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Para um melhor entendimento do cenário desenhado na sessão anterior e para dar sequência à presente investigação, necessário se faz apontar algumas considerações a respeito do conceito de repertório aqui utilizado. Desenvolvido principalmente por Charles Tilly, durante a construção da sua teoria da mobilização política, o referido conceito aparece ainda impreciso no ano de 1976, em Getting

Together in BurgundyI – 1675-1975, quando Tilly investigava padrões de ação coletiva

(ALONSO, 2012, p.22). Em 1978, na obra From Mobilization to Revolution, a ideia de repertório reaparece, no intuito de identificar as modificações históricas nas formas de protestar, além de apresentar as várias demandas empregadas por grupos subordinados, que originaram o movimento social nacional, em sociedades modernas democráticas capitalistas (TAYLOR & VANDYKE, 2004, p.265-266 in COACCI, 2012, p.2).

Posteriormente, nos anos de 1990, a ideia do conceito surge como “repertório de confronto”, aprimorada em três artigos gêmeos (Contentious repertoires, 1758- 1834, versão 1993 e versão 1995), em que Tilly faz uma retificação, alegando que os repertórios não pertenceriam a indivíduos isolados, mas a um conjunto de atores em conflito (ALONSO, 2012, p.25). Já, nos anos 2000, o autor retoma o conceito de repertório aglutinando-o à ideia de “performance”, enfatizando a capacidade dos atores de escolher e transformar as performances de um repertório, de acordo com as particularidades, com as circunstâncias e com o local em que ele estiver sendo empregado (ALONSO, 2012, p.25).

Sobre essa maleabilidade dos repertórios, em Contention and Democracy in

Europe – 1650-2000, Charles Tilly faz um apanhado dos repertórios utilizados em

regimes democráticos e regimes não democráticos, ficando evidente a relação que os repertórios têm com o ambiente no qual são empregados. Apenas para elucidar essa questão, na obra referida, Tilly alega que a democratização transforma os repertórios de contenção. Segundo ele, qualquer indivíduo que tenha conhecimento da história política da França e da Grã-Bretanha, desde 1650, observa as modificações que ocorreram nos repertórios contenciosos entre os séculos 17 e 20 (TILLY, 2004, p.28). Dando sequência a sua investigação, o autor entende ser possível distinguir duas modalidades de repertórios democráticos e não democráticos de contenção. Os desenvolvidos dentro de um contexto democrático possuem formas prescritas e

toleráveis nos regimes de participação política, como as reuniões públicas. Por outro lado, os que ocorrem em regimes não democráticos raramente adotarão formas prescritas e toleradas para a interação política, uma vez que os detentores do poder tolherão essas possibilidades de pessoas comuns (TILLY, 2004, p.28-29).

Dessa forma, os repertórios de contenção desenvolvidos em contextos antidemocráticos, muitas vezes, entram no terreno proibido, quando não se utilizam de situações em que eles são tolerados. Consequentemente, sob regimes autoritários é possível de se averiguar a utilização de dois tipos de repertórios: 1- a adoção das formas proibidas, como ataques clandestinos; ou 2- multidões invadem espaços de reuniões púbicas, como funerais, festas e cerimônias cívicas (TILLY, 2004, p.30).

Em La France Conteste de 1600 à nos jours, Tilly alega que toda a população tem um estoque limitado de repertórios, ou seja, meios para atuar em conjunto, de acordo com seus interesses comuns. Para o autor, atualmente, a maioria das pessoas sabe como participar de uma campanha eleitoral, fundar uma associação ou filiar-se a ela, fazer uma petição, protestar, fazer greve, realizar reuniões, criar rede de influência, etc. Esses meios de ação compõem um repertório, e os indivíduos conhecem as regras adotadas para empregá-los, a fim de perseguirem seus objetivos. O número desses repertórios seria limitado e, com base nos formulários já existentes, são inovados pelos indivíduos, podendo as possibilidades de inovação ficarem em aberto, ignoradas por diversas razões. Ainda, Tilly entende que são os repertórios que determinam as ações coletivas e, atualmente, os governos e os industriais preferem manifestações ou greves do que ações coletivas inventadas a partir do zero (TILLY, 1986, p. 541-542).

Ainda, em “Movimentos sociais como política, Tilly (2010, p. 137) menciona que os repertórios do movimento social acabam por se aglutinar aos repertórios de outras classes de fenômenos políticos, como seria o caso das atividades sindicais e as campanhas eleitorais. De acordo com o autor, a partir do século XX, associações com determinadas finalidades, principalmente as coalizões entrecruzadas, passaram a realizar inúmeras atividades políticas pelo mundo. Entretanto, a integração da maior parte ou da totalidade dessas realizações durante campanhas permitem a diferenciaçao dos movimentos sociais dessas outras atuações de cunho político.

Assim, Tilly traz à baila a concepção do termo “VUNC”, intimamente ligada ao entendimento de repertório aqui abordado. Para ele (2010, p.137-138), as demonstrações de VUNC podem ser expressadas através de “declarações, slongans

ou rótulos que implicam valor, unidade e comprometimento: Cidadão Unidos pela Justiça, Signitários do Compromisso, Defensores da Constituição”. Ainda, conforme o autor sugere, as representações coletivas podem ser aferidas através de formas distintas e reconhecíveis pelo público local, quais sejam:

valor: comportamento sóbrio; roupas asseadas; presença de clérigos,

dignitários e mães com crianças;

unidade: emblemas, faixas, bandeiras ou vestimentas combinadas; marchas

em formações organizadas; canções e cantos;

números: contagem de participantes; número de assinaturas em petições;

quantidade de mensagens dos partidários; capacidade de encher as ruas;

comprometimento: enfrentamento do mau tempo; participação visível de

idosos e portadores de deficiências; resistência à repressão; sacrifícios, subscrições e/ou atos de benemerência ostensivos.

As formas particulares de expressão variam enormemente de um contexto para outro, mas a comunicação geral de VUNC interconecta essas expressões (TILLY, 2010. p.138)

Segundo o autor citado, esses três elementos possuem precedentes históricos, a saber:

Bem antes de 1750, para tomar um exemplo óbvio, os protestantes europeus recorrentemente organizaram campanhas públicas contra as autoridades católicas em nome do direito de praticar sua fé herética. Os europeus engajaram-se em dois séculos de guerras civis e rebeliões nas quais figuraram em lugar central as divisões entre protestantes e católicos (TE BRAKE, 1998). No que diz respeito aos repertórios, versões de associações de finalidade específica, reuniões públicas, marchas e outras formas de ação política existiram isoladamente muito antes de sua combinação no interior de movimentos sociais. Logo veremos como os pioneiros dos movimentos sociais adaptaram, ampliaram e conectaram essas formas de ação. Demonstrações de VUNC ocorreram por longo tempo em martírios religiosos, sacrifícios cívicos, e resistência à conquista, mas somente a sua regularização e integração com o repertório padrão distinguiu as demonstrações dos movimentos de suas predecessoras. Nenhum elemento singular, mas a combinação do repertório com as demonstrações de VUNC no interior das campanhas, criou a característica distintiva do movimento social (TILLY, 2010, p.138).

Assim, baseado nos autores que já teorizaram sobre essa temática (como Charles Tilly, Verta Taylor, Nella Van Dike, Donatella Della Porta e Mario Diani), Thiago Coacci (2012, p. 3-9) sintetiza as principais características do conceito de repertório, enumeradas abaixo:

a) especificidade histórica e geográfica: os repertórios diversificam-se de

acordo com o tempo e com o espaço em que são utilizados. Dessa forma, os repertórios empregados no Brasil podem não ser os mesmos utilizados noutros países, como os atentados suicidas, comuns no Oriente Médio. Também, Tilly menciona que, durante o período feudal francês, a queima de moinhos de grãos era

utilizada, o que não acontece nos dias atuais. Nestes, no entanto, é possível fazer o uso de técnicas mediadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação que, por motivos óbvios, não eram utilizadas no período feudal;

b) autonomia: de acordo com Tilly, os protestos ocorriam dentro de uma agenda

política oficial, antes da formação dos estados nações, o que não é necessário atualmente, pois é possível realizar uma marcha, independentemente de um acontecimento oficial;

c) abrangência nacional: segundo Della Porta e Diani (2006, p.153), a partir da formação dos estados nações, os repertórios podem ter âmbito nacional30, uma vez

que é possível haver coordenação entre localidades diferentes, não sendo impeditivo de serem utilizados em pontos específicos;

d) modularidade: a modularidade refere-se à disponibilidade de uma nova forma de protesto, a partir do momento em que é criada, visando a causas diferentes das que estavam em cena, quando da sua criação. A exemplo disso, podem ocorrer marchas de cunho religioso, buscando a afirmação dos seus valores, como também podem ocorrer marchas ligadas ao movimento LGBT, visando o respeito às diferenças, sejam elas ligadas a orientações sexuais ou de identidade de gênero.

e) contestação: os protestos e os repertórios dizem respeito aos locais de contestação, nos quais indivíduos, símbolos, práticas e discursos disputam, a fim de alcançar uma mudança ou de evitá-la;

f) intencionalidade: a utilização de um repertório específico, em vez de outro, pressupõe o reconhecimento de uma estratégia de ação, visando à obtenção de um determinado resultado;

g) produção de identidades coletivas: a ação coletiva, conforme Taylor e Van Dyke expõem, necessita de identidades coletivas, uma vez que um dos seus requisitos é “consciência oposicional”, definida pelos autores como o compartilhamento de um senso de injustiça e a vontade de se opor e resistir a elas.

Em linhas gerais, os repertórios podem ser entendidos como um conjunto de ferramentas conhecidas que estão à disposição dos atores sociais para serem utilizadas, a fim de expressarem publicamente as suas demandas, dentro de um determinado contexto, podendo ser adaptadas às especificidades de uma

30 Pode-se falar em abrangência global, uma vez que o uso das tecnologias digitais e da internet transcendem as barreiras geográficas. Um exemplo disso, são os protestos coordenados para ocorrerem simultaneamente em diferentes países.

determinada localidade, tais como as barricadas, os acampamentos, as greves, os trancamentos de ruas, etc. Dessa forma, se os repertórios possuem essas características, alocando-se e reinventando-se em diferentes contextos, como eles se apresentam e se renovam no meio on-line? Os tópicos seguintes abordarão sobre essa questão.