• Nenhum resultado encontrado

2 A SEGURANÇA PÚBLICA

2.1 DIREITO E DEVER À SEGURANÇA PÚBLICA

2.2.1 Conceitos Preliminares

De antemão, apresentando um rol taxativo de órgãos policiais responsáveis, estatui a Constituição Federal (BRASIL, 1988), na cabeça de seu art. 144, que a “[...] segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]” (grifos nossos).

Assim, para se entender o que significa a segurança pública nesse e em outros dispositivos constitucionais, deve-se compreender o que seja a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, destacando-se que, ao menos, os dois primeiros são vistos como conceitos plurissignificativos (vagos ou indeterminados) por Mello (2003, p. 19). Ensejam, portanto, o reconhecimento de uma atuação discricionária da Administração Pública, especialmente das forças policiais elencadas nos incisos daquele dispositivo constitucional.

Entretanto, em face do objetivo proposto, não se tratará sobre a incolumidade das pessoas e do patrimônio, que é reflexo do respeito a direitos fundamentais dos indivíduos pelo Estado, que deve atuar limitado, para que não haja abusos de poder e de autoridade de seus agentes, e, por outro lado, deve coibir os atentados entre particulares, focando-se a abordagem inicial apenas na ordem pública.

De certo que, não se pode falar de segurança pública sem antes abordar sobre a ordem pública sob o pressuposto, pelo menos inicial, de que caiba aquela preservar essa.

Segundo Moreira Neto (1991, p. 3), a ordem é uma situação que existe em razão da viabilização da organização de um sistema qualquer. Uma organização pressupõe a existência de uma ordem mínima que assegure a sua subsistência.

A ordem política diz respeito à organização política de uma sociedade, que viabiliza a existência do Estado e do Direito. Já a ordem pública é a organização da convivência pública de uma sociedade, ou seja, “[...] a disposição interna da organização social das interações interindividuais públicas, permanentes ou ocasionais, que viabiliza a convivência pública.” (MOREIRA NETO, 1991, p. 14).

pública em sociedade pressupõem a existência de uma ordem política e de uma ordem pública, e entre elas há uma relação de geral para o particular, estando aquela em um plano mais abrangente do que essa. É a ordem política, nessa relação de continência e de dependência, que exige a ordem pública e não o contrário.

Inobstante, nesse ponto, urge salientar que a organização social é muito mais ampla e complexa do que a pública, naturalmente a abrangendo, haja vista consistir aquela em uma união de diversos elementos de relações sociais comuns por atos de escolha, representação e decisão, conforme Firth (1970, p. 41-44):

Organização social implica algum grau de unificação, a união de diversos elementos numa relação comum. Para isto, pode ser conveniente supor a existência de princípios estruturais, ou vários processos podem ser adotados. Isto envolve o exercício da escolha, o tomar decisões. Estas, como tais, dependem de avaliações pessoais, que são a transformação dos fins ou valores grupais em termos que adquiram significado para o indivíduo. No sentido que toda organização envolve fixação de recursos, isto implica, dentro de um esquema de julgamento de valor, um conceito de eficiência [...]

[Sobre outros elementos da organização social] Implica o reconhecimento do fator tempo na ordenação das relações sociais. Há a concepção de tempo implicando, necessariamente, uma sequência ou série ordenada na colocação de unidades em direção ao fim desejado. [...] O conceito de organização social, também, leva em conta as magnitudes, as quantidades envolvidas no estudo. [...]

A organização pressupõe também elementos de representação e responsabilidade. Em muitas esferas, a fim de que os propósitos de um grupo possam ser realizados, deve haver representação dos seus interesses pelos membros individuais. As decisões assentadas como decisões grupais devem ser, de fato, decisões individuais. Deve haver algum mecanismo então, aberto ou implícito, por meio do qual um grupo concede aos indivíduos o direito de tomar decisões em nome da totalidade.

Indo além de uma visão formal, o referencial da ordem pública não se limita à lei e, tampouco, à legítima observância dos princípios democráticos, por alcançar uma dimensão moral voltada para as exigências sociais, de forma que ordem pública deve ser legal, legítima e moral.

Reconhecendo essa dimensão metajurídica da ordem pública, Moreira Neto (1991, p. 15) trata a ordem pública como “[...] a disposição pacífica e harmoniosa da convivência pública, conforme os princípios éticos vigentes na sociedade.”

Nesse mesmo sentido, atento às lições de outros autores, Lazzarini (1987, p. 8- 9) registra que a noção de ordem pública é extremamente vaga e ampla,

constituindo-se em uma situação material e exterior de oposição à desordem, mas não se limitando a ela e, portanto, alcançando uma certa dimensão moral.

Para Lazzarini (1999, p. 52), a ordem pública é constituída pelas condições mínimas necessárias a uma conveniente vida social, dentre elas a segurança pública, a salubridade pública e a tranquilidade pública e, de uma ótica material; é a situação fática, decorrente do convívio harmônico dos elementos que interagem na sociedade e permitem seu funcionamento estável e regular, garantindo a liberdade de todos, com respaldo no posicionamento de Meirelles (1986, p. 156-157).

No que lhe concerne, para a Escola Superior de Guerra (BRASIL, 2009a, p. 62), a ordem pública “[...] é a situação de tranquilidade e normalidade cuja preservação cabe ao Estado, às Instituições e aos membros da Sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas.”

Por fim, voltando ao caput do art. 144 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Supremo Tribunal Federal, claramente, já se posicionou desvinculando o conceito de ordem pública daqueles atinentes a incolumidade das pessoas e do patrimônio alheio, como se vê no seguinte acórdão (BRASIL, 2010a):

O conceito jurídico de ordem pública não se confunde com incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144 da CF/1988). Sem embargo, ordem pública se constitui em bem jurídico que pode resultar mais ou menos fragilizado pelo modo personalizado com que se dá a concreta violação da integridade das pessoas ou do patrimônio de terceiros, tanto quanto da saúde pública (nas hipóteses de tráfico de entorpecentes e drogas afins). Daí sua categorização jurídico-positiva, não como descrição do delito nem cominação de pena, porém como pressuposto de prisão cautelar; ou seja, como imperiosa necessidade de acautelar o meio social contra fatores de perturbação que já se localizam na gravidade incomum da execução de certos crimes. Não da incomum gravidade abstrata desse ou daquele crime, mas da incomum gravidade na perpetração em si do crime, levando à consistente ilação de que, solto, o agente reincidirá no delito. Donde o vínculo operacional entre necessidade de preservação da ordem pública e acautelamento do meio social. Logo, conceito de ordem pública que se

desvincula do conceito de incolumidade das pessoas e do patrimônio alheio (assim como da violação à saúde pública), mas que se enlaça umbilicalmente à noção de acautelamento do meio social.

Assim, estritamente dentro dos conceitos acima expostos, pode-se concluir que a ordem pública seria uma situação fática que assegura a viabilização da organização do sistema social, como um estado de convivência pública tranquilo, harmonioso e estável dos elementos que interagem na sociedade, conforme as normas legalmente estabelecidas.

No entanto, de passagem, ultrapassando o campo jurídico, essa conformidade seria estabelecida com as normas sociais vigentes que abrangeriam tanto as previstas como as não previstas em lei, posto que a sociedade e seus integrantes não são regidos apenas por normas jurídicas numa ótica sociológica.

Reunindo aspectos formais e materiais, são esses conceitos que permitem um adequado entendimento jurídico das quatro menções no texto constitucional (BRASIL, 1988) à ordem pública, quais sejam: no art. 136, caput, quando cuida do estado de defesa; no art. 137, inciso I, implicitamente, quando se reporta ao estado de sítio diante da ineficácia do estado de defesa; no art. 144, caput, ao defini-la como objeto da segurança pública; e, no art. 144, §5º, ao, genericamente, atribuir a sua manutenção pela Polícia Militar.

Adiante, ao tentar conceituar a segurança pública, não é incomum surgirem dificuldades analíticas de compreensão de suas dimensões e desdobramentos, conforme o resumo das discussões de Costa e Lima (2014, p. 482):

[...] é um conceito frouxamente formulado e recepcionado na legislação brasileira e nas normas que regulam o funcionamento das instituições encarregadas de garantir direitos, ordem e tranquilidade. Não há consenso sobre o seu significado e as instituições não estão informadas por ele.

Nesse mesmo sentido, salienta Souza (2015, p. 58) que o termo segurança pública (SP) é complexo e mais ainda difícil de tratar no Brasil por falta de definição, inclusive, na legislação das agências encarregadas de prover segurança ao cidadão. A palavra segurança pode ser empregada em diversas acepções. Dentre elas, pode ser encarada como o ato ou efeito de segurar, de afastar um risco, ou o estado, qualidade ou condição de seguro, segundo Ferreira (1986, p. 1563), podendo também ser vista, segundo a Teoria das Necessidades de Maslow (1967), como uma necessidade básica humana que surge logo após a satisfação das fisiológicas.

Nesse último sentido, a pessoa humana sentir-se-á insegura, enquanto vivenciar uma incerteza, carecendo de proteção contra danos físicos e emocionais.

No âmbito da vida humana, a segurança nasce como instinto animal de conservação e se desenvolve no plano sociocultural sob vários aspectos, de maneira que, quanto mais o homem vence os desafios de sobrevivência na natureza

e expande de forma complexa a espécie no planeta, menos se pode assegurar a sua sobrevivência, tornando-se uma espécie vulnerável a si mesma (MOREIRA NETO, 1987 p. 9).

Enquanto estado, dando um sentido amplo dentro de suas diversas matizes, mas já voltado também à sociedade, para a Escola Superior de Guerra (BRASIL, 2009a, p. 59) a segurança “[...] é a sensação de garantia necessária e indispensável a uma sociedade e a cada um de seus integrantes, contra ameaças de qualquer natureza.”

Em prisma diverso, objetivamente, a segurança é a garantia relativa dada contra o que possa oferecer risco possível ou provável. Nessa acepção, estão implícitos os elementos: valor garantido (o quê), o autor da garantia (quem), o risco (contra o quê) e o fator de garantia, e o poder (com o quê) (MOREIRA NETO, 1987, p. 13).

Com base nos mencionados elementos, tendo como objeto a segurança pública, a ordem pública é o valor garantido; o Estado é o responsável por proporcionar essa garantia, enquanto detentor do uso de força nas sociedades organizadas; o risco é o contrário ao valor, a perturbação potencial ou concreta e criminalmente típica ou não, e o meio empregado para se evitar, reduzir ou eventualmente eliminar o risco ou apurar o dano, exercitar o poder de polícia (MOREIRA NETO, 1987, p. 14).

Ao contrário da ordem que é uma ideia estática, a segurança é a garantia dinâmica daquela. A segurança existe para assegurar a não violação da ordem e, logo, preservando-a, assegurar a existência da organização.

Assim, para Moreira Neto (1987, p. 16), a segurança pública “[...] é a garantia da ordem pública. Sendo uma atividade meio, ela se submete aos mesmos condicionamentos da ordem pública, que é sua finalidade, portanto deve ser legal, legítima e moral.”

A Escola Superior de Guerra (BRASIL, 2009a, p. 62) ainda conceitua segurança pública como a garantia para assegurar a ordem pública, a ser alcançada por meio de ações de defesa pública, sendo campo de aplicação do poder de polícia, enquanto expressão do monopólio da força que detém o Estado.

Ministério da Justiça (BRASIL, 2017a):

A Segurança Pública é uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei.

Com base nesses conceitos, dada a dificuldade de um consenso, reconhecendo suas faces objetiva e subjetiva, a segurança pública pode ser vista como a garantia da ordem pública oferecida pelo Estado, no exercício do monopólio da força, com a participação da sociedade, contra perturbação potencial ou concreta, criminalmente típica ou não, que abale a sua sensação de proteção e de cada um de seus integrantes, no intento de prevenir, minimizar ou eliminar o risco, ou apurar o dano causado, para viabilizar a organização do sistema social.