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Alguns conceitos abordados por Bakhtin e Vigotski: implicações aos processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem

Apresentamos, a seguir, breves reflexões sobre signo, ideologia, alteridade, enunciação e dialogismo, conceitos abordados por Bakhtin (1981; 1992; 1993; 2010); sobre fala social e fala interior, em Vigotski (1984; 1987; 1996; 1998; 2007; 2009), e sobre o desenvolvimento

do simbolismo no brinquedo que, para Vigotski (2007), se faz presente na aquisição da linguagem escrita.

As reflexões, ainda que breves, são aqui trazidas por suas inter-relações nos processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem. É nossa intenção realizar a transposição dessas reflexões às processualidades vividas com os alunos severamente comprometidos na fala, quando em processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem e aprendizagem da leitura e da escrita.

Para reflexão inicial, apresentamos o que Vigotski (1998) escreve sobre a relação existente entre pensamento e fala, ao distinguir claramente a existência de uma fase pré- linguística para o desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual para o desenvolvimento da fala. Desse modo, antes mesmo do primeiro ano de vida da criança, a função social da fala já se evidencia:

Para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente – também é preciso que conheçamos a sua motivação. Nenhuma análise psicológica de um enunciado estará completa antes de se ter atingido esse plano (VIGOTSKI, 1998, p. 130).

Se a função social da fala já se evidencia antes de esta se estruturar objetiva e articuladamente nos sujeitos, não é difícil compreender e aceitar que o foco de atuação com sujeitos severamente comprometidos na fala precisa ser compreendido em seu pensamento e em suas motivações. Segundo Vigotski (1996), o sentido das palavras muda também com o motivo, por conseguinte, a explicação final está na motivação. Assim, Vigotski (1998) propõe que se analise o aspecto intrínseco da palavra, o que significa analisar o seu significado, pois é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem.

Isso fica mais claro quando Vigotski (1996, p. 183) afirma: “O pensamento é um processo interno”; ele é “[...] o caminho de um desejo vago até a expressão mediada através do significado, ou, melhor dizendo, não até a expressão, mas até o aperfeiçoamento do pensamento na palavra”.

É nesse contexto que a tese da mediação semiótica ganha sentido, pois ela aponta para o signo, ou seja, a palavra e o “outro” como constitutivos do sujeito. Sob esse entendimento, trazemos o pensamento de Bakhtin (2010, p. 36) quando diz: “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência” e “A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo”.

Depreende-se, tanto do pensamento de Vigotski quanto do de Bakhtin, que é no processo de mediação que a palavra, signo por natureza, ganha sentido com o outro ser humano e, carregada de história, conforme escreve Padilha (2007), adquire sentido contextualizado.

Sobre isso, Bakhtin (2010) diz que, na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial, ou seja, está sempre contextualizada. É assim que as palavras são compreendidas, e somente reagimos àquelas que nos tocam ideologicamente.

Pires (2002)escreve:

O signo lingüístico tem, pois, uma plurivalência social que se refere ao seu valor contextual. O fato de diferentes grupos sociais empregarem o mesmo sistema lingüístico faz com que as palavras manifestem valores ideológicos contraditórios, tendo o seu sentido firmado pelo contexto em que ocorrem. É a situação social imediata a responsável pelo sentido (PIRES, 2002, p. 38).

A autora ainda pondera que outra característica do signo bakhtiniano, ligada à anterior, “[...] é a mutabilidade, uma vez que, como reflexo das condições do meio social, a palavra é sensível às transformações na estrutura social, registrando todas as mudanças” (PIRES, 2002, p. 38). Nesse contexto, as palavras se fazem presentes em todas as relações sociais e são tecidas a partir de uma infinidade de fios ideológicos.

Nesse aspecto, o conceito de ideologia, no sentido de visão de mundo, é compreendido como aquele que faz parte de uma realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade. Assim, todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica, ou seja, onde se encontra o signo, encontra-se também o ideológico, e tudo o que é ideológico tem um valor semiótico (BAKHTIN, 2010). É interessante notar que essa questão também é evidenciada nas reflexões de Vigotski (1998)quando escreve:

Mesmo numa criança em idade escolar, o uso funcional de um novo signo é precedido por um período de domínio da estrutura externa do signo. Da mesma forma, somente ao operar com palavras que foram primeiro concebidas como propriedades dos objetos, é que a criança descobre e consolida a sua função como signos (VIGOTSKI, 1998, p. 62).

Nesse processo de avaliação ideológica e de valoração semiótica, Padilha (2007) ressalta que a significação pode ser compreendida como uma mútua constituição do “eu- outro”, pois é com o outro e pelo outro que as regras se constituem. Para a autora,

[...] as regras, as normas, as negociações, os acordos são da ordem do simbólico. Tudo o que acontece na vida do homem, da respiração ao gesto, da circulação do sangue ao discurso interior, tudo pode, de acordo com Bakhtin, adquirir valor semiótico e tornar-se expressivo. [...] Bakhtin refere-se ao símbolo como encadeamento mediador de um sentido correlacionado com a ideia de totalidade universal. Dessa forma, o mundo tem um sentido e este sentido é captado pelo simbólico, manifestado na palavra (PADILHA, 2007, p. 24).

Nas discussões de Bakhtin (2010, p. 33) em relação ao estudo da ideologia, encontramos importantes reflexões e análises, como, por exemplo, a de que tudo o que funciona como signo ideológico “[...] tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer”. O autor completa, em sua análise, que o signo e todos os seus efeitos, todas as ações, reações e novos signos gerados por ele no meio social aparecem na experiência exterior, e isso para ele é de suma importância. A despeito dessas análises e reflexões, o autor conclui que, por mais elementar e evidente que isso possa parecer, “[...] o estudo das ideologias ainda não tirou todas as consequências que dele decorrem” (BAKHTIN, 2010, p. 33).

Outro conceito valoroso encontrado nas teorizações de Bakhtin é o de alteridade. Para Givigi (2013)43, essa ideia está ligada a uma situação que se constitui no contraste, na ordem do “outro”, da intersubjetivade. É, segundo Pires (2002), um movimento de busca e de reconhecimento de si mesmo por intermédio da relação solidária com os outros. E é desse modo que Bakhtin(1979/1992, p. 294)44 se expressa: “A experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros”.

Numa perspectiva propositiva e discursiva desse conceito, interessa a Bakhtin, em relação ao “evento único do ser”, compreender, de uma posição singular e única, que ocupamos na existência as consequências de tais eventos. A esse respeito Sampaio (2009, p. 43) escreve: “Tal perspectiva permite-nos olhar para o mundo dos atos humanos em sua individualidade, unicidade e diversidade, como que através de um caleidoscópio e, assim fazendo, escapar da avassaladora totalidade generalizante engendrada pelo mundo da cognição teórica”.

Ainda na interpretação de Sampaio (2009, p. 43): “Bakhtin considera o pensamento, com seu conteúdo – tanto na perspectiva semântica como de uma consciência histórica

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Em Parecer formal de Qualificação II do nosso Projeto de Tese.

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singular –, como um ato ético responsável que revela como nos movemos e orientamos em relação ao mundo”. O que o autor está propondo, para melhor entendermos o conceito de alteridade, é que ele é

[...] um paradigma filosófico moral de interpretação da realidade de atos responsáveis por sujeitos responsáveis. Isso fica claro quando ele reconhece que uma filosofia do ser-evento unitário e único, tanto em relação ao seu conteúdo- sentido como ao de um produto objetivado, não pode ser abstraída do ato-ação real, único e de seu autor – aquele que está pensando teoricamente, contemplando esteticamente e agindo eticamente. Ou seja, “uma filosofia primeira só pode orientar-se em relação a esse ato realmente executado”, o que, em termos práticos, significa dizer que é este “mundo concreto do ato realizado”, seus “momentos básicos concretos de construção” que ela “tem de descrever”. E que mundo é esse? “É um mundo no qual o ato ou a ação realmente se desenvolve” [...], “mundo que é visto, ouvido, tocado e pensado [...]”. Mundo em torno do qual estão dispostos todos os valores da vida e da cultura (científicos, estéticos, políticos – incluindo os éticos e sociais e religiosos) (SAMPAIO, 2009, p. 45).

Bakhtin (1993, apud SAMPAIO, 2009, p. 46) destaca que esses momentos básicos,

concretos de construção “[...] são constituídos, na dimensão da alteridade que se estabelece na

relação de ‘um eu-para-mim, o outro-para-mim e o eu-para-o-outro’, em torno dos quais estão organizados todos os valores espácio-temporais e de conteúdo”, e acrescenta:

O eu existe no Ser como um eu para si: “eu existo nele” e participo ativamente dele. Enquanto a minha unicidade é dada, ela ao mesmo tempo “existe apenas na medida em que é atualizada por mim”. E isso acontece “sempre no ato, na ação realizada que ainda está por ser alcançada”. E aí reside o ato/ação responsável que é “realizado sob a base de reconhecimento da minha obrigatória (dever-ser) unicidade” [...] porque para “ser na vida” [...] é preciso “agir”, não ser indiferente em relação ao todo único (BAKHTIN, 1993, apud SAMPAIO, 2009, p. 46).

Em uma transposição para os contextos vividos na escola e nas relações entre nós e os outros, sobretudo considerando esses “outros” os alunos com deficiência, podemos inferir que muitas das relações ali estabelecidas, especialmente sob a dimensão pedagógica, mas não somente sob esta, estão calcadas em princípios que divergem daqueles que compõem os princípios do ato/ação responsável. Isso fica evidente, na medida em que esses atos/ações deixam de ser realizados, na escola, sob o discurso da não obrigatoriedade em agir e/ou construir saberes e fazeres com o ensino, a aprendizagem e a avaliação desses sujeitos.

Esse descompromisso ou desresponsabilização decorre muito mais da indiferença ao “todo único” e “ao reconhecimento da minha obrigatória unicidade” para com o outro, no dizer de Bakhtin, do que dos discursos que ainda persistem do “não fui preparado”, “não sei fazer”, “não dou conta”.

Entretanto, acreditamos que o ato de “preparar” alguém antecipadamente para o ato/ação não significa necessariamente assegurar sua responsabilização ou compromisso com o outro45, pois é necessário reconhecer esse outro como sujeito de direitos e de possibilidades, no caso do aluno com deficiência, para reconhecer-se a si mesmo nesse processo.

Para Geraldi (2010), as relações com a alteridade apontam-nos um caminho a percorrer, porque elas nos possibilitam, assim como a arte, escutar o estranhamento. “As ações do outro, os dizeres do outro, prenhes de sua cultura, quando confrontados com objetos e fenômenos que nos escondem as valorações que nós mesmos lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos enxergar” (GERALDI, 2010, p. 89).

Talvez falte o desejo ou a capacidade de nos deixarmos confrontar ou escutar o estranhamento. Precisamos, portanto, mudar a direção do olhar e da escuta, redirecionando-os a partir do outro, para assim redescobrirmos outras e novas possibilidades. Uma pergunta que deveríamos sempre fazer, então, é: Que efeitos são produzidos em nós no encontro com o diferente? A resposta poderá, quem sabe?, revelar muito do que ainda não sabemos de nós mesmos.

A respeito dos conceitos de enunciação e dialogismo, também, a opinião de Givigi (2013) sobre relação com outros tempos e espaços que Bakhtin faz, ao discutir o diálogo, bem como sobre a não linearidade na disposição dos elementos da comunicação. Segundo a autora, esses conceitos mostram um complexo processo de constituição desses elementos e de produções de sentidos. Por esse motivo, além de trazê-los, transpomo-los às complexas manifestações desses elementos em sujeitos sem fala articulada.

Sobre a enunciação, Flores e Teixeira (2010) ressaltam que ela é assumida por Bakhtin como centro de referência do sentido dos fenômenos linguísticos. Sob esse entendimento, ela é evento sempre renovado, pelo qual o locutor se institui na interação viva com vozes sociais. Nesse sentido, Bakhtin (2010, p. 117) nos ensina: “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”.

Com isso o autor pretende explicitar que qualquer que seja a enunciação, mesmo não se constituindo de uma informação ou comunicação, e sim da expressão verbal de uma

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Isso não significa que não tenhamos que investir na formação tanto inicial quanto continuada daqueles que atuarão ou já atuam no campo da educação. O ato/ação responsável também pressupõe, no encontro “sujeito em formação” e “sujeito formador”, o reconhecimento do outro, em formação, como condição de reconhecimento de “si”, assim entendido nas relações de alteridade e no processo comunicativo.

necessidade qualquer, como, por exemplo, a fome, ela, a enunciação, é socialmente dirigida. Isso porque os participantes do ato de fala é que a determinam de forma mais imediata, ou seja, a situação vai dando forma à enunciação e impõe-lhe uma ressonância, ao contrário de uma solicitação ou informação factual e direta (BAKHTIN, 2010).

Pensando nos sujeitos sem fala articulada, é possível considerarmos os seus enunciados a partir da ideia de que a simples tomada de consciência, “[...] mesmo confusa, de uma sensação qualquer, digamos a fome, pode dispensar uma expressão exterior, mas não dispensa uma expressão ideológica” (BAKHTIN, 2010, p. 118).

Isso é uma verdade, considerando-se o olhar do autor, pois a tomada de consciência implica sempre um discurso interior, uma entoação interior e um estilo interior, ainda que rudimentares.

É a partir dessa ideia que inferimos que os sujeitos severamente comprometidos, quando apoiados por interlocutores atentos, que buscam mediar com eles os processos comunicativos, poderão deixar suas marcas de lamento, de reclamação ou indignação, pela fome que sentem, por exemplo, ou por outro sentimento que desejam exprimir. Assim, a expressão exterior, qualquer que seja ela, apenas prolongará e esclarecerá “[...] a orientação tomada pelo discurso interior e as entoações que ele contém” (BAKHTIN, 2010, p. 118).

O dialogismo, representado pela relação com o outro, é para Bakhtin (1992) o princípio fundamental de toda a linguagem. Nesse contexto, os enunciados se constituem apenas como conectores de uma cadeia infinita de enunciados, um ponto de encontro de opiniões e visões de mundo. Na interpretação de Pires (2002), nessa rede dialógica marcada pelo discurso instituem-se sentidos que não são originários do momento da enunciação, embora façam parte de um continuum. Com isso, a autora afirma que o indivíduo não é a origem de seu dizer e indica a passagem na qual Bakhtin (1992, p. 319) argumenta: “Um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais ele é o primeiro a nomear”.

No âmbito das discussões sobre dialogismo, é importante salientar, quanto ao significado de diálogo em Bakhtin, que este não deve ser entendido apenas como ato de comunicação entre as pessoas, mas, sim, como elemento integrante da linguagem que, ao mesmo tempo em que expressa comunhão entre sujeitos, não representa passividade. Por esse motivo é que devemos considerar, sobretudo em relação aos sujeitos severamente comprometidos na fala, os aspectos inerentes à situação social imediata dos acontecimentos. É

a partir dessa situação que a enunciação, produto da interação social, é organizada, no que diz respeito ao seu conteúdo e significação.

Em relação ao discurso, à entoação e ao estilo interiores, trazidos um pouco antes neste texto a partir de Bakhtin, emergem os conceitos de fala social e fala interior. Desse modo, para os entendermos, trazemos o pensamento de Vigotski sobre as raízes genéticas do pensamento e da linguagem.

A partir dos estudos realizados por Koehler e Yerkes com macacos antropoides, o autor conclui que, embora esses animais tenham uma linguagem rudimentar e um intelecto parecido com o do homem, não têm capacidade de desenvolver linguagem e raciocínio, isso porque nos animais não existe, como no homem, uma inter-relação estreita entre pensamento e fala.

O autor, por meio de outros estudos, conclui ainda que as funções do pensamento e da fala se desenvolvem ao longo de trajetórias diferentes e independentes e não há relação clara e constante entre elas, embora essas linhas se encontrem no pensamento verbal e na fala racional. É a partir daí que Vigostki aborda o estudo da fala interior, tomando-o como importante para a compreensão entre pensamento e linguagem. A fala, para Vigotski, é interiorizada psicologicamente antes de o ser fisicamente e está ligada à organização do desenvolvimento da criança.

Brites e Cassia (2012), em resenha crítica sobre uma das obras de Vigotski, escrevem que a linguagem interior não consiste na ausência de som, tampouco na reprodução da fala na memória. O que ocorre é o contrário da fala exterior, consistindo na tradução do pensamento em palavras, invertendo-se o processo: nesse sentido, a fala interioriza-se no pensamento.

A fala interioriza-se porque a sua função muda, e desenvolve-se mediante um lento acumular de mudanças estruturais e funcionais – as estruturas da fala que a criança domina tornam-se estruturas básicas do pensamento. Assim, o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, pelos instrumentos linguísticos, mas também pela experiência social e cultural da criança – o seu crescimento intelectual depende do domínio que tem sobre os meios sociais do pensamento. Com o desenvolvimento da fala interior e do pensamento verbal é a natureza do próprio desenvolvimento que se transforma (BRITES; CASSIA, 2012, p. 182).

Considerando a importância e o valor da fala interior ou discurso interior (que neste caso pressupõe sempre um interlocutor) nos processos de desenvolvimento ou de “acontecimentos” da linguagem em sujeitos com ou sem deficiência, remetemo-nos novamente aos sujeitos sem fala articulada. Esses sujeitos, ignorados muitas vezes no contexto da escola/sala de aula, estabelecem quase sempre esse tipo de fala, um discurso

consigo próprios. Silenciados por não haver um interlocutor “interessado”, permanecem apenas nessa dimensão da fala, quando esta deveria ser uma escolha ou uma opção entre os intercursos dialógicos mantidos nos contextos de suas relações sociais.

Os sujeitos sem fala articulada, ao serem “provocados” por um interlocutor a manifestar sua fala interior, podem revelar, por meio dos recursos de CAA, entre outras alternativas, a compreensão clara e ativa da palavra do outro (num contexto mais geral) ou de seu interlocutor (num contexto particular). Isso ocorre por meio do olhar ou de um piscar de olhos, da gestualidade, das retomadas, das tentativas de escrita e dos confrontos e conflitos para se fazerem entender. Esse processo pode dar-nos pistas quanto ao trabalho que realizamos e nos dá condições de avaliar o processo de constituição de conhecimento com/em tais alunos, além de revelar uma dimensão diferente da dinâmica discursiva de sala de aula.

Como um importante elemento presente na aquisição da linguagem escrita, trazemos, por fim, como nos propusemos no início deste tópico, reflexões sobre o desenvolvimento do simbolismo no brinquedo a partir das ideias de Vigotski (1929/2007)46. Para o autor, no desenvolvimento da escrita, os gestos e a linguagem escrita são unidos por meio dos jogos das crianças. Nesses jogos, quando os objetos denotam outros, substituindo-os, tornam-se seus signos.

Essa função simbólica, presente no brinquedo, é algo significativo para o processo de constituição da linguagem nas crianças e, no caso daquelas crianças com severos comprometimentos motores e de fala, precisa ser considerada com um pouco mais de cuidado. Esse brinquedo simbólico, quando “construído” pela criança, “[...] pode ser entendido como um sistema muito complexo de ‘fala’ através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar” (VIGOTSKI, 2007, p. 130).

As experiências do autor sobre a escrita a partir dos objetos nos ajudam a pensar o uso da CAA, não como uma forma particular de linguagem, mas, ao contrário disso, como algo que pode ser dinamizado e posto em movimento, como recurso, pela linguagem. Nesse processo de movimentação, os recursos da CAA podem também apoiar o processo de constituição e desenvolvimento da linguagem. O exemplo de Vigotski pode traduzir o que estamos falando:

Um livro em pé designava uma casa; chaves significavam crianças; um lápis, uma governanta; um relógio de bolso designava uma farmácia; uma faca, o médico; uma

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tampa de tinteiro, uma carruagem; e assim por diante. A seguir, através de gestos