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Fazendo uma distinção entre magia e religião, poderemos chegar a um conceito que magia não é religião. Não se acredita em magia do mesmo modo que se crê numa religião, não se pratica magia do mesmo modo que se segue uma religião. Segundo Pierucci (2001, p. 83) a magia tem a ver com resultados tópicos e parciais. Além de limitado, os resultados desejados costumam ser avulsos, sem constituir sistema unitário. E, além de limitados e avulsos, devem ser de ordem material, ou temporal. Oferecendo milagres a magia deve servir para melhorar a vida “aqui e agora”, não no “outro mundo”; no futuro, só se for o imediato, jamais na “vida eterna”.

Muito mais sublimada e espiritualizada que a magia, a religião caracteriza-se por alçar vôos mais ousados: promete a salvação eterna, a paz espiritual, o bem-estar geral. Por isso a religião se dedica a especulações metafísicas em torno dos últimos interesses - os últimos valores, os sentidos definitivos, os acontecimentos finais -, voltada que está para o “outro mundo”, o “outro lado”, a “outra vida”, o Além, o Absoluto, o Princípio e o Fim. Enquanto a

religião protela, a magia é imediatista. A religião está referida a sistemas de compensadores genéricos baseados em pressupostos sobrenaturais, enquanto a magia se refere a compensadores específicos que prometem promover aqui e agora as recompensas desejadas (Ibid., p. 83).

O ritual mágico é ação racional-utilitarista, que tem em vista um fim muito bem delineado. Não há prática mágica que seja um fim em si mesma. E, no entanto, é isso que se passa com as práticas religiosas: elas são fins em si. Um ritual realizado para evitar a morte de um bebê durante o parto é totalmente diferente, quanto ao fim visado, de um rito que celebra o nascimento de uma criança. O primeiro é um ritual mágico; o segundo, um ritual religioso. Os praticantes do primeiro agem em função de uma finalidade extrínseca ao ato – assegurar a sobrevida daquela criança -, ao passo que o segundo não tem outro propósito a não ser comemoração enquanto tal, a confraternização, um ato social. A celebração religiosa contém em si sua própria finalidade, é a expressão não-utilitária de sentimentos e credos compartilhados por toda uma comunidade religiosa (Ibid., p. 84).

A relação do mago com as pessoas que o procuram é uma relação profissional/cliente. Também de natureza utilitária. Já o mundo da religião se caracteriza em termos ideais pela relação duradoura pastor/rebanho, sacerdotes/fiéis ou profeta/seguidores. O especialista em magia e seu cliente desempenham suas atividades como sujeitos privados e socialmente desencaixados, não como membros de um grupo ou, menos ainda, como seus representantes. É nesse sentido que Durkheim postulou ser a magia incapaz de formar uma igreja: “Não existe igreja mágica. [...] O mago tem cliente, não igreja” (Durkheim, 1989, p. 76).

O ritual religioso é serviço divino; o ritual mágico é coação divina. Eis a característica diferenciadora decisiva: o modo de relacionamento com o sagrado. Escreveu Weber:

Um poder concebido de algum modo por analogia com o homem dotado de alma pode ser forçado a estar a serviço dos homens: quem possui o carisma de empregar os meios adequados para isto é mais forte até mesmo que um deus, e pode impor a

este sua vontade. Neste caso, a ação ritual não é serviço ao deus, mas sim coação sobre o deus; a invocação não é uma oração, mas uma fórmula mágica. (1991, p. 292).

O mago ou o feiticeiro não se preocupa em aplacar a cólera dos deuses ou atrair para si seus favores – ele procura coagi-los. Dizer que o traço diferencial decisivo da magia é a coação divina é dizer que a atitude da magia em relação aos poderes divinos é manipulativa e instrumentalizadora, ao passo que a relação religiosa com o divino é de respeito, obediência e veneração (Pierucci, 2001, p. 85). A essência da magia é a dominação dos poderes supra- sensíveis, ao passo que a essência da religião é o abandono, a entrega de si, o obséquio, a submissão à sua soberana vontade. As religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islã – levam isso ao pé da letra. Não é à toa que, em árabe, a palavra íshlam quer dizer justamente “submissão” (Gaarder, 2000, p. 118).

A religião, noutras palavras, é o conjunto de práticas que nos permitem motivar os seres supra-sensíveis, dotados não apenas de poderes sobre-humanos, mas também de personalidade e vontade livre, enquanto a magia transforma os deuses em escravos do homem. Convoca-os e controla-os autoritariamente em função do objetivo visado pelo cliente pagante. Ela não ora nem suplica; submete-os ao poder da fórmula mágica (Pierucci, op.cit., p. 86).

Religião e magia diferem ainda quanto à garantia do efeito desejado. Na religião, o pedido feito em oração depende de a divindade aceitar ou não a solicitação ou a homenagem. Já no magismo, o efeito só depende de o agente seguir à risca o ritual e pronunciar corretamente a fórmula. Isso, aliás, é o mínimo que se pede de um bom profissional da magia. Todas as vezes, portanto, que, em vez de prostrar-se para suplicar um favor aos céus, o agente dito religioso exigir de um deus ou de um santo o efeito sobrenatural pretendido, podendo por isso prometer com segurança que o efeito buscado fatalmente se dará, estaremos diante de um

ato de magia, não de religião. Promessa de efeito garantido é promessa de feiticeiro. Essa forma autoritária de abordar os deuses e espíritos, sabendo-se fatídico o efeito da fórmula, será sempre magia, mesmo que ocorra como parte de um ritual reconhecidamente religioso (Ibid., p. 86).

No terceiro capítulo, no qual abordaremos a questão de magias populares ou milagres institucionalizados, trabalharemos com a hipótese da existência de uma tensão entre elas. Portanto, não só as definições como os depoimentos realizados nos darão por antecipação subsídios para desenvolvermos algumas análises que nos mostre a possibilidade de que mesmo com a existência de um sincretismo religioso, é possível uma harmonia social, pois todas essas diferenças estão sobre uma tolerância religiosa, uma tolerância religiosa popular e institucional.

1.2 O simbolismo religioso

Porque a religião liga humanos e divindades, porque organiza o espaço e o tempo, os seres humanos precisam garantir que a ligação e a organização se mantenham e sejam sempre propícias. Para isso são criados os ritos, que segundo a definição de Chauí (2002, p. 134- 135):

É uma cerimônia em que gestos determinados, palavras determinadas, objetos determinados, pessoas determinadas e emoções determinadas adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Para agradecer dons e benefícios, para suplicar novos dons e benefícios, para lembrar a bondade dos deuses ou para exorcizar sua cólera, caso os humanos tenham transgredido as leis sagradas, as cerimônias ritualísticas são de grande variedade. No entanto, uma vez fixada a simbologia de um ritual, sua eficácia dependerá da repetição minuciosa e perfeita do rito, tal como foi praticado na primeira vez, porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras dos humanos. Um rito religioso é repetitivo em dois sentidos principais: a cerimônia deve repetir um acontecimento essencial da história sagrada (por exemplo, no cristianismo a eucaristia ou a comunhão que repete a Santa Ceia); e, em segundo lugar, atos, gestos, palavras, objetos devem ser