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Capítulo 3. A profissionalidade docente

3.1. Conceito de profissionalidade docente

O conceito de profissionalidade que se delineia, calcado na reflexão do professor sobre sua própria experiência: "O professor forma a si-mesmo mais do que é formado" (Nóvoa, 1994, p. 15), "... aprende na acção e reflectindo sobre ela" (Gomez, 1992, p. 110), tem implicações decisivas na formação dos profissionais da educação. Os profissionais não podem ser considerados uma massa amorfa, objecto de acção e de formação exteriores a eles próprios. A formação profissional não se

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pode mais reduzir aos espaços formais e escolarizados, organizados com esse fim. Ela precisa ser concebida como algo que se pode dar antes, durante e depois do processo formal, como "espaços de reflexão sobre o próprio trabalho" (Gomez, 1992, p. 33). Ou seja, precisa ser concebida como processo de desenvolvimento que se inicia no momento da escolha da profissão, percorre os cursos de formação inicial e se prolonga por todos os momentos de exercício profissional ao longo da carreira, incluindo as oportunidades de novos cursos, projectos e programas de formação continuada. Desta forma, são momentos igualmente formadores do profissional em ensino: a história de vida, as experiências e os contextos que antecederam a escolha da profissão, os cursos de formação inicial, os diferentes momentos de exercício da profissão e, finalmente, as condições e os contextos nos quais tais momentos se efectivam.

Roldão (2000) considera que a profissionalidade caracteriza aqueles agentes de actividade social que se podem identificar por “uma função social autónoma e reconhecível, a posse e a produção de um saber específico para o desempenho dessa função, a competência reflexiva sobre a própria actividade e a reciprocidade e trocas entre parceiros de profissão” (Roldão, 2000, p. 5).

A percepção que os professores aprendem a ter de si-mesmos como intelectuais e a identificação do trabalho que realizam como uma actividade em busca de conhecimento, a partir de parcerias com os seus próprios pares e com outros profissionais, podem ajudá-los a romper as condições que restringem as suas possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional, além de os ajudar a “levar para dentro da escola, forças que os auxiliem na luta pelas condições materiais e ideológicas que lhes permitam agir como intelectuais" (Giroux, 1988, p. 50).

O discurso da profissionalidade está hoje largamente difundido, sendo cada vez mais evidente que é sobre ele que se irá construir o novo ideal para a profissão docente. Mais profissionalidade docente significa no novo discurso, maior sucesso das escolas, o que se traduzirá em maior desenvolvimento social e económico. A profissionalidade esconde, para muitos analistas, a nova estratégia de mobilidade social ascendente dos professores, com a qual pretendem alcançar um melhor status e mais poder. Os comportamentos de profissionalidade docente são as “condutas

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atribuídas e ligadas à função de instrução e, portanto, esperadas como devendo ocorrer numa relação de ensino/aprendizagem” (Veiga, 2005, p. 22). A crescente complexidade e diversidade das actuais sociedades exige da parte dos professores uma ampla preparação profissional e uma maior autonomia para enfrentarem gravíssimos problemas (Cosme, s/d), tais como:

 A concentração de populações de alto risco nas zonas mais desfavorecidas, os quais se tornam em zonas de educação prioritárias;  A diversificação cultural e étnica do público escolar que põe em

questão as didácticas e os métodos tradicionais de ensino;

 A heterogeneidade dos saberes escolares com uma enorme diversidade de exigências nos diferentes cursos;

 A indefinição na divisão do trabalho educativo, nomeadamente entre os professores e as famílias. À medida que se assiste à demissão das famílias da educação crescem as exigências do país junto das escolas para que estas os substituam nas suas funções tradicionais;

 A inflação e renovação rápida dos saberes, não apenas desorganiza os conteúdos dos cursos, mas também exige uma formação permanente dos professores;

 O desenvolvimento de "escolas paralelas" (comunicação social e informática) invadiu a sociedade não apenas com imagens, mas também com informação e formação, concorrendo directamente com os saberes mais sistematizados e menos apelativos difundidos pelas escolas;

 A perspectiva de desemprego, crise de valores e sociedade dual, que favorecem a degradação do trabalho escolar;

 O alargamento da base de recrutamento social dos alunos para cursos mais exigentes, o que impõe metodologias de aprendizagem mais diversificadas, mas também professores mais aptos para lidarem com grupos de alunos de proveniências e formações muito heterogéneas. A diversidade destas situações e a sua premência social exigem não apenas um sistema de ensino muito descentralizado, mas também uma grande autonomia dos

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seus agentes. Ser professor implica a aprendizagem de uma profissão caracterizada por saberes muito diversos que vão do humano e relacional ao cognitivo e prático. O ser professor é viver na complexidade (Carlgren, 2002), no desafio permanente da melhoria, na multidimensionalidade do agir e pensar, na interrogação constante que a sociedade do conhecimento lhe coloca. É nesta sociedade do conhecimento e da informação que nascem novos desafios para a construção da profissionalidade docente (Hargreaves, 2004), progressivamente pautada por critérios que de modo algum podem ignorar o humano e o profissional.

Assim, o principal desafio que a sociedade do conhecimento nos coloca não é o de seguir a uniformidade da formação docente, a estandardização de competências, mas o de problematizar o docente como pessoa, que luta continuamente pela construção de uma profissionalidade deliberativa, libertando-o dos propósitos das seitas da formação para o desempenho (Hargreaves, 2004), unicamente voltadas para o lado cognitivo da aprendizagem. Ser professor é admitir que há novos modos de olhar para a riqueza que existe no interior das escolas. Percorrer este caminho é uma luta que professores e formadores têm de travar, sabendo-se que a profissionalidade docente é algo que nos compromete com a qualidade dos processos de aprendizagem dos alunos. Na verdade, aquilo que caracteriza um profissional pleno é uma função claramente reconhecida socialmente, que o distingue de outros profissionais e lhe dá individualidade social. Nesta linha de reflexão, para Roldão (2000) o que distingue e caracteriza efectivamente um professor, no plano profissional é a função de ensinar, ou seja, o modo de fazer aprender alguma coisa a alguém.

Neste difícil processo de construção da profissionalidade docente, com contrariedades muito diferentes tanto ao nível das escolas quanto ao nível das administrações educativas, debate-se o ser professor no palco da burocracia das tarefas e da sua “funcionarização”, como se fosse uma actividade susceptível de aparecer num “guia eficiente de formar professores” (Pacheco, 2004, p. 27). De modo a contrariar esta visão profissionalizante do docente, diremos que o docente tem que ser formado a partir de uma base epistémica comum (Jackson, 1968), ou de um conhecimento base de ensino (Shulman, 1987). Todavia, tal natureza exige a

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consideração da escola como um dos contextos de formação, na medida em que existem saberes cujo processo aquisitivo se processa a partir de uma prática pedagógica real.

Neste caso, o processo formativo do professor encontra na prática profissional não só o contexto de consolidação de um mundo de crenças próprio, pois, como os professores definem e estruturam o seu mundo de crenças a partir do contacto com a realidade escolar (Pacheco, 1995), mas também o campo permanente de (re)construção da sua profissionalidade. É, por isso, que na formação de um professor se regista um processo metacognitivo, isto é, um processo de articulação da teoria com a prática em que a actividade de conhecimento se torna objecto de reflexão (Doly, 1999). Vários estudos têm-se debruçado sobre o tema da profissionalidade docente a fim de captar os desenvolvimentos históricos que vêm configurando o trabalho docente e os discursos sobre profissionalidade (Robertson, 2002; Lawn, 2001; Hargreaves; Goodson, 1996, citado por Garcia e outros, 2005).