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O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE PROFISSÃO

No documento A liberdade de profissão (páginas 96-101)

FISSÃO, ANTES E DEPOIS DA 1.ª REVISÃO CONSTI TUCIONAL

6.3. O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE PROFISSÃO

6.3.1. Para J. J. GOMES CANOTILHO/ VITALMOREIRA, a liberdade de

profissão é “uma componente da liberdade de trabalho”. Os mesmos autores defendem que a “densificação” do conceito de profissão ou de género de trabalho deve ser feita “de forma extensiva”, cobrindo “toda e qualquer actividade não ilícita (281)” susceptível “de constituir ocupa-

ção ou modo de vida”, abrangendo “as profissões ‘principais’ e ‘secun-

dárias’, as profissões ‘típicas’ e não as não ‘típicas’, as ‘profissões livres’ e as ‘estadualmente vinculadas’, as profissões ‘autónomas’ e não ‘autó- nomas’” (282).

Por sua vez, JORGEMIRANDA entende a liberdade de profissão, antes

de mais, como “liberdade de trabalho latissimo sensu”, compreendendo “positivamente, a liberdade de escolha e de exercício de qualquer género ou modo de trabalho” lícito, “possua ou não esse trabalho carácter profis- sional (…), permanente ou temporário, independente ou subordinado, esteja estutariamente definido ou não” (283).

Em nossa opinião, é necessário decantar um pouco mais a noção excessivamente abrangente que nos é dada pelos citados autores; neste (281) Refere J. J. GOMESCANOTILHO(a título de exemplo de tarefa metódica de deli- mitação do âmbito de protecção de uma norma consagradora de um direito fundamental) que os bens protegidos por esta norma “abrangem apenas as actividades lícitas. (mesmo se elas forem económica, social e culturalmente neutras ou irrelevantes como a profissão de astrólogo), ficando de fora do âmbito de protecção as actividades ilícitas (‘passador de droga’, ‘prostituição’, ‘contrabandista’)” (Direito…, cit., p. 614-615).

(282) Constituição…, cit., p. 262. Ver, também, a idêntica tipologia no direito alemão de que nos fala ROLFSTOBER, com remissão para a jurisprudência do TCFA (Derecho…,

cit., p. 145).

(283) Direito…, v. IV, cit., p. 408.

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contexto, parecem-nos ser de aceitar, à partida, as conclusões (mais res- tritivas) da doutrina alemã relativamente ao art. 12, n.º 1, da Lei Fun- damental de Bona, assinalando, designadamente, os limites inerentes à própria noção de profissão. Estes limites seriam identificáveis, desde logo, nas características da estabilidade e da aptidão de uma actividade para constituir a base económica da existência individual — o que implica a subtracção desse âmbito específico das seguintes situações: das iniciativas económicas precárias, das actividades economicamente irre- levantes (284), das situações de “estado”, como o serviço militar obri-

gatório, e do exercício de cargos públicos (que caem na alçada de outras liberdades fundamentais; respectivamente, as primeiras situações referi- das no direito de livre iniciativa económica, as segundas na cláusula geral da personalidade (285), as terceiras na liberdade pessoal e as quar-

tas nos direitos de participação política).

Note-se, todavia, que a característica de estabilidade da actividade profissional (ou, nas palavras de ROLF STOBER, a característica de “activi-

dade projectada no tempo, e não de forma passageira” (286)), se é certo que

exclui iniciativas económicas precárias sem ligação entre si, não implica con- tudo nem o seu desenvolvimento a título principal, nem a sua habituali-

dade (podendo ser exercida a título de actividade secundária e de forma descontínua ou irregular).

Um outro aspecto importante é o da restrição do objecto da liberdade de profissão, como liberdade económica que é, a um facere do sujeito, e já não à “relação de uma pessoa com as outras relativamente aos bens naturais ou culturais por ela apropriados” (SOUSAFRANCO (287)) — o que

(284) Dito de outra forma (mais conceptualista): o próprio significado semântico do termo “profissão” implica o ser esta uma actividade “apta a constituir um modo de vida” do respectivo exercente, não podendo tal qualidade deixar de constituir um elemento essen- cial do conceito jurídico-constitucional de profissão.

(285) Não queremos com isto dizer que não consideremos digna do especial regime de protecção constitucional dos direitos, liberdades e garantias uma “profissão não remu- nerada” (e passe a óbvia contradição nos termos); simplesmente, na medida em que, como vimos, entendemos ter estatuto constitucional um direito geral de personalidade, tais acti- vidades inominadas que se possam (também) considerar como manifestações da persona- lidade e instrumentos do seu desenvolvimento, mas não sejam abrangíveis pelos direitos espe- ciais da personalidade (como é o caso da liberdade de profissão), deverão cair sob a alçada protectora daquela cláusula geral.

(286) Derecho…, cit., p. 145.

(287) Nota sobre o princípio da liberdade económica, BMJ, 355, 1986, p. 12.

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a distingue do direito de propriedade e das restantes liberdades “parti- culares” (288).

6.3.2. Mas não só: constitui uma específica característica da liberdade de profissão, que a distingue das outras liberdades económicas, a sua irre- dutível individualidade: ela só interessa aos indivíduos em si mesmos con- siderados, (JORGE MIRANDA (289), SILVALEAL (290)), na medida em que a

actividade protegida pela norma tem que ser subjectivamente imputável a um indivíduo, a cada indivíduo.

Concretizando um pouco mais: para que uma determinada actividade economicamente relevante possa ser atribuída a um indivíduo como con- substanciadora da sua profissão, e portanto merecer a tutela oferecida pela norma (por esta específica norma, insista-se), só pode ser concebível como “profissão” se implicar uma dedicação imediata, uma entrega pessoal e directa da parte do mesmo indivíduo para o seu (dela) desenvolvimento. Os servi- ços profissionais, quer sejam prestados em regime de trabalho assalariado, quer em regime independente, são sempre serviços personalizados; no primeiro caso, tal qualidade, por ser óbvia, carece de demonstração, enquanto que no segundo, constitui ela a característica que em última instância distingue a “profissão comercial” da fattispecie “empresa”. Foi precisamente a valorização deste ele- mento pessoal relativamente ao elemento económico que esteve na origem “da sua supremacia sobre a liberdade de iniciativa privada” (291).

Enfim, há-que não olvidar a própria etimologia do termo. Ela sugere a condição profissional como resultante de uma escolha pública e livre: a profissão (como a fé…) (292), configura-se, pois, como uma actividade

(288) O que exclui, como diz GÉRARDLYON-CAEN, não só “os ociosos, mas também os que não procuram senão um ganho especulativo” ou que se limitam a gerir o seu patri- mónio (Le droit…, cit., p. 108).

(289) Iniciativa económica, em Nos dez anos da Constituição, obra colectiva, dir. Jorge Miranda, Lisboa, 1986, p. 73.

(290) O princípio…, cit., p. 146.

(291) JORGEMIRANDA, Direito…, v. IV, p. 404. A este respeito, diz ainda GÉRARD LYON-CAENque a actividade profissional “é, certamente, um actividade económica exercida

em função de uma retribuição. Mas tratar-se-á de uma retribuição do trabalho, não de uma retribuição do capital. Essa retribuição tem por causa jurídica a prestação fornecida,

l’acte acompli” (Le droit…, cit., p. 108).

(292) Segundo ACHILLEMELONCELLI a palavra “profissão” implica “a assunção da parte de uma pessoa de uma posição face a outros em termos de fé: a profissão é a pro- clamação de um credo próprio. Profissão deriva, de facto, do latim profiteor, professio: decla- ração pública de querer dedicar-se a um dado exercício” (Le professioni…, p. 410).

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voluntária e publicamente abraçada pelo indivíduo, tornando este públicos quer a decisão, quer o subsequente exercício profissional “seja na mani- festação de facto que implica a dedicação habitual, seja formalmente atra- vés de expressões diversas” (293).

Mas importa não ir muito mais além deste tipo de indícios, distinguindo o conceito sociológico do conceito jurídico-constitucional de profissão. Uma boa definição no âmbito daquela ciência (sociologia) é-nos dada por TALCOT

PARSONS(294): o da profissão como domínio (conhecimento) das regras e das

técnicas necessárias para, “racionalmente”, lidar com determinadas situações ou enfrentar certos problemas, e o de profissional como “autoridade social”, porque detentor desse domínio. É que como observam acertadamente G. ARIÑO

ORTIZ/ J. M. SOUVIRONMORENILLA, as ilações extraídas de conceitos desse tipo,

como a de que só se adquire a condição de profissional pelo decurso do tempo exercitando a respectiva actividade, são considerações meramente sociológicas, que não têm necessariamente repercussões jurídicas (295).

6.3.3. Convirá ainda lembrar que a própria Constituição se encar- rega de explicitar que considera sinónimos os termos “profissão” e “género de trabalho”, o que não deixa de ter consequências, a saber:

a) o não haver lugar à distinção entre “profissão” e “actividade labo-

ral”, sendo de rejeitar considerações como as tecidas por um autor francês, de que existiria “de qualquer modo no absoluto” a “profissão” como realidade que suporia “uma certa competência atestada por uma qualificação”, que se distinguiria da simples “actividade “que poderia ser afectada do qualificativo de assala-

riada ou não assalariada” (296);

b) o constituir a consagração da liberdade de trabalho no próprio

art. 47.º, n.º 1, CRP uma pressuposição lógica (inafastável), por se consagrar, mais do que a liberdade de trabalhar, a explícita liberdade de escolher qualquer género de trabalho (não nos pare- cendo feliz, salvo o devido respeito, dizer-se, como GOMESCANO-

(293) G. ARIÑOORTIZ / J. M. SOUVIRON MORENILLA, Constitucion…, cit., p. 100. (294) Em Le professioni e la struttura sociale, em Società e dittatura, Bolonha, 1956, p. 19 e segs., citado por FRANCOLEVI, Libertà fondamentali del professionista ed ordini pro-

fessionali, RTDP, 1976, p. 906.

(295) Constitucion…, cit., p. 101.

(296) GÉRARD LYON-CAEN, Le droit…, cit., p. 109.

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TILHO/ VITALMOREIRA, que ela está “implicitamente consagrada

na Constituição” por tal decorrer “do princípio do Estado de Direito democrático” (297));

c) o não haver razão para encetar bizantinas destrinças entre as pro-

fissões intelectuais, manuais (ou ofícios), artísticas, etc., como acontece no ordenamento jurídico italiano, face ao imperativo constitucional do exame de Estado profissional, que obriga à identificação das profissões “em sentido estrito” a ele sujeitas (298).

6.3.4. Face ao exposto, e pese, como diz G. LYON-CAEN, a quase

impossibilidade de definir abstractamente a profissão (299), sempre diremos,

ensaiando uma fórmula muito genérica, que poderá ser considerada “pro-

fissão” de um indivíduo toda e qualquer actividade laboral por este abra- çada e exercida, que lhe seja directamente imputável (no sentido do seu desenvolvimento implicar, por definição, uma dedicação pessoal e directa), e que se caracterize ainda por ser lícita, estável e apta a constituir a base económica da sua existência.

Contudo, esta noção não é em si mesma suficiente para delimitar o âmbito de aplicação do art. 47.º, n.º 1, CRP; é que, como diz J. CASTRO

MENDES, “a categoria dos direitos, liberdades e garantias está na geogra-

fia jurídica um pouco como os prédios rústicos, os quais se definem por limites e fronteiras” (300), em especial, acrescentamos nós, os “de defesa”,

ou “pessoais” (os mais ligados à personalidade), importando por isso iden- tificar os limites (ou, quanto mais não seja, os critérios que permitam a iden- tificação das “pontas extremas”) que separam esta liberdade de alguns dos direitos “vizinhos”, nomeadamente do direito de acesso à função pública e do direito de livre iniciativa económica (301).

(297) Constituição…, cit., nota I, p. 261.

(298) Sobre o conceito de profissão no direito italiano, ver BRUNOCAVALLO, Lo sta-

tus professionale, I, Milão, 1968, p. 195-221, e CARLOMAVIGLIA, Professioni e prepara-

zione alle professioni, Milão, 1992, p. 9-185.

(299) Le droit…, cit., p. 109.

(300) Direitos, liberdades e garantias — alguns aspectos gerais, em Estudos sobre a

Constituição, dir. Jorge Miranda, v. I, Lisboa, 1977, p. 94.

(301) Importaria ainda, noutra óptica, identificar ainda os pontos de junção da liber- dade de profissão com outros desses direitos “vizinhos”, como é o caso do seu “cruzamento” com a liberdade científica (no campo específico das profissões academicamente tituladas) e com a liberdade de associação; todavia, tal incursão extravasaria já o âmbito predefinido do presente estudo.

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É que não basta extrair um conceito — neste caso o de “profissão” — das normas (isoladas) que o prevêem, para conseguir determinar a exten- são e o alcance das referidas normas — isto é, concretamente, do art. 47.º, n.º 1, CRP. Tal indagação ajuda-nos, quando muito, a determinar o âmbito natural do direito, “o círculo potencial e expansivo” deste (302); pelo que

importa ainda delimitar o seu âmbito jurídico. Ora, o âmbito jurídico é já, como diz MANUELAFONSOVAZ, o resultado das “restrições constitucionais

(expressas ou implícitas) ao conteúdo “natural” do direito” (303). Aquele

resulta da própria "consagração constitucional", que introduz por si só "limites ou restrições ao conteúdo natural", de limites ou restrições imanentes que decorrem da Constituição no seu todo. O âmbito jurídico do direito é, pois, um âmbito já integrado e conciliado no “sistema de valores jurí- dico políticos expressos na Constituição" (304).

Ou seja, a distinção entre a liberdade de profissão e os direitos de acesso à função pública, de livre iniciativa económica, bem como a sua conexão com a liberdade científica, é tarefa que releva ainda para a pró- pria “con(figuração) constitucional” do direito, para a definição dos "con- tornos de consagração constitucional de um direito preceituado na Cons- tituição" (MANUELAFONSOVAZ (305)).

CAPÍTULO VII

LIBERDADE DE PROFISSÃO

No documento A liberdade de profissão (páginas 96-101)