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O CONTEÚDO ESSENCIAL DA LIBERDADE DE PRO FISSÃO: A “IMAGEM DE PROFISSÃO”

No documento A liberdade de profissão (páginas 74-78)

NA CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA DE 1978 ( 222 )

5.2. O CONTEÚDO ESSENCIAL DA LIBERDADE DE PRO FISSÃO: A “IMAGEM DE PROFISSÃO”

5.2.1. Como vimos, também o Constituinte espanhol consagrou “uma proibição absoluta do legislador ordinário de qualquer afectação do conteúdo essencial (Wesensgehalt)” (233) dos direitos fundamentais. Nas palavras de

LUCIANOPAREJOALFONSO, tal garantia oferece “tanto um aspecto negativo de

proibição ou limitação ao legislador ordinário quanto positivo, de afirmação de uma substância imediatamente constitucional nos ditos direitos; aspectos que se reconduzem à fixação no máximo nível normativo de uma ordem material de valores onde se expressam os mais importantes de entre todos os que enformam a totalidade do ordenamento jurídico, e que constitui o próprio suporte da decisão constituinte entendida como um todo” (234).

O Tribunal Constitucional Espanhol, na sua sentença de 8-4-81, enten- deu existirem duas vias para se poder chegar à noção do que seja o “núcleo essencial” de um direito. A primeira via seria a de “tratar de acudir ao que se costuma chamar a natureza jurídica ou o modo de conceber ou confi- gurar cada direito”, estabelecendo a ligação entre a linguagem da norma e a chamada “metalinguagem”, isto é, “as ideias gerais e convicções geral- mente admitidas entre os juristas”, na medida em que “o tipo abstracto do direito é conceptualmente preexistente ao momento legislativo”. Nesse sentido, pode-se falar da sua “recognoscibilidade na legislação concreta” — que no caso, claro está, é a própria Constituição, e o momento o da sua feitura. Posto isso, para o mesmo Tribunal “constituem o conteúdo essen- cial de um direito subjectivo aquelas faculdades ou possibilidades de actua- ção necessárias para que o direito seja cognoscível como pertinente ao tipo descrito e sem as quais deixa de pertencer a esse tipo e tem que pas- sar a ficar compreendido em outro, desnaturalizando-se, por assim dizer”. E a segunda via consistiria na identificação dos interesses juridicamente protegidos como “núcleo e medula” do direito; assim, “rebaixa-se ou des- conhece-se o conteúdo essencial quando o direito fica submetido a limitações que o tornam impraticável, o dificultam além do razoável ou o despojam da necessária protecção”. As duas vias não seriam alternativas mas com- plementares, quando se tivesse que averiguar o concreto conteúdo de cada direito.

(233) LUCIANOPAREJOALFONSO, El contenido…, cit., p. 170 (234) El contenido…, cit. p. 170.

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Também relativamente aos critérios de delimitação do “conteúdo essen- cial” de um direito fundamental o TCE seguiu, pois, as pisadas do seu homólogo germânico, nomeadamente, ao qualificar o “carácter absoluto do conteúdo essencial, mas dentro de cada direito fundamental”, isto é, ao afirmar a existência de “um limite definitório da substância nuclear (dos direitos fundamentais) que em nenhum caso pode ser ultrapassado, se bem que esse limite seja distinto para cada direito e tenha que ser determinado em concreto” (235).

5.2.2. De entre as escassas reflexões dedicadas ao tema, pode-se inferir contudo que a doutrina espanhola tende a aceitar, também, por sua vez, a construção germânica da “imagem de profissão”, isto é, da teoria do “conteúdo essencial” aplicada, especificamente, à liberdade de profissão. Assim, afirmam S. MUÑOZMACHADO/L. PAREJOALFONSO/E. RUYLOBA

SANTANA (naquele que é de longe o mais completo estudo sobre a maté-

ria), que “cada profissão tem uma imagem que o legislador está obrigado a respeitar. Ligando esta ideia com a do conteúdo essencial pode dizer-se que este impõe ao legislador o respeito por aqueles elementos, competên- cias, funções e tipos de desenvolvimento social de uma profissão sem os quais” esta “não seria reconhecível como tal” (236). Também FERNANDO

SAINZ MORENO se pronuncia no mesmo sentido: “a Constituição garante a

existência das profissões ‘típicas’, formadas pela tradição e reconhecidas pela legislação vigente no momento de entrada em vigor da Constituição” frente ao legislador; “é à realidade social a que esta (a Constituição) se refere quando fala em ‘as profissões’ ”, não se reduzindo tal expressão a fazer refe- rência “a uma noção abstracta, mas também às realidades que a sustentam, isto é às profissões já formadas e consolidadas na sociedade”, tendo o legislador “o poder de regular o seu exercício, mas não o de alterar ou des- truir a sua essência profissional e tradicional” (237).

Todavia, e a este respeito, o Tribunal Constitucional Espanhol, ao “não querer mergulhar na expressão ‘profissão ou ofício’ que o consti- tuinte não incluiu gratuitamente” (238), acabou por se recusar a retirar as

devidas ilações da primeira das vias por ele próprio apontadas, na citada (235) LUCIANOPAREJOALFONSO, El contenido…, cit., p. 186.

(236) La libertad…, cit., p. 128.

(237) Comentario al articulo 36.º, em Comentarios a las leyes políticas. Constitución

Española de 1978, dir. de Oscar Alzaga, t. III, Madrid, 1983.

(238) L. TOLIVARALAS, La configuracion…, cit., p. 1352-1353.

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sentença de 8-4-81, para a identificação e delimitação do núcleo essencial de um direito, isto é, da via do “conceito metajurídico” ou “direito pré-existente”. Partindo de um deficiente entendimento da distinção entre “escolha” e “exercício” de uma profissão, viria a afirmar, na sua sentença de 24-7-84, ser “evidente (…) que não há um conteúdo essencial consti-

tucionalmente garantido de cada profissão, ofício ou actividade empresa- rial concreta”, traduzindo-se o direito constitucionalmente garantido no

art. 35, n.º 1, CE “não no direito a desenvolver qualquer actividade, mas no de escolher livremente profissão ou ofício”.

Foi esta sentença suscitada pela arguição de inconstitucionalidade de uma lei equivalente à lei bávara das farmácias que na Alemanha deu ori- gem, como vimos, à tão falada Sentença das Farmácias (ApothekenUr-

teil). Concretamente, foi objecto de impugnação uma norma da Lei de

Bases da Saúde Nacional de 1944 que limitava (e limita) o número de farmácias no território nacional (estabelecendo os requisitos exigidos para os locais onde se pretenda exercer a actividade de farmácia, tendo em atenção, designadamente, os clássicos parâmetros proteccionistas da pro- porção com a população e das distâncias entre os locais). Mas o Tribunal Constitucional Espanhol, diferentemente do seu homólogo alemão, enten- deu, em suma, não se poder considerar infringida a liberdade de escolha de profissão pelo facto de a lei determinar certas condições para os locais destinados ao exercício de uma das modalidades da profissão farmacêutica, na medida em que aquela lei não impediria a ninguém a escolha da pro- fissão titulada de farmacêutico (para além da exigência do correspondente título universitário), limitando-se uma das suas normas a restringir ou con- dicionar tão só o exercício de uma das modalidades da profissão — para o que teria a necessária habilitação constitucional no art. 36 CE (239).

Contudo, como diz L. TOLIVARALAS, sendo indesmentível a essencial

“acessoriedade da relação entre farmacêutico e farmácia”, uma norma como a questionada, que implique a cisão entre um e outra “destroi pal- marmente um aspecto típico da profissão e, ainda hoje, majoritário como

modus vivendi do sector”. Na verdade, o TCE parece esquecer que o con-

(239) Sobre esta matéria, ver JESÚS GONZALEZPÉREZ, La constitucionalidad de la

legislacion sobre establecimiento de farmacias, REDA, n. 39, 1983, p. 595 e segs. (neste

comentário à Sentença de 10-5-83, do Tribunal Supremo — de que viria a ser interposto o recurso para o TCE que despoletou a sentença analisada no texto — o autor sufraga a doutrina de ambos os Tribunais, sem, contudo, adiantar novos argumentos além dos já aduzidos numa e noutra sentença).

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teúdo da liberdade de profissão tem que incluir “a opção entre possibili- dades certas e não entre quimeras deixadas ao arbítrio total do legisla- dor”; e que se “esse conteúdo deve incluir (…) o limite do respeito pelos direitos alheios e a condição de que toda a regulamentação intervencionista se faça com critérios de proporcionalidade e razoabilidade, a diferença entre a escolha de uma profissão e aquilo em que consista o exercício concreto da mesma não deixa de ser muito relativa. Seria o mesmo que separar do direito ao sufrágio o conhecimento das opções a votar” (240).

Outros autores invocam ainda, no mesmo sentido, a doutrina firmada nesta sede pelo Tribunal de Karlsruhe; é o caso de JESUS ORTEGA TRE- CEÑO, que lembra que a liberdade de escolha de uma profissão se realiza

no seu exercício”, formando um e outro momentos “o complexo unitário da liberdade profissional contemplado de pontos de vista diferentes” (241),

e de S. MUÑOZ MACHADO/L. PAREJO ALFONSO/ELOY RUILOBA, que dizem

por sua vez que as regulamentações da liberdade de exercício, sendo “pos- síveis sempre que estejam justificadas pela necessidade de preservar os direitos ou interesses de terceiros ou alguns valores constitucionais proe- minentes”, não obstam em todo o caso, ao dever de “respeitar o conteúdo essencial de cada profissão, que coincide ordinariamente com a imagem que na sociedade se tem da mesma” (242).

Note-se, enfim, que não é destituída de significado a menção do Tri- bunal, na mesma sentença, a “cada profissão, ofício ou actividade empre- sarial” (que torna o conceito de profissão num mero sinónimo de actividade económica permanente), e, num segundo momento, a referência genérica a “qualquer actividade”, assaz desvalorizadoras da autonomia dos concei- tos constitucionais de “profissão e ofício”.

É certo que a doutrina e a jurisprudência alemãs têm este entendi- mento amplo do homólogo termo (Beruf) usado pela Lei Fundamental de Bona, no seu art. 12, n.º 1. Mas as situações não são comparáveis, sobretudo no que se refere aos âmbito de protecção, uma vez que, como vimos, o constituinte espanhol, diferentemente do alemão, separou a liberdade de profissão do “núcleo duro” e super-protegido das liberda- des mais ligadas à dignidade da pessoa humana, inserindo-a noutro

(240) La configuracion…, cit., p. 1353.

(241) Um caso de aplicacion por el Tribunal Supremo de la reserva de ley para

regular el ejercicio de las profesiones tituladas contenida en el articulo 36 de la Consti- tucion, REDA, n. 42, 1984, p. 489. (242) La libertad…, cit., p. 222.

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local, nomeadamente na secção agrupadora dos direitos e liberdades económicas (juntando-a assim ao direito ao trabalho, à liberdade de empresa e ao direito de propriedade).

Claro está que desse modo aumentou o constituinte espanhol o risco de se virem a esbater — como se esbateram, na jurisprudência do supremo intérprete da Constituição — as diferenças entre uns e outros, e de se estabelecerem ou se sugerirem extensões ou analogias menos feli- zes, em prejuízo da específica liberdade que no referido grupo se encon- tra mais intimamente conectada com a personalidade, e por isso mais for- temente oponível, por natureza, a outros direitos ou interesses colectivos com ele conflitantes que o legislador pretenda tutelar, isto é, da liberdade de profissão.

PARTE II

No documento A liberdade de profissão (páginas 74-78)