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O conceito do Direito

No documento GIORGIO DEL VECCHIO E O DIREITO NATURAL (páginas 58-64)

CAPÍTULO 2. O PENSAMENTO DE GIORGIO DEL VECCHIO

2.4.3 O conceito do Direito

A formulação do conceito do Direito é um dos pontos principais do pensamento delvecchiano; e é justamente nesse tema que se percebe mais claramente a influência nele exercida pela gnosiologia deKANT.

Para DEL VECCHIO, a primeira tarefa da Filosofia do Direito é justamente o estabelecimento de uma definição lógica do Direito 135.

Assim, tendo KANT como ponto de partida, procurou

estabelecer o conceito universal do Direito, que deve abranger todos os possíveis sistemas de Direito, para dessa maneira “indicar o limite de toda a

possível experiência jurídica” 136.

Na formulação desse conceito, dele afastou qualquer relação ao conteúdo, por entender que este é mutável de época para época, e de país para país. Para DEL VECCHIO, essa mutabilidade impossibilitaria fosse alcançado o conceito de Direito se feita somente a análise do conteúdo 137 ; assim, ao buscar a definição do Direito, ateve-se à “forma lógica” 138.

135

Lezioni cit., p. 197.

136

Cf. Lezioni cit., p. 197. No mesmo trecho, Del Vecchio fundamenta a necessidade de se alcançar o conceito do Direito: “Se a noção comum e vaga de Direito pode às vezes bastar para certos fins

particulares, é insuficiente para os fins superiores do conhecimento. São facilmente reconhecidas por todos as manifestações vulgares da atividade jurídica; mas, ante os problemas mais elevados e gerais, quando se trata de situar a idéia do Direito na ordem do saber, de determinar-lhe os elementos essenciais, de distingui-la de outros objetos e categorias afins, surgem dúvidas e dificuldades que a noção vulgar é impotente para resolver ( ...)”.

137

“(...) o conteúdo da realidade jurídica não pode servir de base a uma definição do Direito. De fato, por

natureza, o Direito é condicionado, sofre certas influências e depende de certas vicissitudes. Daqui a impossibilidade de utilizarmos esta realidade movediça para fixarmos o conceito do Direito”. Cf. Lezioni cit., p. 202.

Na explicação de Jacy MENDONÇA, “Del Vecchio (...) chegou à impossibilidade de apreensão do ser

do Direito, do valor do Direito, ficando num conceito formal, limitado ao continente, independente da matéria que essa forma delimitava.

“O conceito criticista de Direito para Del Vecchio é formal, sem conteúdo ontológico, absolutamente neutro, não cabendo analisar se a ação é em si mesma boa ou má – basta a forma jurídica”. Cf. O Curso de Filosofia do Direito cit., p. 122.

138

Nas palavras de DEL VECCHIO: “Nós consideramos como igualmente jurídicas proposições diversas,

não raro contraditórias quanto ao respectivo conteúdo; identificamos em uma só categoria fenômenos diferentes entre si, mas todos igualmente jurídicos. Para fazer isso, devemos ter uma noção da

juridicidade, distinta e superior às variações do conteúdo. Esta noção é uma forma lógica (...)”. Cf.

49

Ao traçar os pressupostos filosóficos da noção do Direito 139 , DEL VECCHIO apresenta o seguinte problema a ser resolvido: se o Direitoé por natureza condicionado pela situação histórica, como poderá ser encontrada uma noção absolutamente fixa e universalmente válida? Como será possível encontrar algo de comum no que é, por natureza, variado? 140

Desse modo, em busca de resposta a tais indagações, DEL

VECCHIO acaba por fazer uma distinção entre o “conceito do Direito” e o “ideal do Direito” – correspondente aos anseios de Justiça 141.

Tal postura é típica dos autores influenciados por KANT, que, na esteira da gnosiologia exposta na Crítica da Razão Pura, buscam um conceito do Direito que seja universal e necessário, com fulcro na convicção de que o universal é sempre formal, e também partindo do pressuposto de que somente o a priori tem as características de universalidade.

Destarte, o conceito de Direito é alcançado aprioristicamente, com a busca daquilo que já está implícito no homem, como sujeito cognoscente.

Essas idéias são fundamentadas pelo que foi exposto por KANT na Crítica da Razão Pura 142, ou seja: o conhecimento é uma síntese entre as formas da mente e a matéria a ela exterior; assim, conhecemos por intermédio das formas da nossa mente, e apreendemos a realidade por meio delas. Aplicando-se isso ao campo jurídico, o conhecimento do Direito seria a síntese de uma especial forma mental e da matéria jurídica; ocorre que, se a forma é universal e necessária, por outro lado a matéria é particular e contingente, o que acarreta a consideração da forma como um elemento

139

Cf. a obra I presupposti filosofici della nozione del diritto, que compõe a Trilogia (v. item 2.3

supra). 140

Cf. I presupposti filosofici cit., p. 67.

141

Essa distinção é uma das chaves para o entendimento da concepção delvecchiana do Direito Natural, conforme será visto no Capítulo 5 da dissertação.

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constante, que se encontra em todas as expressões ideais e positivas do Direito.

Nesse diapasão, DEL VECCHIO entende existir um critério a priori do Direito, lógico-transcendental, que nos permite reconhecer a

juridicidade de determinados comportamentos sociais cujos conteúdos muitas vezes são contraditórios. Esse critério a priori (no sentido kantiano) constitui uma forma lógica, que, entretanto, não revela o que é justo ou injusto.

Para estabelecer a definição lógica do Direito é usado, então, o método dedutivo (e não indutivo), pois parte-se da razão para os acontecimentos empíricos 143, do geral para o particular 144.

Com todos esses parâmetros, DEL VECCHIO apresenta um

conceito do Direito meramente formal, neutro e indiferente ao conteúdo,

adiáforo em relação a ele; e, nesse conceito, “a forma lógica não nos diz aquilo que é justo ou injusto, mas diz-nos só qual é o sentido de qualquer afirmação sobre

o justo e o injusto” 145.

142

Cf. item 2.4.1, supra.

143

DEL VECCHIO chega a afirmar que “o conceito do Direito não poderá nunca ser extraído da

experiência, a qual por si mesma oferece-nos apenas as proposições jurídicas particulares e concretas”. Cf. I presupposti filosofici della nozione del diritto cit., p. 85 (tradução do autor). Mais

à frente, nas págs. 100-101 da mesma obra, DEL VECCHIO diz que o conceito do Direito não é extraído da observação empírica, mas antecede esta.

144

“A observação dos dados empíricos (ou seja, dos fenômenos do Direito) não pode conduzir por si

só à determinação do conceito formal do Direito, pois já pressupõe esse conceito. Quando nós examinamos os dados históricos em geral, e desejamos deles discernir os dados jurídicos, teremos que recorrer a uma certa noção que está implícita em nossa mente, e nos permite distinguir aquilo que é jurídico daquilo que não é jurídico, aquilo que pertence à espécie lógica do Direito daquilo que dela está excluído”. Cf. Lezioni cit., p. 203. (Tradução do autor).

145 Lezioni cit., p. 203.

É interessante consignar que o conceito formal de Direito apresentado por DEL VECCHIO, no que tange a este tema acaba por aproximá-lo da teoria pura da juridicidade de Kelsen, como apontado por Pier Luigi ZAMPETTI, no estudo La Filosofia giuridica di Giorgio Del Vecchio (in: Rivista di

Filosofia Neoscolastica, fascículo 2. Milano: abril-junho de 1949, pp. 231-234). ZAMPETTI chega a usar a expressão “kelsenismo de Del Vecchio”, e afirma que “Kelsen e Del Vecchio estão, portanto,

menos longe do que poderia parecer”. Todavia, em que pese aponte tal aproximação entre Kelsen e

DEL VECCHIO, ZAMPETTI esclarece que este último não comunga do relativismo axiológico kelseniano, pois ao enfrentar o problema deontológico, “facendo tesoro della mentalità italiana più

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Essa forma lógica do Direito consiste numa relação entre sujeitos (a alteridade), que se desenvolve da seguinte maneira: “dois sujeitos estão reciprocamente coligados, na forma da obrigação e da pretensão correlativa” 146 ; em outras palavras: “a relação jurídica consiste precisamente nisso: que à exigência ou pretensão de um sujeito corresponde uma obrigação de outro” 147.

O formalismo do conceito do Direito de DEL VECCHIO deflui claramente, por exemplo, da seguinte assertiva, que destaca o caráter formal e meramente lógico da definição: “Sempre que uma proposição determina, entre duas ou mais pessoas, uma relação tal que uma delas pode exigir de outras o cumprimento de uma obrigação, diremos que essa proposição, logicamente, pertence ao mundo do Direito” 148.

Assim, tendo como substrato filosófico todas as idéias acima explanadas, DEL VECCHIO define o Direito como “a coordenação objetiva das ações possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que as determina, excluindo qualquer impedimento” 149.

Esse conceito de Direito é esmiuçado pelo próprio DEL

VECCHIO, ao lecionar que os fenômenos jurídicos implicam sempre uma referência intersubjetiva ou transubjetiva 150 : “Aquilo que a um sujeito é juridicamente permitido, é-lhe permitido em face dos outros; a faculdade jurídica consiste em uma faculdade de exigir algo dos outros. Eis o motivo pelo qual, enquanto as avaliações morais são subjetivas e unilaterais, as avaliações jurídicas são objetivas e bilaterais”; e, prosseguindo, ressalta que dessa noção de

intersubjetividade e bilateralidade decorre que ao “poder fazer” de

146

Cf. Il problema delle fonti del diritto positivo. In: Studi sul diritto, vol. I, p. 190.

147

Cf. Diritto, società e solitudine. In: Studi sul diritto, vol. II, p. 243.

148

Lezioni cit., p. 245.

149 “(...) possiamo definire il diritto come il coordinamento obiettivo delle azioni possibili tra più

soggetti, secondo un principio etico che le determina, escludendone l’impedimento”. Lezioni cit. , p. 218. É a mesma definição apresentada na já citada obra Il concetto del diritto, p. 217.

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determinadas pessoas corresponde o “dever de se abster” das demais pessoas151.

O detalhamento analítico de seu conceito do Direito, com a explicação de cada um de seus componentes, é realizado por DEL VECCHIO principalmente na obra Il concetto del diritto, da Trilogia 152.

Segundo ele, para que um fato seja conforme ou contrário ao Direito, inicialmente deve sempre referir-se à vontade de um sujeito, e à expressão dessa vontade; assim, conclui que “o critério jurídico somente

pode ser aplicado às ações” 153.

Essas ações humanas podem ter uma relação objetiva, quando as ações de um determinado sujeito relacionam-se com as ações de outros sujeitos; dessa maneira, em determinados casos, uma ação de um sujeito não

poderá ser impedida pelos outros; há, então, uma “coordenação objetiva do agir”, justamente considerada por DEL VECCHIO uma “coordenação ética objetiva”, ou seja, o Direito 154.

O sentido do termo “impedimento” é explicado da seguinte maneira: “É necessário ter presente que, com esta palavra, queremos sempre designar de um modo geral toda manifestação de vontade, objetivamente

incompatível com uma outra”155.

Por fim, DEL VECCHIO aponta uma importante característica do

Direito: a coatividade, entendida como “possibilidade de coação”156.

150

Para DEL VECCHIO, “o conceito de bilateralidade é a pedra angular do edifício jurídico”. Cf.

Lezioni cit., p. 223. 151 Cf. Lezioni cit., pp. 217-218. 152 V. item 2.3, supra. 153

Il concetto del diritto cit., p. 126.

154

Cf. Il concetto del diritto cit., pp. 159 e 183.

155

Cf. Il concetto del diritto cit., p. 183, nota 4. (Tradução do autor).

156 O Capítulo V da obra Il concetto del diritto, intitulado “Diritto e Coazione” , é inteiramente

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Ele considera a coatividade como algo estreitamente vinculado ao próprio Direito, e afirma que Direito e possibilidade jurídica de impedir sua

violação consistem substancialmente uma única coisa 157. É dessa forma que o

Direito pressupõe a “possibilidade de coação” 158.

Entretanto, DEL VECCHIO distingue a “possibilidade de coação”, a

“coação em potência”, da “coação em ato”, efetivamente exercida; nesse aspecto, considera que a coação não é essencial para o Direito: o que é essencial para este é a “coatividade”, a possibilidade de se exercer a coação, em caso de conduta violadora do Direito 159.

RECASÉNS SICHES disserta didaticamente sobre essas afirmações de

DEL VECCHIO, e as explica, afirmando que delas se deduz ser a nota de coercibilidade essencial ao Direito:

“O Direito como norma bilateral contrapõe umas pessoas a outras, atribuindo-lhes pretensões e deveres correlativos, com o que se estabelece entre elas uma relação e um limite. Se este não é respeitado e se invade a esfera jurídica de outro sujeito, deve-se atribuir necessariamente a este o poder de repelir a transgressão. Diante da possibilidade de violação, e paralela a esta, dá-se a possibilidade de resistência física contra ela.” 160

157

“(...) a possibilidade de constringir à observância do Direito é elemento integrante e característico

do próprio Direito.”(...)“Direito e possibilidade jurídica de coação contra a ofensa são portanto dois conceitos paralelos e inseparáveis, e em parte também equivalentes” . Cf. Il concetto del diritto

cit., pp. 191 e 203. (Tradução do autor).

158

Il concetto del diritto cit., p. 200.

159

“A coação em ato não é, como já dissemos, essencial ao Direito, mas só o é em potência: não o constringir, mas o poder constringir, ou seja, a licitude de uma coação, o que necessariamente se

encontra em qualquer Direito, sempre que contra ele se suponha um ato de violação”. Cf. Il concetto del diritto cit., p. 202. (Tradução do autor).

160

Cf. Direcciones Contemporáneas del Pensamiento Jurídico cit., p. 100. Segundo o mesmo RECASÉNS SICHES, “Del Vecchio é um dos autores modernos que defendeu com maior luminosidade

o caráter essencialmente coercível do Direito, prodigalizando sólidos argumentos a favor desta tese”: idem, ibidem. (Tradução do autor).

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No documento GIORGIO DEL VECCHIO E O DIREITO NATURAL (páginas 58-64)