I. NOÇÕES TEÓRICAS PERTINENTES
1.2 Fórum de discussão do EAD – gênero ou suporte?
1.2.2 Gêneros digitais – o hibridismo fala/escrita
Outra questão que vem à tona nesta tese é a que se refere ao fórum de discussão
enquanto gênero escrito, porém oriundo da oralidade – conforme a hipótese deste
híbrido. Por isso, faz-se relevante explorar essa questão, bem como a situação do fórum
enquanto gênero digital.
Marcuschi (2005, p.21) advoga que os gêneros textuais “Surgem emparelhados a
necessidades comunicativas e atividades socioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas”, tanto no que concerne à produção oriunda do surgimento da
escrita, como à ampliação dos gêneros dada pela “cultura eletrônica”, principalmente
após o advento dos computadores pessoais. Além disso, o autor enfatiza que a internet
configura-se como a aplicação mais notável da computação e, por meio dela, presencia- se uma “explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade
como na escrita.” (op.cit.)
É exatamente nesse contexto que o fórum de discussão se insere, principalmente
no que concerne ao hibridismo que esse gênero sugere. Cavalcanti (2012, p.1), por
exemplo, advoga que, no ambiente virtual, a comunicação apresenta elementos tanto da
modalidade escrita como da modalidade oral, o que se realiza de modo peculiar no
contínuo de gêneros na comunicação digital mediada por computador. Nesse sentido, os
participantes vão se entrosar mantendo – ou, ao menos, procurando manter – a
conversação em torno de um conjunto de referentes comuns que nos parece ser o foco
da interação verbal. Dessa forma, vamos agora verificar as características de ambas as
modalidades existentes no fórum de discussão, tal como aqui considerado. Desse modo,
algo bastante relevante acerca do estudo dos gêneros diz respeito à oralidade e à escrita,
ou seja, as duas modalidades da língua produzem gêneros textuais diversos, aplicados
na vida cotidiana a partir das mais diferentes situações e exigências comunicativas.
Aspecto central no caso desses e outros gêneros emergentes (gêneros digitais) é a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal. Em certo sentido, possibilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre oralidade e escrita, desfazendo ainda mais suas fronteiras.(Grifo nosso). (MARCUSCHI, 2005, p.21).
Apesar de o surgimento da escrita ter revolucionado as sociedades, isso não a
torna superior ou inferior à oralidade. Povos ágrafos não parecem incapazes de pensar, ou inferiores a outros que são letrados. Por outro lado, “[...] é irrefutável [...] (que) o
mundo em que vivemos não seria o que é, em todos os sentidos – econômico, político,
social e até, quiçá, biológico – se a escrita não houvesse sido inventada.”
(BITTENCOURT, 2006, p. 90). Todavia, é inegável que a escrita desenvolve gêneros
aparentemente mais complexos que a oralidade. Todas as pessoas, ainda que em
sociedades letradas, falam mais do que escrevem no seu dia a dia, por isso, a escrita
parece necessitar de maior expertise, ou letramentos específicos, por parte do usuário da
língua, a fim de que haja certo domínio desses gêneros textuais.
Assim, uma vez que a escrita fez surgir uma cultura letrada, tudo indica que a
informática – diretamente associada à internet – propaga uma cultura eletrônica, ou e-
cultura. Isso posto, a internet propicia várias formas de expressão, a partir de várias
linguagens, utilizando palavras, sons, cores, etc., aliadas à rapidez da veiculação das
diversas práticas sociais, tamanho o impacto das tecnologias digitais na vida moderna, o
que não é diferente com os nossos fóruns de discussão.
Mais uma vez, reportamo-nos à Marcuschi (2010, p.16) para enfatizar que:
Neste quadro, três aspectos tornam a análise desses gêneros relevante: (1) seu franco desenvolvimento e um uso cada vez mais generalizado; (2) suas peculiaridades formais e funcionais, não obstante terem eles contrapartes em gêneros prévios; (3) a possibilidade que oferecem de se rever conceitos tradicionais, permitindo repensar nossa relação com
a oralidade e a escrita. Com isso, o “discurso eletrônico” constitui um bom momento para se analisar o efeito de novas tecnologias na linguagem e o papel da linguagem nessas tecnologias. Aqui estão algumas reflexões de caráter epistemológico e metodológico para uma melhor compreensão do tema na perspectiva da teoria dos gêneros. (MARCUSCHI, 2010, p.16).
Entretanto, segundo o linguista, os gêneros emergentes nesse contexto, embora
variados, têm, em sua maioria, gêneros similares em outros ambientes provenientes
tanto da fala como da escrita, principalmente, se levarmos em conta o propósito
comunicativo. Para fins de exemplificação, o autor considera o e-mail e a carta
tradicional, que, segundo ele, são gêneros diferentes, embora o primeiro provenha do
segundo, pois nasce com os mesmos fins comunicativos, porém ancorados em
suportes21 diferentes. Por isso, o linguista propõe o seguinte quadro (2010, p. 37):
GÊNEROS TEXTUAIS EMERGENTES NA MÍDIA VIRTUAL E SUAS CONTRAPARTES EM GÊNEROS PRÉ-EXISTENTES
Gêneros emergentes Gêneros já existentes
1 E-mail Carta pessoal // bilhete // correio
2 Bate-papo virtual em aberto Conversações (em grupos abertos?) 3. Bate papo virtual reservado Conversações duais (casuais) 4 Bate-papo ICQ (agendado) Encontros pessoais (agendados?) 5 Bate-papo virtual em salas privadas Conversações (fechadas?) 6 Entrevista com convidado Entrevista com pessoa convidada
7 Aula virtual Aulas presenciais
8 Bate-papo educacional (Aula participativa e interativa???) 9 Vídeo-conferência Reunião de grupo/ conferência / debate
21
10 Lista de discussão Circulares/ séries de circulares
11 Endereço eletrônico Endereço postal
Quadro 1: Gêneros textuais emergentes na mídia virtual e suas contrapartes em gêneros pré- existentes. (MARCUSCHI, 2010, p.37)
O paralelo visto no quadro acima aponta para o estudo dos gêneros digitais, uma
vez que a cultura eletrônica parece, a cada dia, adquirir papel cada vez mais relevante na
vida cotidiana. Essa relevância se acentua se considerarmos os smartphones, tablets e
outros suportes eletrônicos, que trazem consigo novas formas de comunicação e,
consequentemente, novos gêneros textuais, como por exemplo os tuites, mensagens de
até 140 caracteres da rede social Twitter, que podem promover informações, convites,
reportagens, fatos cotidianos etc., sem contar o hoje muito popular Whatsapp, aplicativo
de troca de mensagens instantâneas via smartphones. Além disso, não se pode negar que
toda essa questão modifica a noção que se tem de interação social, uma vez que
consegue alcançar mais e mais pessoas de uma só vez.
Se voltarmos à nossa hipótese de fórum como gênero híbrido, torna-se relevante
verificar que relações tal gênero possui com a oralidade. Nesse sentido, Marcuschi
(1986, p.15) lista cinco características básicas para a organização elementar da
conversação, que listaremos abaixo, cada qual seguida de um comentário acerca de sua
implicação para o fórum de discussão.
a) Interação entre pelo menos dois falantes – no fórum de discussão é
construído, necessariamente, a partir de, ao menos, dois participantes, aluno
b) Ocorrência de pelo menos uma troca de falantes – no fórum, toda postagem
do aluno requer uma postagem do professor em resposta;
c) Presença de uma sequência de ações coordenadas – as postagens no fórum
são em sequência temporal. As trocas de turno ocorrem quando uma nova
postagem é publicada;
d) Execução numa identidade temporal – mesmo que de forma assíncrona22, o
professor responde aos alunos em até 48h uteis, e os alunos possuem um
prazo institucionalmente estabelecido para realizar suas participações;
e) Envolvimento numa interação centrada – os assuntos são provenientes das
aulas ministradas em cada disciplina e moderados pelo professor.
Outro ponto importante da proposta de Marcuschi (op.cit.) e que pode ser
facilmente aplicado ao fórum, diz respeito à distribuição de turnos num esquema linear
sequenciado, que Cavalcanti (2012) esquematiza da seguinte forma:
A: fala e para;
B: toma a palavra, fala e para; A: retoma a palavra, fala e para; B: volta a falar e para.
22 Cabe-nos reiterar aqui que os fóruns de discussão aqui analisados não possui sincronismo, ou seja, trata-se de um modelo assíncrono de fórum, onde as postagens podem receber resposta do professor em até 48h uteis, por orientação institucional. Isso, todavia, parece-nos um pouco diferente de sua contraparte oral, além da ausência de elementos paralinguísticos como gestos, olhares, hesitações, etc.
Essa regra funciona de forma estável nas participações de alunos e professor nos
fóruns de discussão aqui analisados. O professor ou algum aluno posta algo e para,
esperando um comentário (fala e para); a seguir, alguém toma a palavra, seja em
resposta a alguém ou realizando uma nova postagem e aguarda a interação de alguém
(toma a palavra, fala e para); alguém que já tenha postado algo pode retomar a palavra,
realizando uma espécie de tréplica, dando continuidade a determinada discussão
(retoma a palavra, fala e para e volta a falar e para), tal como se vê na categorização de
Marcuschi.
No caso dos fóruns de discussão aqui analisados, reafirmo ser a contraparte
digital, eletrônica, dos fóruns de discussão que ocorrem desde a antiguidade, ou seja,
um lugar de discussões, debates, reflexões acerca de temas condizentes àquela
comunidade discursiva.
Em contrapartida, Marcuschi (2010) salienta que um dos desafios, neste novo
contexto, vem sendo a noção de comunidade virtual (CV). Segundo o autor:
[…] uma espécie de agregado social que emerge da rede internetiana para fins específicos. Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns em um dado momento, formando uma rede de relações virtuais. (MARCUSCHI, 2010, p. 24)
No que concerne ao EAD, os interesses dos participantes são cada vez mais
comuns e compartilhados, não só pela grande interatividade por meio dos diversos
suportes e gêneros do ambiente virtual de aprendizagem, como também pela
possibilidade que a internet fornece a esses participantes de se comunicarem por vias
discussão na rede social Facebook, por exemplo, fazendo com que a comunicação entre
eles ocorra para além dos limites do ambiente virtual de aprendizagem institucional.
No entanto, o próprio linguista (MARCUSCHI, 2010) sugere uma mudança de
ênfase, no sentido de que devemos considerar essas comunidades no que tange, mais
especificamente, ao gênero textual, para “melhor entender esse tipo de discurso”
(Marcuschi, 2010, p.24). Caso contrário, comunidades virtuais confundir-se-iam com comunidades sociais do mundo real, com suas “projeções discursivas”, o que nos parece
ainda mais condizente com a afirmação de que o fórum de discussão abordado neste
trabalho seja um gênero textual digital.
Autores como Dantas (2006) e Crystal (2006) defendem ainda que há uma
tendência de que os gêneros digitais promulguem uma nova modalidade, híbrida, da
língua, ou seja, com características e marcas próprias, advindas tanto da oralidade como
da escrita. Isso acontece não só pela linguagem geralmente mais fluida, informal, da
internet, mas também por conta desse imbricamento entre oralidade e escrita nos
gêneros digitais.
Souza (2010) vai além e advoga a existência de um discurso oral, um discurso
escrito e um terceiro discurso: o eletrônico. E isso só é possível, segundo o autor, por
conta da ampla gama de recursos comunicativos que a internet nos coloca à disposição. Assim, o autor conclui que “O discurso eletrônico, longe de ser uma subversão radical
das convenções de uso da língua, talvez seja na verdade um composto de reproduções
em um meio ainda predominantemente escrito de elementos comunicativos normais no discurso oral.” (op.cit., p.40).