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CAPÍTULO 2 ENSINO DE CIÊNCIAS: O QUÊ? PARA QUÊ? POR QUÊ?

2.1. Concepção de Ciência e Ensino de Ciências

Analisando a evolução da Filosofia da Ciência e do EC é possível perceber a influência da primeira no desenvolvimento das idéias sobre como deve ocorrer o segundo (VILLANI, 2001). Embora não haja consenso sobre a NC, serão abordadas aqui duas concepções de Ciência amplamente discutidas na literatura e suas influências sobre o EC: a concepção tradicional e a concepção de Ciência como construção humana.

De acordo com Garcia, Cerezo e López (1996a), em uma concepção tradicional, proveniente do positivismo lógico, a Ciência compreende uma atividade autônoma, neutra, objetiva e benéfica à humanidade, que, através dos passos precisos do método científico, gera teorias científicas verdadeiras, em um processo progressivo e acumulativo. Nessa concepção, o processo de acumulação de conhecimento não é condicionado por fatores externos (sociais, políticos, psicológicos, etc.) e gera progressos tecnológico, econômico e social.

A concepção tradicional de Ciência deu origem à chamada ideologia cientificista, que compreende a atividade científica como algo que descobre a natureza real das coisas, com pouca chance de erro. O conhecimento científico é compreendido como a única forma de conhecimento válida e a Ciência como a via capaz de conduzir a humanidade ao progresso. Os cientistas são vistos como pessoas sábias, ideais para assessorar o governo nas decisões de assuntos públicos, e distantes do povo, que, devido à sua ignorância, não deve participar das decisões políticas. Essa ideologia, que imperou durante o século XIX, chegando até os nossos dias, influencia o EC, fazendo com que a Ciência seja ensinada de modo dogmático, ou seja, os alunos devem apreender o conteúdo científico como algo inquestionável (GARCIA, CEREZO E LÓPEZ, 1996a; MORAIS, 2007).

Todavia, diversos acontecimentos vêm contribuindo para o questionamento dessas idéias e diversos autores têm se dedicado a esse tema. O lançamento das bombas nucleares no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial e os problemas ambientais associados ao desenvolvimento científico e tecnológico, suscitaram preocupações quanto aos usos do conhecimento científico e tecnológico,

bem como a sua neutralidade política, social e econômica (GARCIA, CEREZO E LÓPEZ, 1996b). Percebeu-se a necessidade de promover a alfabetização científica da população, ou seja, fazer com que a população tivesse acesso ao conhecimento científico e tecnológico, para que essa pudesse exercer controle sobre a atividade científica (SHAMOS, 1995).

Da mesma forma, a palestra “As duas culturas” proferida pelo físico e novelista Charles P. Snow, em 1959, na Inglaterra, questiona a ideologia cientificista. Ele denunciou a profunda desigualdade social que estava se instalando entre os que tinham acesso ao desenvolvimento científico e tecnológico e os que não o tinham. Clamou por mudanças na educação para reverter essa situação e chamou a atenção para que o conhecimento científico e tecnológico fosse utilizado para a promoção de bem-estar da humanidade. Para Snow (1995), a exagerada especialização da educação científica gerava um distanciamento entre cientistas (detentores de conhecimento científico) e literários (conhecedores do ser humano), desperdiçando o potencial de pensamento e criação que o entendimento entre eles poderia proporcionar para a solução do problema.

A publicação das idéias de Thomas Kuhn, em 1962, gerou uma verdadeira revolução na Filosofia da Ciência (GARCIA, CEREZO E LÓPEZ, 1996b). Para Kuhn (2007), na evolução da Ciência há períodos de vigência de paradigmas que se intercalam com períodos de revoluções científicas, em que ocorrem substituições dos paradigmas vigentes. A permanência ou substituição de paradigmas depende de um consenso da comunidade científica. Segundo Garcia, Cerezo e López (1996b), as idéias de Kuhn colocaram o conhecimento científico como algo passível de questionamento, uma vez que a aceitação das teorias passou a ser vista como algo dependente de consenso entre os cientistas e não como uma verdade comprovada através do método científico.

Em 1965, ocorreu a Conferência Internacional sobre Filosofia da Ciência em que foram debatidas a natureza e as características da evolução científica. Destaca-se a participação de Kuhn, Popper, Lakatos e Feyerabend. Mesmo havendo discordâncias entre esses filósofos, suas teses influenciaram os movimentos na área de EC, que acabaram questionando os programas de ensino da época, que visavam o treinamento científico dos estudantes (VILLANI, 2001). Esses programas, que se baseavam na concepção tradicional de Ciência, foram iniciados

nos Estados Unidos, durante o período de Guerra Fria, no intuito de formar cientistas para vencer a corrida pelo desenvolvimento tecnológico e garantir a hegemonia norte-americana. Os Estados Unidos investiram maciçamente para promover mudanças no currículo escolar, lançando os projetos Biological Sciences Curriculum Study - BSCS, Physical Science Study Committee - PSSC e Chemical Educational Material Study - CEMS, para as áreas de Biologia, Física e Química, respectivamente (SHAMOS, 1995; KRASILCHIK, 2000). Esse movimento também teve influências em outros países, como o Brasil, que buscava formar cientistas para impulsionar o desenvolvimento da Ciência e tecnologia, possibilitando o crescimento industrial do país (KRASILCHIK, 2000).

Todos esses acontecimentos e outros que geraram problemas sociais, econômicos e ambientais relacionados ao progresso científico e tecnológico, provocaram reações contra o modelo de desenvolvimento científico e tecnológico vigente, e conseqüentemente, sobre o EC. Assim, no início da década de 1970, surgiu o movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que defendia a implementação de currículos que relacionassem ciência, tecnologia e sociedade (GARCIA, CEREZO E LÓPEZ, 1996b). Para Santos e Mortimer (2002), o currículo com ênfase em CTS possibilita conscientizar os estudantes sobre a NC como atividade passível de críticas, influenciada pelo contexto social e em constante construção. Esses autores defendem que se deve partir de problemas sociais relacionados à Ciência e à tecnologia para se estudar conceitos científicos, possibilitando a percepção das interações entre Ciência, tecnologia e sociedade e desenvolvendo habilidades e valores importantes para capacitar os alunos a tomar decisões conscientes, exercendo a sua cidadania com responsabilidade.

A busca pela superação da concepção tradicional sobre a NC tem valorizado os estudos sobre HFC, que apresentam a Ciência como uma construção humana. Fourez (1995b) aponta que a visão de Ciência pode ser desmistificada através de uma análise crítica, que permite compreender a dimensão histórica das práticas científicas, assim como de outras realizações humanas tais como a arte ou as técnicas. Ele afirma que: (a) observações são construções humanas; (b) modelos provêm de idéias anteriores; (c) cientistas utilizam uma lógica pragmática e histórica para decidirem rejeitar ou conservar determinados modelos; (d) o ser humano faz parte do método científico, já que este passa por processos sociais, como contratos,

subsídios, alianças sociopolíticas, gestão de equipes, etc. Assim, para este autor, a Ciência representa apenas uma maneira, socialmente reconhecida, de resolver nossas relações como o mundo.

Fourez (1995b) considera que o reconhecimento social da Ciência gera apoio econômico, poder social e prestígio para os cientistas, que acabam sendo considerados as pessoas capacitadas para opinarem em decisões importantes para a sociedade. Entretanto, ele os vê como um grupo não neutro e desinteressado, que tende a comungar dos interesses das organizações sociais com as quais se aliam, por identificação ou por necessidade de financiamento para suas pesquisas. Para esse autor, o processo de formação dos cientistas faz com que eles não reflitam sobre as implicações sociais de seu trabalho, separando o lado humano da prática profissional científica, conforme denunciado por Snow, em 1959. Concordando com esse autor, Fourez (1995a) defende a inclusão da filosofia da Ciência em cursos de formação de cientistas para que eles possam refletir sobre as implicações sociais de suas práticas profissionais, unindo prática profissional e humanidade, para dar sentido às mesmas.

Concordando com as idéias de Fourez, Morais (2007) entende a Ciência como “uma das vozes da cultura”, uma vez que considera a cultura uma trama simbólico-factual que caracteriza o modo de vida da sociedade e a Ciência como um dos recursos de simbolização do ser humano, que contribui para a construção dessa trama. Para compreender a complexa NC, o autor defende ser necessário discutir os fatores que influenciam a atividade científica, superando idéias extremistas como as do cientificismo, que criaram o “mito da ciência”, ou por outro lado, como as que afirmam que as atividades científicas são totalmente condicionadas por fatores socioculturais.

Existe também um apelo para a incorporação da idéia de humanização da Ciência no currículo escolar. A compreensão da Ciência como uma atividade humana, histórica, é apresentada como um dos objetivos do Ensino de Ciências Naturais nos PCN, assim como a identificação das relações entre Ciência, tecnologia e sociedade e a utilização dos conhecimentos científicos e tecnológicos para o exercício da cidadania (BRASIL, 1998b). Atualmente, entende-se que os objetivos da aprendizagem de Ciências vão muito além do domínio de conceitos científicos, objetivando instrumentalizar os alunos para que, baseados no

conhecimento científico, possam participar das discussões e decisões sobre ciência e tecnologia, contribuindo para o exercício de sua cidadania (SANTOS e SCHNETZLER, 1998; SANTOS E MORTIMER, 2002). Mais que aprender os conceitos científicos (alfabetização científica), espera-se que os estudantes atinjam o letramento científico, para serem capazes de fazer uso social do conhecimento científico (SANTOS, W., 2007). O letramento científico é entendido como aquele que vai “desde o letramento no sentido do entendimento de princípios básicos de fenômenos do cotidiano até a capacidade de tomada de decisão em questões relativas à ciência e tecnologia em que estejam diretamente envolvidos, sejam decisões pessoais ou de interesse público” (SANTOS, W., 2007, p.480).

Para a formação de cidadãos, é importante também o aprendizado de como o conhecimento científico é produzido. A reflexão sobre a natureza do processo científico, seus métodos, suas relações com os condicionantes sociais, suas conseqüências no nosso dia-a-dia conduz o aluno a um posicionamento crítico em relação à atividade científica, que pode habilitá-lo para o pleno exercício da sua cidadania (SILVA; GASTAL, 2008). A inclusão da HFC no currículo escolar tem sido indicada na literatura para contribuir para o alcance desses objetivos e é discutida na seção 2.4.