I. NOÇÕES TEÓRICAS PERTINENTES
1.2 Fórum de discussão do EAD – gênero ou suporte?
1.2.1 Conceituando o gênero
No Brasil, a teoria dos gêneros parece circular no meio acadêmico, com mais
frequência, a partir da publicação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) em
meados da década de 90 do século passado, conforme atesta Rojo (2005, p.184). Por
isso, ministrar aulas de línguas nas escolas por meio das noções de gênero chegou a
constituir modismo. Entretanto, esse tema vem sendo estudado desde a década de 60, no
diferentes linhas de Análise do Discurso.18 Isso posto, não podemos nos esquecer da
célebra afirmação de Bahktin: "Cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados" (BAKHTIN, 1979, p. 280), o que significa dizer
que toda comunicação é realizada por meio de um determinado gênero textual, seja oral,
escrito ou digital.
Neste trabalho, seguiremos a orientação de Marcuschi (2005, p.19), que aposta nos gêneros como “fruto do trabalho coletivo” e como instrumentos de ordenação e
estabilização das atividades comunicativas do dia-a-dia. Em outras palavras, encerra-se
a crença de que a comunicação se dá por meio de palavras ou frases, mas sim por meio
de gêneros textuais diferentes, que se adaptam às diferentes necessidades comunicativas
do homem.
Exatamente por essa mesma razão, Swales (1990) faz questão de apurar que essa
noção discursiva de gêneros não se refere à tradicional teoria de gêneros literários
(lírico, dramático e épico-narrativo, conforme a tradição escolar), mas a diferentes categorias de discurso: “Ainda hoje, a noção de gênero é usada para se referir a uma
categoria distinta de discurso de qualquer tipo, oral ou escrito, com ou sem aspirações literárias.”19
(SWALES, 1990, p.33)
Dessa forma, os gêneros apresentam-se como práticas sociodiscursivas
monitoradas pelo conhecimento linguístico do falante, em outras palavras, a escolha do
gênero é ancorada nas intenções dos interlocutores e no contexto. Ainda segundo
Marcuschi (2005, p.22), não há comunicação verbal que não emerja por meio de um
gênero. Logo, os gêneros são situados historicamente e traduzem, por isso, a realidade
social de determinada sociedade. É nesse sentido que Marcuschi (op.cit., p.20) advoga
18 Cf. Rojo (2005, p.184-236).
19 Original: “Indeed today, genre is quite easily used to refer to a distinctive category of discourse of any type, spoken or written, with or without literary aspirations.”
que “os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas
em que se desenvolvem.”.
A relevância do estudo de gêneros aponta para o fato de que a sua apropriação
parece-nos surgir como mecanismo fundamental de socialização e de inserção do
falante nas atividades comunicativas humanas. Por isso, os gêneros textuais operam
como forma de legitimação discursiva (cf. Bronckart, 1999, p.103). Assim, parece consensual o que Bonini (2001, p.8) afirma: “o fato de que a língua, do ponto de vista
de sua práxis, reflete, através do gênero principalmente, os padrões culturais e
interacionais da comunidade em que está inserida”.
Por essas e outras razões, estudiosos diversos propõem que o estudo dos gêneros
é fundamental para qualquer atividade discursiva (oral ou escrita). Swales (1990), por
exemplo, propõe uma visão integrada de gênero que engloba os participantes da
comunidade discursiva, os eventos comunicativos e as convenções socioculturais, cada
elemento convergindo na direção de uma mesma finalidade que, certamente, é o de
alcançar o propósito comunicativo pretendido. Assim, o autor chega à seguinte
definição:
Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Tais propósitos são reconhecidos pelos membros especialistas da comunidade discursiva de origem e, portanto, constituem o conjunto de razões para o gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e impõem limites à escolha do conteúdo e de estilo. (SWALES, 1990, p.58)20
20 “A genre comprises a class of communicative events, the members of which share some set of communicative purposes. These purposes are recognized by the expert members of the parent discourse community, and thereby constitute the rationale for the genre. The rationale shapes the schematic structure of the discourse and influences and constrains choice of content and style.” (SWALES, 1990, p.58)
Por sua vez, Marcuschi (2005, p.19) define os gêneros textuais como:
Entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. (…) Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes (…). (MARCUSCHI, 2005, p.19)
Destarte, surge, em Swales, outra relação bastante profícua: a de gênero e
comunidade discursiva. A partir do conceito de que os gêneros comportam-se como
entidades dinâmicas, passíveis de transformações de acordo com as condições sociais e
históricas em que são produzidos, além de importantes ferramentas de integração do
passado e do presente como construções históricas, os gêneros mantém certa
estabilidade, mas também evoluem de acordo com as necessidades de um mundo em
constantes mudanças. Por isso, é possível reconhecer que os gêneros situam-se no
âmbito de comunidades discursivas, nas quais são importantes as práticas e crenças de
seus membros, pois cada comunidade tem seus objetivos particulares e, desse modo, é a
própria comunidade que define quais são os gêneros relevantes para seus determinados
objetivos.
A noção de comunidade discursiva, para Swales (1990, p.54) tem a ver com
aqueles que usualmente utilizam determinado gênero e que, desse modo, têm maior
conhecimento de suas convenções. Portanto, dominar razoavelmente os gêneros que
determinada comunidade discursiva possui é uma das condições para dela fazer parte.
Swales (1998) define o conceito de “comunidade discursiva” como espaço de circulação
responsável pela (re)produção de um grande número de gêneros, os quais tem como
(2004), algum tempo depois, faz um adendo à noção de “comunidade discursiva” desenvolvendo o conceito de “comunidade de prática”, que designa um grupo de
pessoas que se unem em torno de um mesmo tópico ou interesse. Essas pessoas
pertencentes à comunidade de prática trabalham para encontrar meios de melhorar o que
fazem, ou seja, na resolução de um problema na comunidade ou no aprendizado diário,
através da interação.
Em outras palavras, fazer parte de determinada comunidade discursiva – a partir
da teoria dos gêneros – é manejar as convenções comunicativas e pragmáticas dessa
comunidade. Isso posto, minha experiência docente no EAD sugere que professores e
alunos só conseguem atingir os objetivos de um fórum de discussão quando entendem
não só os objetivos sociodiscursivos imanentes ao fórum, como também as convenções – institucionais ou não – que envolvem o fórum enquanto gênero textual.
Charaudeau e Maingueneau (2006, p. 108) afirmam, ainda, que essa comunidade de “fala restrita” organiza-se em torno da formação de discursos que parecem deixar em
segundo plano divergências de relacionamento ou de opiniões, uma vez que o
compartilhamento do mesmo discurso aplicado em gêneros comuns parece ser o que
define tal comunidade. No caso dos fóruns, temos um discurso acadêmico, oriundo de
uma comunidade discursiva acadêmica.
Nesse sentido, os fóruns de discussão ora analisados possuem um propósito
comunicativo bastante evidenciado na prática discursiva, que é a reflexão a respeito de
conteúdos ministrados ao longo da disciplina, em que o professor é o mediador
institucional, avaliativo, o especialista que tem por função provocar a discussão dos
coparticipante da construção coletiva de conhecimento, que se dá por meio da interação
e não apenas pela transmissão dos conteúdos.
Nesse momento, cabe uma observação importante no que tange à tradição na
classificação de algum texto enquanto gênero, que é exatamente a questão do propósito
comunicativo. Hemais e Biasi-Rodrigues (2005, p.118), com base na proposta
sociorretórica de John M. Swales, afirmam o seguinte:
O conceito de propósito comunicativo, em sua concepção original, é o critério privilegiado na definição de gênero, embasa o gênero e determina não apenas a sua estrutura esquemática, mas também as escolhas em torno de conteúdo e estilo. [...] Em 1990, Swales já discutia a dificuldade de identificar com precisão o conceito de propósito comunicativo, especialmente a dificuldade de identificar claramente o propósito de um exemplar de gênero. Ao reavaliar o problema, Askehave & Swales entendem que o propósito comunicativo é menos visível do que a forma, e portanto, dificilmente servirá como critério básico para a conceituação de um gênero. [...] os membros mais experientes exploram o gênero, manipulando os elementos de intenção, posicionamento, forma e função para as suas intenções pessoais, e o fazem dentro dos propósitos socialmente reconhecidos. (HEMAIS e BIASI-RODRIGUES, 2005, p.118).
Com base nessas palavras, reconheço que o propósito comunicativo do fórum
pode, via de regra, variar conforme os participantes ou até mesmo a partir do olhar de
diferentes papéis sociais. O aluno, por exemplo, pode enxergar no fórum uma
oportunidade de obter nota, em vez de construir conhecimento em coautoria com os
colegas e com o professor. No entanto, essas diferentes perspectivas no que tange ao
propósito discursivo do fórum não parecem afetar a sua constituição como gênero.
Assim, a partir dos autores abordados nesta seção, podemos propor que o fórum
i) Marcuschi (2005) : é fruto do trabalho coletivo, onde todos os participantes
constroem e reconstroem o texto, estabilizando a atividade comunicativa.
Além disso, é por onde a comunicação se realiza efetivamente entre esses
participantes, adaptando-se às suas necessidades comunicativas daquele
momento, naquele contexto;
ii) Swales (1990) : é uma categoria do discurso pedagógico-acadêmico,
desenvolvido por comunidades discursivas específicas com um propósito
comunicativo relativamente definido;
iii) Bronckart (1999) : é um mecanismo de socialização e de inserção dos alunos
juntamente com o professor, inserindo esses participantes na atividade
comunicativa;
iv) Bonini (2001) : reflete os padrões culturais e interacionais de uma geração cada
vez mais digital, onde a educação e suas abordagens vêm mudando
consideravelmente, a partir da migração – em certo sentido – para alguns
gêneros digitais.