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CAPÍTULO V DESNACIONALIZAÇÃO E LIVRE COMÉRCIO

1. Conceito e lógica da desnacionalização

O conceito de desnacionalização está intimamente ligado à idéia do que é considerado “nacional” e à entrada de capital estrangeiro na economia de um país. O termo nacional pode ser definido como “o que é relativo à nação” (BIDERMAN, 1992: 649) ou ainda como “pertencente ou próprio dela” (FERREIRA, 1986: 1177). Nesse sentido, pode-se considerar uma empresa como nacional quando seu capital é, majoritariamente, pertencente a pessoas (físicas e jurídicas) cuja origem ou nacionalidade não seja estrangeira. Não obstante, há no mundo contemporâneo certa relativização do conceito, haja vista que nem sempre é possível definir com precisão qual é a origem ou de qual nação é o capital de uma empresa. Desnacionalizar seria, por conseguinte, reduzir a participação de nacionais de um país (inclusive do Estado) no capital de uma determinada empresa ou organização, ainda que não represente mudança em seu controle.

Há de se registrar, também, diferença entre o conceito de

desnacionalização e o de desestatização. O último está relacionado com a

presença do estado nos meios de produção de bens e serviços de uma nação. Entretanto, Gonçalves (1999:134) argumenta que, apesar de distintos, esses dois processos podem coexistir.

Os processos de desestatização (privatização) e desnacionalização se inserem em um movimento de duplo interesse. Do lado do capital externo, significa a necessária expansão que não pode se dar pelo aumento da oferta de bens e serviços, pois isso não traria consigo um crescimento equivalente da demanda, o que resultaria em queda de preços e em conseqüente redução na rentabilidade do capital investido. Para o governo e as empresas nacionais, a entrada do capital externo significa a descompressão de seus orçamentos e certo equilíbrio financeiro. Com isso, torna-se possível aos governantes manter a estabilidade monetária, o que certamente corresponde aos interesses imediatos dos consumidores. Para as empresas nacionais, a participação do capital estrangeiro em seus negócios as libera da necessidade de recorrer a empréstimos com altas taxas de juros, disponíveis no sistema financeiro nacional.

Não há dúvida de que, no curto e até no médio prazo, a participação do capital forâneo, em empresas estatais e privadas nacionais, traga alguma sensação de prosperidade para as economias dos países hospedeiros. Entretanto, essas empresas, revigoradas com a injeção desse capital, assumem tamanho poder diante das concorrentes nacionais sem acesso a essa fonte, que dificilmente encontrarão resistência em direção à formação, senão de monopólios, ao menos de oligopólios.

Esse processo de concentração da produção, do tipo mono-oligopolista, geralmente ocorre por meio da aquisição parcial ou total de empresas já atuantes no mercado. Com isso, cresce a produtividade pela ampliação de investimentos em capital fixo, processos e em informações, ao mesmo tempo em que se reduz a oferta de empregos, tanto em virtude da incorporação de tecnologias e processos poupadores de mão-de-obra, como pela eliminação dos concorrentes locais incapazes de se igualarem ao novo padrão de produtividade.

Além das fusões e aquisições de indústrias e prestadores de serviços, Gonçalves (1999:157) cita mais dois mecanismos de desnacionalização: os processos de privatizações promovidos principalmente nos países emergentes após a década de 1990 e a extinção ou falência de grupos privados nacionais que não conseguem competir em um novo ambiente de livre comércio mundial.

Segundo DUPAS (1998:129), o emprego direto gerado pelas empresas transnacionais cresceu, na década de 90, em ritmo menos acelerado do que os seus investimentos diretos. De acordo com a CEPAL (1998), os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), nas sete maiores economias latino-americanas, cresceram de US$ 7,03 bilhões em 1990, para US$ 56,97 bilhões em 1997, o que correspondia a uma variação de 810%. No entanto, esse vertiginoso crescimento foi devido, principalmente, às aquisições e fusões que se verificaram nas esferas privada e estatal, e que corresponderam, ainda em 1997, a cerca de 70% do IED na região. Essa situação seria consoante à tendência observada em Âmbito mundial. Segundo dados da UNCTAD, apresentados no informe da Cepal, 60%

dos fluxos totais de IED mundial corresponderiam à transferência de ativos no setor privado, ou seja, desnacionalização.

A hipótese que aqui se formula é que o fenômeno da desnacionalização se dá com a constância de dois fatores, que são em última análise decorrentes do processo de globalização: (i) pela liberalização comercial, através dos acordos de livre comércio e (ii) pela perda relativa da capacidade do Estado instituir políticas regulatórias frente à nova realidade mundial.

O processo de globalização da economia tem como um dos motores a busca por mercados ampliados pelas empresas transnacionais, como forma de manter o nível de lucro do capital, uma vez que os mercados, na atual fase do capitalismo, esgotaram seus meios de expansão quando dentro das fronteiras nacionais. Nesse sentido, o capital tenderia a sofrer um processo crescente de “desterritorialização” com a formação de um mercado global.

Da mesma forma, a “vitória” do modelo neoliberal com o chamado consenso de Washington prega a adoção de um modelo de estado mínimo, incentivando as privatizações de setores da economia. Esse modelo favorece que empresas até então na mão do Estado passem a serem capitalizadas e controladas pelo capital internacional.

Por outro lado, Pio (2002:102) advoga que a liberalização comercial tende a ampliar o número de produtores de um mesmo produto ou serviço e a provocar o aumento da concorrência em praticamente todos os setores econômicos. A concorrência internacional é um estímulo natural à concertação dos fatores de produção – em outras palavras, dos indivíduos, das empresas e de seus ativos materiais e imateriais – nos setores em que o país dispõe de vantagens comparativas. Isto ocorreria porque a relação de qualidade e preço dos bens ou serviços produzidos no país tenderá a ser competitivo em relação ao dos concorrentes estrangeiros nos setores em que o país dispõe de vantagens comparativas e não-competitivo nos setores em que o país não dispõe de vantagens comparativas. Por isso, se obrigados a concorrer com os estrangeiros,

os fatores da produção – terra, trabalho, capital, criatividade, energia – tenderão a se concentrar nos setores mais competitivos da economia.

Dessa forma, conclui-se que dentro de cada país que participa de um processo de liberalização comercial há setores beneficiados e setores prejudicados pela maior facilidade de transacionar com o exterior. Seriam beneficiados da liberalização todos os proprietários dos fatores de produção aplicados aos setores em que o país tem vantagem comparativa, os prejudicados seriam os proprietários dos fatores investidos nos setores em que o país não tem vantagem comparativa. Os setores mais prejudicados ou menos competitivos tendem a perder mercado para as corporações internacionais, ou seja, esses setores tendem a sofrer um processo progressivo de desnacionalização.

As perdas imediatas que resultariam da abertura estariam concentradas nos setores que mais se beneficiam com o não-liberalismo comercial (ou com o protecionismo). Surge daí a resistência de grupos econômico-financeiros a abertura de determinados setores. Segundo Gilpin (2002:436), o protecionismo setorial não é novidade e há muito que nações protegem determinados setores de sua economia, como acontece com a agricultura na Europa e no Japão. O elemento novo seria a negociação crescente de fatias de mercado, em uma base setorial. Dessa forma, as concessões de um país em determinado setor poderiam ser compensadas por outro país, em outro setor.

Interessante observar que esse modelo se aplica claramente nas negociações da Rodada Doha da OMC, bem como naquelas relativas à ALCA e à União Européia. Os países em desenvolvimento têm negociado uma maior abertura no setor de serviços em troca de uma abertura semelhante no mercado de bens agrícolas da União Européia, Estados Unidos e Japão.

Outro ponto que contribuiria para o processo de desnacionalização de setores da economia seria o fato que os acordos de livre comércio que têm sido celebrados por nações latino-americanas, sejam de caráter regional ou multilateral, tem reduzido ou limitado a capacidade de regular aspectos relevantes

em sua economia. Como resultado desses acordos as decisões sobre regras e regulações sobre mercados tem sido tomadas em fóruns supranacionais, como organismos internacionais a exemplo da OMC. Há, com a proliferação dos acordos de livre comércio, a tendência é que atos regulatórios sejam harmonizados, dificultando a adoção pelo estado nacional de medidas que incentivem ou protejam suas empresas nacionais de bens ou serviços.