CAPÍTULO II - A FORMAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS ENTRE
2.2 O CONCEITO DE MOVIMENTO SOCIAL
Apesar de não haver uma definição consensual de movimento social, alguns autores se
dedicaram a propor conceitos capazes de explicar tal fenômeno, estudando diversos
movimentos sociais em seu desenvolvimento histórico, em sua composição social, em sua
dinâmica interna, em sua interação com as relações de poder e em sua capacidade de imprimir
novas configurações às relações sociais. Alguns conceitos de movimento social são amplos e
procuram dar maior amplitude à sua aplicação a fenômenos que possam ser caracterizados e
explicados enquanto movimentos sociais.
A socióloga Maria da Glória Gohn
55assim define movimentos sociais: “São ações
coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes
classes e camadas sociais”. Deste modo, os movimentos politizam suas demandas e criam um
campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de
repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As
ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao
movimento, a partir de interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da
solidariedade e é construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos
compartilhados pelo grupo.
Para Gohn
56, “os movimentos sociais representam o conjunto de ações coletivas
dirigidas tanto à reivindicação de melhores condições de trabalho e vida, de caráter
contestatório, quanto à construção de uma nova sociabilidade humana”, o que significa, em
última análise, a transformação das condições econômicas, sociais e políticas da sociedade
vigente. A autora cita como as principias categorias dos novos movimentos sociais a sua
preocupação com a ação do ator, a cultura, a ideologia, as lutas sociais cotidianas, a
solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social e o processo da articulação
das identidades coletivas.
Para o sociólogo francês Alan Touraine os movimentos sociais operam na produção de
cultura e na apropriação de valores sociais, opondo-se e complementando-se aos adversários
aos quais estão ligados por relações de poder. Nesse sentido,
55
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 7. ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 44.
56
[...] movimentos sociais são frutos de uma vontade coletiva. Os movimentos sociais falam de si próprios como agentes de liberdade, de igualdade, de justiça social, de independência, ou como apelo à modernidade em nome de novas ‘forças sociais’, criticando um mundo de tradições, preconceitos e privilégios.57
Touraine assinala três elementos constitutivos na abordagem sobre o movimento
social: o autor, o adversário e o conflito nas quais outras três dimensões se sobressaem:
identidade, oposição e totalidade. Touraine não deixa de defender a necessidade de equilíbrio
e complementaridade de força na relação entre a sociedade civil e o Estado e afirma que se o
poder inclinar para o Estado torna-se autoritário; se inclinar para a sociedade civil torna-se
democrático, mas corre o risco de perder a ligação com o Estado, provocando uma reação
antidemocrática ao movimento.
O tema da democracia e da sociedade civil adquire, no pensamento de Touraine, a
centralidade impar, pois não só estão em jogo os processos de democratização de vida política
e garantia de direitos fundamentais, mas também a questão de equilíbrio de poder no qual o
conflito e o consenso são elementos de construção de uma sociedade democrática. Segundo
Touraine,
A democracia só sobreviverá quando os atores sociais (movimentos sociais) e políticos (Estados) estiverem ligados uns aos outros; quando a representatividade dos cidadãos estiver garantida, com a condição de que esta representatividade seja associada à limitação do poder, à cidadania, à luta pela melhoria das condições de vida dos indivíduos, mas também quando essa representatividade aceita os conflitos, as contestações e as visões contrárias que tornam a sociedade cada vez mais consciente de suas orientações.58
Segundo esse paradigma, os fenômenos coletivos não seriam simples reflexos de
crises sociais que gerariam produção de novas formas de sociabilidade, mas uma atividade
para a produção e configuração de novas formas de fazer política.
Outros autores privilegiam em suas análises as causas que geram a mobilização social.
A partir de um enfoque eminentemente sociológico, analisam as ações coletivas propositivas
para alterar as instituições em função das necessidades humanas, dando a entender que as
mudanças acontecem devido às pressões dos movimentos sociais.
57 TOURAINE, Op. cit., 1978, p. 35.
58
TOURAINE, Alain. O que é democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996, p. 92.
Neste sentido, outra concepção de movimento social bastante difundida é a de Alberto
Melucci, para quem movimentos transitam, fluem, acontecem em espaços não consolidados
das estruturas, instituições e organizações sociais.
A reflexão conceitual de Alberto Melucci em torno da ação coletiva tornou-se uma
referência importante sobre os movimentos sociais contemporâneos no campo da sociologia
européia. Contrariamente a Touraine, que privilegiou nos seus estudos os sistemas
macrossociais, Melucci concentra sua atenção no plano microssocial nas relações entre atores
cujo significado nos possibilita condições para fazer outras mediações conceituais e conexões
metodológicas não restritas ao fenômeno “coletivo”.
Para Melucci, os fenômenos contemporâneos combinam componentes diversos e
multifacetados. Ele procura decompor essa forma de ação coletiva multifacetada para explicar
a dinâmica da sociedade contemporânea e da complexidade da ação coletiva, a modernização
institucional e formas de solidariedade conflitual entre atores com capacidade de (re)definir o
campo político. A articulação de novas categorias sobre a ação social coletiva e movimentos
sociais, capazes de modular e transpor diferentes subjetividades e ações dos indivíduos são
principais desafios das sociedades complexas.
As sociedades complexas não possuem mais bases econômicas, mas uma integração crescente das estruturais culturais, políticas e econômicas... Os espaços sociais dos movimentos se constituem como arena distinta do sistema e não coincide mais com as formas tradicionais da organização social da solidariedade e de representação política.59
Meluci mostra que nas sociedades contemporâneas o conflito social e político não têm
espaço delimitado de ação. Não faz parte do sistema econômico industrial e nem é oriundo de
sistemas formais de representação política. O conflito está na vida cotidiana e os movimentos
sociais não são personagens que se movem em função do fim que lhes são atribuídas pelos
ideólogos, mas se apresentam como redes complexas de relações entre níveis e significados
diversos da ação coletiva de atores sociais.
Nessa perspectiva, Melucci
60refere que “a identidade coletiva não é um dado ou uma
essência, mas um produto de trocas, negociações, decisões, conflito entre autores sociais.”
59 MELUCCI, A. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 22.
Outra questão que Melucci destaca nos movimentos contemporâneos é que as redes de
ação coletiva estariam operando através de um sistema de trocas simbólicas. Nesse sentido,
segundo Melucci, “as redes de ação coletiva teriam as seguintes características permanentes
de funcionamento:
As redes estariam ligadas: (1) à vida cotidiana; (2) a identidade do grupo transformaria em ação coletiva visível em situação de latência; (3) a mudança é apenas uma condição de mobilização; (4) a agregação que resulta da mobilização não persegue os objetivos de longo prazo.61
Melucci vê a interação do ator numa ação coletiva como resultado de múltiplos
processos, onde a militância (agregação) seria de curta duração. No entanto, Melucci
62destaca
que “a identidade coletiva nunca é inteiramente negociável, porque a participação e a ação
coletiva são dotadas de significados, representações fragmentadas, pluralidade de
sentidos-interesses e complexidades das decisões e das relações.”
Consideramos interessante a abordagem de Melucci para a análise dos movimentos
sociais da região Alto Uruguai, por destacar que a atuação dos mesmos se dá nos sistemas
microssociais, ou seja, não estariam necessariamente interessados na construção da
hegemonia dentro do Estado, mas pela conquista de direitos específicos de uma determinada
classe ou categoria.
Neste sentido, mesmo que os paradigmas que norteavam os movimentos sociais
tenham sofrido mudanças nos últimos anos, com o surgimento dos Novos Movimentos
Sociais, quando observávamos que os movimentos sociais da região Alto Uruguai nos anos
1980 articulavam as lutas específicas para os trabalhadores com a defesa da democracia e a
crítica ao capitalismo, o elemento central que dava razão para a existência dos movimentos
estava centrado na defesa de questões no campo micro social.
Para a análise dos novos movimentos sociais ligados aos pequenos agricultores,
concordamos quando Melucci alarga a noção de sociedade, identidade coletiva e de Estado,
incorporando a sua multidimensionalidade num campo aberto de pluralismo político e tomada
de decisões culturais autônoma de atores sociais.
Deste modo, o conceito de classe social herdado do marxismo, onde prevalecem os
sistemas macrossociais, defendidos por Gohn e Touraine, não teria condições de explicar a
61
MELUCCI, A. Op. cit., 2001, p. 98.
ação coletiva na sociedade contemporânea, por esta apresentar relações sociais mais
fragmentadas, heterogêneas, complexas e autônomas.
Os estudos específicos sobre movimentos sociais, até 1960, ressaltavam uma
preocupação centrada nas lutas operárias e sindicais, ou seja, a luta de classes, também com
perspectiva essencialmente marxista. Cabe destacar que o conceito de movimento social era
utilizado em acepções amplas, envolvendo grandes períodos históricos e denominavam-se
dessa forma também guerras, movimentos nacionalistas, ideologias radicais, ideologias
libertárias. Entretanto, os estudos crítico-marxistas associavam o conceito de movimento
social à questão da reforma ou da revolução.
O paradigma teórico mais amplo era o dos processos de mudança e transformação social, fundamentada na análise da realidade social, tendo como sujeito principal do processo a classe trabalhadora. Os estudos empíricos tratavam em sua grande maioria do movimento operário e camponês, bem como dos sindicatos e dos partidos políticos63.