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1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

2.1 A dignidade da pessoa humana

2.1.2 Concepção inatista x Concepção multiculturalista

O primeiro passo, portanto, para se fixar uma noção fundamentada de dignidade é admitir se tratar de uma qualidade integrante da pessoa. Logo, impossível que se retire da pessoa a dignidade, sob pena de se estar removendo parte do próprio conceito de pessoa. Nestes termos, a dignidade está “[...] compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana [...]”.260

Trata-se, como se vê, de atributo que decorre da condição humana e torna o ser humano credor de respeito e consideração recíprocos por parte de seus semelhantes.261

Tal constatação, aliás, permite inferir que a dignidade não é criação do Direito, de modo que não depende do mesmo para ser reconhecida, sendo, antes, dado prévio ao sistema jurídico262, ao qual cabe, apenas, seu reconhecimento e proteção.

No entanto, a adoção do significado da dignidade como elemento integrante do ser humano vai de encontro às posições doutrinárias que se orientam pela multiculturalidade. Cria-se uma dualidade conceitual reconhecível pelo conflito: inatistas x multiculturalistas.

Enquanto de um lado os inatistas entendem que a dignidade é qualidade integrante da pessoa humana, de outro, os multiculturalistas lecionam que a dignidade é fruto da evolução cultural de um povo263 em um dado local e momento histórico.

A tese multiculturalista parte da noção de que a dignidade não transcende ao direito posto de um Estado sendo, antes, criação do mesmo. Os defensores de tal corrente pretendem comprová-la indagando sobre exemplos de atrocidades praticadas contra seres humanos, as quais são, naquele espaço-tempo, aceitos e estimulados pela sociedade local.264

Sem pretender aprofundar na presente discussão, a qual não constitui cerne desta pesquisa, mas, apenas com a finalidade de esclarecer o ponto levantado, basta a análise de três exemplos para ilustrar o questionamento levantado pela corrente cultural. Basta se cogitar dos exemplos de escravidão presentes ao longo da história, do exemplo da mutilação sexual das mulheres africanas, as quais tem o seu clitóris removido para não ter prazer na relação sexual,

259 ANDRADE, André Gustavo Correia de. Op. cit, p. 4 260 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit, p. 42

261 ANDRADE, André Gustavo Correia de. Op. cit, p. 2 262 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit, p. 42

263 Ibid, p. 46 264 Ibid, p. 56

e o exemplo das mulheres muçulmanas que sofrem castigos corporais dependendo do comportamento adotado.

Em todos estes casos, como se justifica que a dignidade da pessoa humana seja um valor inato se a tal valor é diuturnamente desrespeitado, inclusive, com consenso social?

Em defesa da corrente inatista é possível formular uma resposta de ordem hermenêutica à presente indagação. É que, embora a dignidade seja universal e, portanto, inata ao ser humano, tal disparidade no seu reconhecimento estaria a cargo da interpretação de quais condutas sejam consideradas ofensivas à dignidade da pessoa.265

Adepto da corrente inatista posiciona-se Dallari266, para quem a dignidade é valor universal que independe de diversidades sócio-culturais de quaisquer povos, vez que todas as pessoas são iguais em direitos e deveres, bem como detentoras das mesmas necessidades vitais.

No mesmo sentido é a posição de André Gustavo Correa de Andrade267 ao lecionar que “a dignidade é composta por um conjunto de direitos existenciais compartilhados por todos os homens, em igual proporção.” E ainda adverte: “A dignidade não é algo que alguém precise postular ou reivindicar, porque decorre da própria condição humana.”

Ainda na mesma linha adverte Rizzatto Nunes que a dignidade nasce com o indivíduo, é-lhe inerente, é característica que faz parte da essência humana, não se admitindo posições que adotam relativismo conceitual acerca da dignidade.268

A universidade do valor dignidade, aliás, prova-se pelo fato de que o homem continua a merecer a tutela da dignidade ainda quando seu ciclo vital tenha se encerrado.269

Nestes termos, a dignidade seria, realmente, valor inato. A justificativa para as atrocidades exemplificadas não estaria plasmada no fato de que naquelas sociedades não se admite ou se protege a dignidade da pessoa humana, mas pelo fato de que tais condutas não foram consideradas como ofensivas a tal valor intrínseco do ser humano.

Ademais, ainda que se pudesse argüir que naquelas sociedades não se protege a dignidade, tal suposto não seria suficiente para infirmar a própria universalidade de tal valor. Acaso a escravidão foi capaz de afastar infirmar a existência do valor liberdade? Claro que não. Tanto que com o passar dos anos reconheceu-se que tal conduta violava o valor liberdade.

265 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit, p. 56 266 Direitos Humanos e Cidadania. p. 8 267 Op. cit, p. 3 e 13

268 Op. cit, p. 49

O mesmo está ocorrendo com a dignidade. Não se trata de afastar sua existência nas sociedades em que há condutas que provocam sua violação. Cuida-se, antes, de aguardar o evoluir do pensamento de tais povos de modo a perceberem que tais condutas violam a dignidade.

Corroborando a posição inatista, adverte Gonçalves Loureiro que a dignidade da pessoa humana configura-se em “[...] obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao florescimento humano.”270

O que se pode admitir com a tese multiculturalista é uma variação do conceito de dignidade. Mas, nunca, uma aceitação de que a diversidade cultural seja capaz de infirmar um valor tão fundamental para a ordem jurídica mundial.

Nestes termos, pode-se admitir, com a tese multiculturalista, que as diversidades comportamentais nos diferentes “Estados soberanos” demonstram uma ligação entre o fator cultural e a noção de dignidade271 que informa um dado povo.

Desta feita, o aspecto cultural permite que o conceito de dignidade seja variante de acordo com os comportamentos aceitáveis em cada sociedade.272 Isto, contudo, não leva, necessariamente, ao entendimento de que, simplesmente por uma questão de conceito cultural, um valor inato deveria ser considerado suprimido.

É importante, contudo, frisar que “Essas diferenças, porém, não eliminam o caráter universal da idéia de respeito à dignidade humana ou da existência de um direito inato da pessoa de ser tratada dignamente.”273