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Convergem, nesta investigação, vários conceitos que convém explicitar. Falamos de peregrinos, viajantes, passageiros, assistência, Misericórdias, pobreza, cartas de guia. Mas que significado concreto tinham, na época, estes termos que nos são fornecidas pelas fontes? Que significado lhes deu a historiografia e de que forma serão utilizados nesta investigação?

A estas questões procurámos responder no desenvolvimento do quadro teórico, aqui

inserido. Recorremos, para começar, ao “Diccionário da Língua Portugueza”17 composto por

Raphael Bluteau. Buscámos, desta forma, conhecer o significado dos termos que aqui usámos, na época em que foram escritos.

Viagem é definida como um «caminho que se faz por mar».18 No entanto, no nosso

trabalho encontramos indivíduos que percorrem o seu caminho em terra, alguns deles, desde a

16 É exemplo disso a segunda metade da década de 1760 na Santa Casa de Ponte da Barca, onde procedemos ao levantamento das despesas dos anos administrativos de 1165-66, 1766-67 e 1769-70, porque verificámos existirem oscilações na ordem dos 40 mil réis entre o primeiro e terceiro ano e o segundo, como podemos ver no gráfico 5.

17 Veja-se Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio Morais

Silva, Tomo I, Lisboa, Oficina de Simão Thadeo Ferreira, 1790, consultado através do site: www.brasiliana.usp.br, acedido a 14 de março de 2017. 18 Confira-se Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio

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origem, outros que efetivamente desembarcaram em algum porto para depois seguirem caminho a pé. Não faltavam, ainda, as pessoas que aproveitavam os rios e as suas barcas para fazerem parte do percurso. Nunca, na documentação, surge o termo viajante. Este foi adotado por nós, para facilitar a aceção do que realmente é tratado nesta investigação. Existiam, no entanto, os termos que nos surgem na documentação de “peregrino” e “passageiro”. Em Latim, «peregrinação» significaria pelo campo (per agros), ou seja, designava aqueles que caminhavam pelos campos, e «peregrino» um estrangeiro, não cidadão que estivesse em Roma. No período medieval assume uma conotação religiosa e identificava os forasteiros que visitavam a Terra

Santa.19 Os teóricos de Afonso X de Leão e Castela haviam precisamente definido como romeiro:

«[…] todo aquele que se dirigia para Roma para visitar os santos lugares onde jazem os corpos de S. Pedro e S. Paulo […], enquanto que, por sua vez o termo peregrino se aplicava a quantos se dirigiam a Jerusalém e a outros lugares relacionados com o Nascimento e a Morte de Cristo e também àqueles que iam em romaria a Santiago de Compostela […]».20

Mas tal não nos permite analisar as referências a peregrinos como sendo, exclusivamente, indivíduos que se dirigiam a um santuário por motivos religiosos.

Bluteau define peregrinar como «correr viajando, v. g. peregrinou toda a África» e por

peregrino «estrangeiro, não nacional; não pátrio», e por peregrinador «o que anda viajando».21

Portanto, quando a documentação refere um peregrino, não é no sentido atual do termo. Não está a aludir a uma pessoa que se desloca por motivações religiosas, mas sim a um forasteiro que estava a percorrer um determinado caminho a pé ou a cavalo, por variadas razões. Por passageiro

entendia-se o «acto de passar embarcado, ou por terra, a outro lugar».22 O que nós hoje definimos

com um viajante era, portanto, à época, referido como um peregrino ou um passageiro, alguém que estava a empreender uma jornada de um local para outro. E são estes indivíduos, juntamente

com a assistência que lhes era prestada, o nosso objeto de estudo. O Diccionário da Língua

19 Leia-se para este assunto Mendes, Ana Catarina, Peregrinos a Santiago de Compostela: uma etnografia do caminho português, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2009, p. 42.

20 Confira-se Marques, José, «A assistência aos peregrinos, no Norte de Portugal, na Idade Média», in I Congresso Internacional dos Caminhos

Portugueses de Santiago de Compostela, Porto, s.e, 1989, p. 12.

21 Consulte-se Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio

Morais Silva, Tomo II…, p. 187.

22 Veja-se Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio Morais

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Portugueza define, precisamente, o termo de “assistência” como «estancia junto, perto de alguém,

ou de algum lugar. A companhia, o serviço, o que se lhe faz. Estar de assistência […]. Porção de

dinheiro, com que se assiste, auxílio, socorro medicinal».23

Neste trabalho analisámos algumas destas dimensões assistenciais levadas a cabo pelas Misericórdias. Estas auxiliavam os viajantes com dinheiro, podiam oferecer um local de pernoita, cuidados médicos em caso de doença, uma cova quando faleciam, alimentação, instrumentos para cozinhar, enxergões para dormir, luz, lenha, carros ou cavalgaduras quando não estivessem em condições de andar. Portanto, as Santas Casas estiveram e foram presentes na vida daqueles que se encontravam pobres e desamparados. Bluteau definiu esta misericórdia, que deu nome às confrarias, como sendo uma «compaixão nascida das misérias alheias. Propensão do ânimo para aliviar as misérias de outrem»; as obras de misericórdia, guias do funcionamento destas confrarias como «ações de caridade, com que se remedia ou alivia o mal corporal, ou espiritual do próximo»; e a Casa da Misericórdia como uma «instituição pia, cujos irmãos curão infermos, casão orfãas,

que ahi se educão, crião os enjeitados, etc».24 Já, neste período, o enfâse dado à assistência dos

peregrinos era menor do que era conferido a outras obras de caridade.

Um outro termo que surge recorrentemente nas fontes, à parte de peregrinos e passageiros, é o de carta de guia. Muitas vezes são apenas referidos os totais de despesas com estes documentos que se tornaram instrumentos importantíssimos, como adiante veremos, para o passageiro atestar, perante qualquer instituição, a sua necessidade de auxílio e a sua boa fé. A carta de guia tornava-se, assim, um «passaporte» onde se registavam todas as informações consideradas essenciais relativas ao seu portador.

Por último, falamos de pobres. Os peregrinos ou viajantes eram pobres. E por pobre na época define-se aquele que tem «falta do necessario para a vida. Estreiteza, e aperto de posses,

e haveres».25 Contudo, esta situação de pobreza, para os viajantes, poderia ser apenas

momentânea. Stuart Woolf estabeleceu a diferenciação entre duas realidades: os pobres estruturais e os conjunturais. Os primeiros seriam aqueles que não tinham possibilidade de trabalhar, por serem doentes, velhos, mentecaptos deficientes, acabando por cair na pobreza; os

23 Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio Morais Silva, Tomo I…, p. 132.

24 Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio Morais Silva, Tomo I…, p. 85.

25 Rafael, Bluteau, Diccionário da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio Morais Silva, Tomo II…, p. 210.

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segundos, os que por determinada conjuntura acabaram por ficar sem meios para a sua

subsistência.26 Em todo o caso, enquadramos estes indivíduos dentro da pobreza merecedora,

havendo, no entanto, a par deles, os vagabundos ociosos que preferiam viver da caridade alheia do que trabalhar para ganhar o seu próprio sustento.

Os passageiros incluem-se, precisamente, no grupo dos pobres conjunturais, uma vez que a sua situação de carência advém das dificuldades com que se deparavam por estarem em viajem, longe do local onde tinham os seus meios de subsistência. Mas existem também os que sendo remediados não conseguiam suportar as despesas de uma viagem que demoraria muitos dias ou meses. Desta forma, precisavam de auxílio para passarem o caminho. Sem ele a viagem não se efetuaria ou as necessidades seriam muito maiores.