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CAPÍTULO 3: O AMOR SE (DES) ENCONTRA PELO CHEIRO

3.1 Em busca do rao

. A amburana é aromática como uma flor, de onde vem esse cheiro que me abraça? Por que me envolve? A amburana é aromática como uma flor, aromática como uma vagem de baunilha (SHEPARD, 1999, p.191).

A escritora Clarice Lispector (1999) afirma que a inspiração é como um misterioso cheiro de âmbar, do qual o autor carrega consigo um pedaço. Ao pensar sobre os inúmeros trabalhos produzidos em relação à importância ético-estética dos odores entre os grupos Pano, devo confessar que nunca esqueci a descrição de Gleen Shepard (1999) sobre o aroma doce, semelhante à amburana, dos amantes Yora. Ou dos

odores inesquecíveis que invadem as memórias dos Yaminawa e os fazem cantar

118 A discussão proposta por Paulo de Góes diz respeito aos especialistas em cura Katutina, denominados romeya e shontiya, análogos aos onanya e meraya, Shipibo. O sufixo ya qualifica uma capacidade “ter

(CARID, 2007). De igual maneira, não consigo esquecer o cheiro do piri-piri fresco cultivado por Dona Lia e por Dona Rita, que me fizeram refletir sobre o prazer confuso que é sentir um cheiro pela primeira vez.

As raízes de piri-piri possuem um odor tão específico, que não consegui encontrar um aroma semelhante em outra espécie vegetal. Falo sobre encontrar, porque nesta busca por pessoas e plantas, entendi que “caminhar é velocidade do prazer corpóreo e da contemplação” (TSING, 2015, p.180) e é também, a melhor forma para encontrar múltiplas espécies. Dentre os prazeres que o movimento proporciona, dois deles se sobressaem: o primeiro é a recompensa da dádiva, produzida pelo encontro; e o segundo, a oferta do lugar que guiará as nossas próximas caminhadas (Idem, 2015, p.180). Andar com meus amigos Shipibo me fez perceber processos diferenciados na emergência das paisagens, tanto na aldeia quanto na cidade. No contexto de perambulação pelos quintais, roças, rios, ou de motocarro pelas ruas da cidade, entendi que “andar com” ocupava a mesma posição de “aprender com” (CARDOSO, 2016).

Sendo assim, as práticas etnográficas abertas às ações da vida e das cosmopolíticas dos encontros anunciam de antemão: nós precisamos compreender que as vidas não dependem necessariamente dos humanos, seja como porta-vozes ou como criadores da existência (CARDOSO, 2016, p.498). E isso exige uma busca por imagens que permita a descrição das socialidades para além dos humanos. Deste caminho, apesar de entusiasta, conheço pouco. Contudo, valendo-me da discussão sobre corpo que

sabe119, (McCALLUM, 1998, p.215; KENSINGER, 1992), o que posso dizer em relação aos Shipibo, é que eles preferem falar sobre as plantas enquanto caminham pelos jardins. Já que assim podem tocá-las, exibir suas folhas, galhos, raízes e sumos, explicar suas texturas e os cheiros, a forma como crescem, ocupam os espaços e interagem, ou não, com as outras espécies.

De maneira jocosa, imagino a felicidade dos etnobotânicos neste contexto de pesquisa! Mas para além da piada, essa colocação não é gratuita. Os estudos Pano contam com a sorte de ter vários pesquisadores do campo da etnobotânica. E o que nos salta aos olhos é que através de um arranjo bem feito com a biologia, eles conseguem desenvolver pesquisas capazes de manter o rigor taxionômico e a sensibilidade

119 Kensinger (1974) iniciou uma discussão sobre a epistemologia corporal Huni Kuin que influenciou e

moldou diversos estudos posteriores sobre o assunto. Corpos diferentes acumulam conhecimento de formas diferentes, em que aprender e ensinar envolvem processos físicos sensoriais: escutar, falar, tocar, digerir. O corpo que sabe aprende através da pele, das mãos, das orelhas. McCallum (1998) mostra como o conhecimento se acumula e incorpora ao corpo e aos órgãos das pessoas Huni Kuin à medida que entram em contato com aspectos do ambiente e suas materialidades.

antropológica (CARID, 2007. p. 244). Este é o caso da pesquisa produzida por Shepard (1999), que propõe um estudo comparativo entre as farmacopeias Matsigenka (arawak) e Yora (Pano), e para citar alguém próximo da nossa literatura, acrescento o belíssimo trabalho do etnólogo francês Jacques Tournon, entre os Shipibo. Sem dúvidas, uma das pesquisas mais importantes produzidas na região do Ucayali.

Lembrando, ainda, que no final da década de trinta foi publicado o livro do pesquisador alemão Gunter Tessmann, que reúne diversas determinações botânicas120 em relação ao herbário Shipibo. Além de apresentar informações relevantes a respeito das doenças e dos sistemas terapêuticos. Sendo, na opinião de Tournon, um ponto de partida obrigatório àqueles que buscam compreender a vida material dos Shipibo121 (TOURNON, 2002).

Todavia, destaco a produção do etnólogo francês Jacques Tournon, não somente pelo número de plantas que o pesquisador foi capaz de catalogar, mas também, pelo caráter inovador da sua metodologia. As suas obras demonstram seu comprometimento etnográfico, além do profundo conhecimento pela língua. E a combinação destes fatores permitiu que o autor apreendesse questões que haviam passado despercebidas pelas leituras de outros pesquisadores. Tessman (1928), por exemplo, ao descrever as plantas medicinais bustirau e himahau e não analisar as palavras, não evidência um termo fundamental à compreensão da nosologia Shipibo, os rau (rao) (TOURNON, 2002, p. 113).

Voltando ao início, se o leitor estiver lembrado, no primeiro capítulo apresentei o trecho de um mito que fala sobre a origem dos homens hierba Luisa. A narrativa conta que o Inca Negro doou uma categoria de plantas aos Shipibo, denominadas como

rao. O campo semântico deste termo, assim como em outras línguas pano (rau, rao, dau), é bastante amplo (KENSINGER, 1974; SHEPARD, 1999, P.40; LIMA E, 2000,

p. 153; PÉREZ GIL, 2006, p.170; TOURNON, 2002, p.394; LAGROU, 2007). Os Shipibo traduzem como remédio, que pode se referir tanto às plantas medicinais quanto

120 Como nota Jacques Tournon (2006, p. 112-113), o livro escrito por Tessman “Los hombres sin dios”

publicado em 1928, nos faz oscilar entre a admiração e o horror em uma virada de página. A produção é admirável por sua riqueza etnográfica: ele apresenta inúmeros termos no idioma, descrições detalhadas dos objetos e as determinações botânicas sobre as bases de coleções do herbário. Por outro lado, o autor produz uma série de reflexões e análises racistas e negativas em relação aos Shipibo.

121 Em uma de suas viagens para o Brasil, Tessman trouxe diversos objetos Shipibo, que atualmente

fazem parte do acervo do Museu Paranaense, em Curitiba. Estas peças estão catalogadas como pertencentes ao grupo “Chama”, termo pejorativo usado para se referir aos Shipibo que aparece em algumas produções clássicas da literatura.

aos remédios convencionais, como os comprimidos e as ampolas122, mas também, como veneno123 (TOURNON, 2002, p.394). O sistema de nomenclatura e classificação dos

rao está baseado no seu uso (uso + rao, yona rao: para febre; oco rao: para tosse), em

que uma categoria pode corresponder a várias espécies botânicas124.

Jacques Tournon et.al. (1991; 1998; 2002) define a existência de duas categorias de remédios: os isin rao (enfermidade/remédio), que designa um conjunto amplo de plantas usadas fundamentalmente com fins terapêuticos125 e os isinma rao (enfermidade/neg. rao), usados em situações que não são consideradas doenças. O termo acomoda várias subcategorias, denominadas pelos seus usos126. Aqui nos interessa uma categoria deste segundo grupo, os noi rao.