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III. Atipicidade

III.1. Conceito e delimitação

Da liberdade de prova, ou da não taxatividade dos meios de prova, consagrada no art. 125 do CPP, retira a doutrina e a jurisprudência a admissibilidade de meios de prova atípicos, na medida em que aquela norma parece permitir a utilização de qualquer meio de prova não proibido para a prova dos factos104.

A noção de prova atípica não é, porém, pacífica, mesmo entre aqueles que a mais profundamente estudaram105. Numa primeira acepção, a prova atípica é aquela que prossegue resultado probatório diverso dos visados pelos meios tipificados na lei processual penal, pelo que a atipicidade estará, de acordo com este entendimento, no resultado, e não no modo de aquisição, e aproximar-se-á do conceito de prova inominada – na medida em que não encontrará correspondência com nenhum meio de prova tipificado ou nominado. Num segundo sentido, corresponde à produção de determinada prova (típica) através de modelo não previsto na lei; ou seja, a atipicidade aqui consiste numa modalidade diversa de svolgimento da prova. Por último, a Doutrina italiana aponta um terceiro significado de atipicidade, bastante comum na prática judiciária: a utilização de meio típico para obter o resultado probatório de outro meio típico. TONINI classifica este último sentido de atipicidade como de «prova anómala»106, dando o exemplo de uma testemunha ser chamada a identificar,

103 O

SVALDO LUCAS ANDRADE, apud GERMANO MARQUES DA SILVA, in Curso…, vol. II, p. 163.

104 Entre a Doutrina portuguesa, v., entre outros, G

ERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, vol. II, pp. 167 e 168; e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pp. 332 e ss. Exemplos da jurisprudência portuguesa serão analisados infra, no ponto V.1.

105

Referimo-nos à Doutrina italiana – v., entre outros,TONINI,ob. cit., pp. 264 – 265; e GIAN FRANCO RICCI, Le

Prove Atipiche, Milano, Dott. A. Giuffré Editore, 1999, pp. 48 e ss. (num estudo mais direccionado ao processo

civil).

informalmente, o arguido, em plena audiência de julgamento, sem que se cumpram os procedimentos legalmente previstos para o reconhecimento de pessoas.

Ora, para densificar o conceito de atipicidade de prova à luz do nosso ordenamento, importa notar que o sistema processual penal português incorpora um conjunto de normas, «tendencialmente unitário»107, que regula, com alguma extensão, a matéria probatória. Deste modo, só alcançaremos o verdadeiro sentido da norma do art. 125 do CPP se procedermos a uma interpretação sistemática da mesma, à luz dos princípios caracterizadores do sistema probatório no nosso processo penal.

Como se disse, de acordo com o entendimento de alguma doutrina italiana, são típicos os actos para os quais é prescrita e completamente disciplinada uma determinada forma108 e são atípicos os actos não previstos expressamente na lei, pelo que melhor se diz inominados109. Desta forma, a tipicidade é também vista como garantia da legalidade

107

MEDINADE SEIÇA, in loc. cit., p. 1394.

108

Assim, MERCONE, in ob. cit., p. 95.

109

FRANCO CORDERO, ao tratar da atipicidade da prova no direito italiano, denomina o capítulo «prove innominate», in Procedura Penale, 8.ª ed., Milano, Dott. A. Giuffré Editore, 2006, p. 619. RICCI, depois de se ter referido ao duplo significado que o termo ‘atipicidade’ pode apresentar (por um lado, refere-se ao que não está previsto na lei; por outro lado, pode representar um desvio às formas legalmente previstas), afirma, em sentido, aparentemente, contrário ao que é por nós adoptado no texto, que não é suficiente dizer que a prova atípica designa exclusivamente meios probatórios não previstos no sistema – in ob. cit., p. 49. Contudo, o Autor, mais adiante, conclui que deste conceito de atipicidade deve ser excluída a derrogação da disciplina de aquisição da prova, circunscrevendo-o ao âmbito da fonte de prova – isto porque, diz o Autor, o desvio ao modo de aquisição da prova, quando a lei o não permita expressamente, torna a prova atípica em prova ilícita (in ob. cit., pp. 52 e ss.). E quando se refere especificamente ao direito processual penal, num estudo quase totalmente dedicado ao direito processual civil, o Autor afirma que a Doutrina processual-penalista adopta um conceito restrito de atipicidade, no sentido em que «il catalogo delle prove possa essere superato solo ed esclusivamente per cio che riguarda eventuali mezzi istruttori non previsti dal diritto e non ache con riferimento alla posibilità d’introdurre nuove forme di acquisizione probatória o deroghe a quelle già esistenti» (in ob. cit., p. 530). Acrescenta, depois, o mesmo Autor que tal exclusão da prova ilicitamente obtida, porque em derrogação do método de “aquisição” estabelecido por lei, harmoniza-se com a segunda parte da norma do art. 189 do CPPit, na medida em que esta obriga o juiz a ouvir as partes acerca do meio de obtenção da prova atípica a adoptar (in ob. cit., p. 532). Recorrendo às ideias de RICCI, também MARINELLI afirma que «”innominata” è solo la prova a cui non corrisponda una categioria codificata, com esclusione pertanto di ipotesi di assunzione irrituale di un

substancial, pelo que o sistema penal de prova não pode ser interpretado apenas face ao que é ou não proibido, mas positivamente, através da legalidade, na medida em que assenta na tutela de direitos fundamentais110 e em garantias de racionalidade e de controlo da prova. Assim, uma vez que o sistema processual penal, em geral, põe em causa os direitos e as garantias individuais, as soluções legais denotam já uma prévia ponderação de interesses e valores conflituantes, que o intérprete e o aplicador de direito não podem, simplesmente, ignorar – como, aliás, ficou patente no capítulo precedente. Entendemos, pois, que, embora não vigore um princípio de taxatividade no que aos meios probatórios diz respeito, vigora, quanto ao que está legalmente previsto, um princípio de tipicidade, no sentido em que os meios por lei regulados são-no em todas as suas componentes e variantes, não admitindo derrogações justificadas pelo princípio da liberdade de prova consagrado no art. 125 do CPP111.

Desta forma, a análise do art. 125 do CPP não se bastará com uma interpretação literal, dado que este preceito não se limita a (re)afirmar a exclusão de provas proibidas, nem a admitir a obtenção, produção e valoração de prova não prevista.