos meus ancestrais colocaram o nome de payaría, que em shipibo se pronuncia assim. Neste tempo, andávamos muito próximos aos mestiços, que não conseguiam pronunciar a palavra e colocaram o nome de Callería”. Esta história remonta a geografia dos lugares percorridos pelos seus antepassados, que se referiam ao rio próximo à aldeia como payaríya (payari = Aruanã + sulfi. ya = com), conhecido pela abundância em peixes dessa espécie, Aruanã (Osteoglossum bicirrhosum), grande e suculento, similar ao paiche (Arapaima gigas - huame - pirarucu).

Do agrupamento de famílias que se deslocaram em busca peixes ou trabalho, Callería antes de ser reconhecida como Comunidade Nativa foi submetida ao sistema de

Colonia, empreendimento missionário evangélico que estabeleceu suas bases nos

principais rios amazônicos (RODRÍGUEZ ALZZA, 2017). As Colonias foram criadas com intuito de reunir e fixar as populações indígenas em uma mesma localidade, a fim de evangelizá-las. Interessados em ocupá-las, os missionários percorriam o Ucayali e seus afluentes em busca de novos moradores47.

45 Entre os anos de 1969 até 1975.

46 O Governo militar de General Velasco Alvarado emitiu em 1974 o decreto legislativo N° 22.175 - Ley de Comunidades Nativas y de Desarrollo Agrario de la Selva y Ceja de Selva.

47 Mesmo que a comunidade tenha abandonado o título há muito tempo, ainda é lembrada no porto de

A organização missionária South America Mission (SAM) se estabeleceu nesta região e desenvolveu seu trabalho em Callería por muitos anos. Uma das estratégias mais eficazes desta organização consistia em cristianizar indígenas que poderiam ajudar a contatar outros grupos, sobretudo, aqueles considerados isolados. E, diferente dos patrões do caucho, que não se mostravam dispostos a aprender o idioma, os missionários eram dedicados aos estudos das línguas indígenas, sendo grandes produtores de materiais didáticos e especialistas em traduções48 (GOW, 2006). Além disso, contavam com uma infraestrutura autônoma impressionante. Suas bases ostentavam aparatos “quase militares”, dispondo tecnologias modernas como radiocomunicadores, aviões e hidroaviões, que os permitiam chegar a lugares distantes (TOURNON, 2002, p.124).