• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: VIVENDO PERTO, VIVENDO LONGE: PARENTESCO E

2.1 Seguindo as fofocas e os curanderos

Os piri-piri (waste) são uma espécie de noi rao, facilmente encontrados pelos quintais das casas de Callería. Entretanto, quando perguntava aos donos sobre as plantas, recebia explicações genéricas, negativas ou acusatórias: Quem fazia o uso de

noi rao era sempre o outro, que vivia do outro lado da rua ou na outra ponta da aldeia.

Diferente do que imaginei no início, as questões que envolviam a magia amorosa não eram faladas abertamente76. Minha expectativa do assunto ser público se baseava em relatos de outros lugares, sobretudo, produzidos em comunidades em que o xamanismo é reconhecido. Evidenciei este contraste a partir de uma visita rápida a Shambo.

Na sexta à noite, durante o baile promovido pela escola, a filha do pastor e sua ex-cunhada dançavam na pista de dança, e, em um intervalo de poucos minutos, as duas adoeceram subitamente. Com muito susto, elas foram acomodadas no alojamento feminino, onde receberam o apoio da enfermeira. Logo após a saída da profissional, o professor da escola secundária e um morador da comunidade pediram para que todos saíssem. Então iniciaram o procedimento de cura, que envolvia água florida, chá, tabaco e mentol. Os curanderos permaneceram no quarto por mais de uma hora, e somente depois que as meninas adormeceram, eles deixaram o local. Na manhã seguinte, conversei com José77, que é onanya78, e ao explicar a pesquisa, em poucos minutos tive

isin rao, utilizados na cura de doenças, e os isinma rao, que não são usados na cura de enfermidades.

Deste segundo derivam os noi rao (noi = amor e rao = remédio), que são usados para seduzir, estimular ou aquecer casamentos já existentes. O uso dessas plantas seguem as etapas de um mesmo movimento: o desenvolvimento da capacidade de atração/sedução a ser aplicada ao outro (TOURNON, 1988, 1991; LECLERC, 2004, p.152).

76 Considero que uma das maiores dificuldades para realizar uma pesquisa sobre magia ou magia

amorosa, está no que a antropóloga Liliana Porto descreveu em sua etnografia a respeito de uma comunidade do Vale do Jequitinhonha, em relação aos discursos diferenciados sobre a temática, “podendo ser identificado um discurso público, feito para os de fora, e um discurso privado, compartilhado com pessoas pelas quais se tem certa intimidade” (PORTO, 2007, p.37).

77 José tem 32 anos e foi iniciado pelo seu avô aos 12 anos de idade, desempenha funções xamânicas

sempre que é solicitado. Uma particularidade que o diferencia dos homens em geral, é que borda e produz trabalhos artesanais. As mulheres Shipibo pediam para ver a bolsa que havia comprado dele, pois achavam o bordado perfeito e ficavam surpresas quando revelava que um homem teria feito.

acesso a uma lista enorme de produtos e procedimentos capazes de trazer ou “amarrar” amores. Já que esta é uma, dentre muitas atividades que são desenvolvidas pelos

curanderos:

O termo shipibo-konibo que significa xamã, onánya, engloba diversas especialidades, cujo denominador comum é o ritual de consumo da ayahuasca. Aqueles que habitam comunidades que ainda vivem da caça e da pesca exercem um papel de mediação junto aos mestres da caça; outros conduzem principalmente rituais de cura, ou se concentram mais (ou

adicionalmente) no domínio amoroso (atividade solicitada sobretudo pelos mestiços, e que proporciona uma renda não desprezível). Trabalhar para

mestiços e estrangeiros confere, às vezes, uma certa notoriedade aos onánya. No entanto, trabalhar exclusivamente para "outros" é algo malvisto, e o xamã é então considerado avaro (yôaxi), por usar seus conhecimentos exclusivamente em benefício próprio (COLPRON, 2005, p. 100, grifos meus).

Semelhante à imagem complexa e diversa da sociedade Shipibo-Konibo, as práticas de cura e suas transformações produziram modelos múltiplos de socialidade (COLPRON, 2005). As comunidades em que o xamanismo é reconhecido recebem visitas de diversos estrangeiros e mestiços em busca de cerimônias ou tratamentos relacionados aos domínios amorosos. Realidade distinta da Comunidade de Callería que, até onde soube, não existem pessoas que ocupem a função xamânica, além disso, poucas fazem uso de ayahuasca79. Os mais velhos contam que no passado existiam onanyabo, mas atualmente não existem mais. Em outros momentos, escutei discursos de

pessoas associadas à igreja evangélica que condenavam tais práticas80.

78 No xamanismo shipibo-konibo existem três classificações para os especialistas, que podem ser onanya, meraya e yobe, estes títulos não são autorreferenciais, mas atribuídos pelos outros. O maior grau que um

xamã pode atingir é de meraya. Segundo Morin (1998) a categoria de cura, onanya, é desenvolvida a partir do uso de substâncias alucinógenas e aplicada ao tratamento de doenças muito graves, para isso o xamã precisa entrar em contato direto com os espíritos das plantas e dos animais. No estágio mais avançado da carreira, onanya se torna meraya, este título demanda um modo de vida rigoroso e ascético, que poucas pessoas conseguem atingir. Os merayabo precisam seguir dietas alimentares e de abstinência sexual, importantes para realização dos transes e das uniões místicas. Esta é a categoria do xamanismo ofensivo/defensivo, que faz uso de dardos mágicos (yobe) e tabaco, prática comum entre diversos povos da Amazônia peruana. Em que cada xamã apresenta sua especificidade, conhecimento e habilidade, que resultam em laços com determinados espíritos (MORIN, 1998.p.379). No espanhol regional são reconhecidos como: chamánes, curandeiros, brujos, hechiceros, vegetalistas.

79 Um dos moradores trabalha na comunidade de San Francisco e quando está na aldeia costuma conduzir

sessões restritas aos seus familiares.

80 A contraposição entre xamanismo e protestantismo é superficial e não é explicativa. O xamanismo

shipibo é marcado por inúmeras influências exógenas, incorporando diversos elementos das igrejas ocidentais (COLPRON, 2005, p.100). Outro fator importante é a inconstância dos adeptos ao cristianismo, que muitas vezes recorrem aos especialistas da cidade ou de outras comunidades. Um estudo que trata destas questões é o que relata um processo de “Terenização” do protestantismo entre Terena do pantanal sul mato-grossense, cujos protestantes e pentecostais também recorrem aos xamãs quando consideram necessário, mas não a qualquer xamã, senão aos que também são evangélicos (ACÇOLINI, 2012, p.27).

Por outro lado, apesar de não existirem curanderos, não se pode afirmar que o

curanderismo não existe, se for pensado como um marco sócio-cosmológico e não

somente como um conjunto de práticas (LANGDON, 1996). Além das dinâmicas cotidianas em que as ações e concepções estão presentes81, tanto o curanderismo quanto o grafismo, são os principais elementos de reconhecimento nacional e internacional da “cultura Shipibo” (com aspas mesmo), e isto é reiterado constantemente, sobretudo, pelas lideranças da comunidade. Evidentemente, o curanderismo engloba outras atividades além do uso das plantas mágicas com fim amoroso; do mesmo modo, a manipulação destas substâncias não é monopólio dos onanyabo, podendo ser feito por leigos. A diferença entre Callería e outras comunidades não está na ausência do uso das plantas, mas na maneira pela qual as pessoas falam sobre elas. O assunto, apesar de não ser público, oficial, como em outros lugares, é oficioso. Incide sobre algo fundamental, um conhecimento familiar e cotidiano.

Depois de um tempo vivendo na aldeia, quando passei a entender melhor quem

vivia com quem e a participar das fofocas, comecei a falar com mais tranquilidade sobre

o uso dos noi rao82. Isto porque, eles apareciam nas histórias de casamentos desfeitos por paixões repentinas, em que as mulheres abandonavam os cônjuges e iam viver com seus amantes. Das meninas que passavam a mentir descontroladamente para suas mães quando se envolviam em relações desaprovadas pelas famílias. E no medo que as avós sentiam de que as crianças provenientes de uniões desfeitas fossem atraídas pela outra família através do uso de plantas. Em suma, circulam pelas redes de parentesco83.

81 Este assunto será melhor discutido no próximo capítulo, tendo em vista que grande parte dos moradores

possui parentes em outras comunidades que desempenham funções xamânicas e a eles recorrem com certa frequência, entre outros aspectos lábeis que envolvem a (des)crença.

82 Mesmo que parte do trabalho antropológico esteja em perceber pormenores e adentrar as teias de

parentesco através de situações íntimas, considerei importante falar abertamente sobre o tema. Certamente, muitas pessoas consideravam que meu interesse ao falar sobre o assunto estava atrelado ao desejo pessoal em resolver problemas amorosos – ainda que salientasse que fazia parte da investigação. Presenciei um episódio interessante vivido por uma etnóloga brasileira que ia apresentar em um congresso um artigo sobre canções mágicas/amorosas entre um grupo da Amazônia Setentrional, o qual realizou em parceria com algumas pessoas da comunidade (eles tinham traduzido as letras e revisado a escrita). No entanto, três dias antes do evento a proibiram de falar sobre as canções, já que este era um assunto íntimo e perigoso. Ela debateu seu interesse e reiterou a importância do assunto, mas acolheu o pedido, suprimindo as informações de sua apresentação.

83 “A importância concedida aos conhecimentos de questões amorosas não deve ser subestimada: em uma

sociedade onde a política está ligada ao parentesco e onde as esferas públicas e privadas se confundem, intervir junto aos familiares pode impedir discórdias importantes. Dado que a aliança intergrupal se concretiza o mais frequentemente por meio de casamentos. [...] Além disso, a regulação desses conflitos é por vezes feita segundo seus próprios fins, atraindo familiares específicos e afastando rivais” (COLPRON, 2005, p.100).