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Conceito de intuição

No documento francianetavaresdemoraes (páginas 31-34)

2.2 A OPOSIÇÃO À INTUIÇÃO E A PROPOSTA DO INSTINTO

2.2.1 Conceito de intuição

Em “Certas Faculdades Reclamadas para o Homem” (1868, Cf. CP 5.213), primeiro texto da coleção que posteriormente seria chamada série cognitiva, Peirce procura contestar o conceito de intuição, refutando não apenas a teoria de Descartes, mas também de toda a sua sucessão filosófica. Peirce enxerga na intuição o alicerce central da filosofia cartesiana (JONES, 1972), por conseguinte, comungaria desta teoria todo pensador que assumisse a intuição como pressuposto do processo de obtenção de conhecimento.

O que, de fato, significa assumir a intuição como tal? Para Peirce, a intuição é “uma cognição não determinada por uma cognição prévia do mesmo objeto, e, portanto, determinada por algo fora da consciência” (CP 5.213, tradução nossa35), o que implica no acesso direto ao objeto dinâmico através do signo (SANTAELLA, 1992), algo inconcebível

35 No original: “a cognition not determined by a previous cognition of the same object, and therefore so

para Peirce.

À luz desta definição, a intuição remonta a Aristóteles e se configura como “a expressão de um desejo por uma fundação epistêmica absolutamente certa” (JONES, 1976, p.350, tradução nossa36). Isto porque, em Descartes, a dúvida só pode ser suplantada por ideias que são “absolutamente claras e distintas”, ou seja, intuições. De acordo com Douglas Anderson, essas intuições no cartesianismo “produzem o requisito da certeza para o conhecimento ‘científico’ e se transformam na base para uma cadeia dedutiva que produz certezas futuras” (ANDERSON, 2006, p. 155, tradução nossa37).

Assim, em oposição ao produto intelectual e ao pensamento sistematizado (como a ciência), a intuição atinge o objeto diretamente: é o conhecimento imediato que, de súbito, apreende o objeto sem que possamos precisar como ou o exato momento em que ocorreu (SANTAELLA, 1993). É uma operação mental que dispensa o signo que atua intermediando o objeto da realidade e a mente do observador, como se, num salto metafísico, alcançássemos o real sem mediação ou amparos (JONES, 1972).

A concepção imediata da ação mental gera, segundo Santaella (1993), uma teoria persuasiva sobre a origem do insight humano, que se perpetua perniciosamente não apenas no meio científico, mas também no imaginário popular: a intuição desvenda o poder humano da investigação ao mesmo tempo em que oferece uma explicação acessível para a descoberta e para a ação mental. Se a ação mental é intuitiva, o instante de flash – aquele momento em que obtemos uma compreensão nova e instantânea de um objeto – é uma consequência não só possível como provável e esperada.

Portanto, segundo esta tradição filosófica, a intuição é uma virtude que nos permite não só apreender um objeto sem a mediação do pensamento, mas também nos capacita a assimilá-lo instantaneamente de forma correta, verdadeira, em conformidade com o real, como se uma unidade da verdade fosse subitamente deslocada do real para nossas mentes (JONES, 1972). É este suposto contato imediato da mente com o objeto de compreensão que garante a infalibilidade do processo intuitivo.

Por fim, segundo Santaella, esta “nos preenche com certo orgulho pelos poderes da espécie, além de nos fornecer segurança psicológica em relação ao eu que descobre a clareza em relação ao que pensa” (1993, p. 30). Vista hoje como uma forma esotérica e

36 No original: “an expression of a desire for an absolutely certain epistemic foundation” (JONES, 1976, p.350). 37 No original: “These intuitions yield the certainty requisite for ‘scientific’ knowledge and become the basis for

transcendental de obtenção de conhecimento, a intuição impugnou de tal forma o pensamento ocidental que encontraria sua primeira oposição apenas em Peirce, em 1868. Ao se opor categoricamente à intuição e propor alternativas a este pensamento, Peirce estabelece as bases para seu pragmatismo.

Portanto, a intuição é, em Descartes, uma condição fundamental para o conhecimento, uma visão instantânea e espontânea, assumindo o arriscado conceito de um ato de conhecimento imediato, aquele que prescinde de intermediários, que vêm à mente instantaneamente, numa relação direta entre objeto e mente, não mediado por outra cognição prévia, dispensando o signo intermediário. Ao apontar o signo como mediador entre o sujeito e o objeto, Peirce evita do recurso nominalista de estabelecer a intuição e a introspecção como formas de conhecimento, numa dualidade sujeito-objeto.

Durante a percepção, ocorre algo semelhante ao processo silogístico, já que “se um homem acredita nas premissas, no sentido em que ele agirá segundo elas e dirá que são verdadeiras, sob certas condições favoráveis também estará pronto a agir conforme a conclusão e dizer que é verdadeira” (CP. 5.268). Esta visão de Peirce tem características do realismo, já que atenta para o homem como ser biológico, pertencente ao contínuo da natureza, que durante o processo evolutivo, teria dotado o homem de capacidades cognitivas inatas.

Ao definir a cognição como um processo inferencial, Peirce afirma que não é possível que haja cognições primárias, como Descartes pretendia, porque o próprio conhecimento só pode existir num contínuo: como uma cadeia de silogismos, a cognição é um processo infinitamente divisível, expresso através das formas de raciocínio possíveis: dedução, indução e abdução, havendo, sempre, proposições anteriores. Assim como no Paradoxo de Zenão, não poderíamos chegar nunca ao seu termo inicial ou final, pois todo o conhecimento é alcançado através do raciocínio inferencial, que é infinitamente continuado.

Peirce, contudo, não nega a possibilidade da existência da intuição. Em seu famoso ensaio “Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man” (1868), que abre a sua crítica ao Cartesianismo, o autor descreve esta teoria intuitiva como uma hipótese dispensável, já que todas as suas premissas foram categoricamente refutadas naquele trabalho, concluindo que, ao cabo, não importa se a intuição exista, pois não somos capazes de identifica-la como tal. O que Peirce rejeita neste ponto é a concepção de intuição como origem, ponto de partida infalível para o conhecimento.

No documento francianetavaresdemoraes (páginas 31-34)