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4.2 DESENVOLVIMENTO EPISTEMOLÓGICO DA CULPABILIDADE

4.2.1 Concepção psicológica

A base da teoria psicológica da culpabilidade inicia-se no período iluminista, com Francesco Carrara, representante da Escola Clássica, e tem sua concretização com o positivismo. Carrara (1877) entendia que o crime era um ente jurídico que relacionava o fato e a lei vigente, sendo que o impacto entre o fato e a lei civil construía a criminalidade da ação. O crime caracterizava-se pela constatação de dois aspectos, um de ordem objetiva e outro de ordem subjetiva. Francesco Carrara (1877, p. 14) explica que

sabemos que en el delito perfecto la fuerza moral deriva de la intención, así como la fuerza física procede del acto externo prejudicial. También en el delito imperfecto su fuerza moral nace de la intención, pero en la tentativa falta el efecto dañoso que la convertirla en delito consumado.

A força física correspondia à realização do movimento corpóreo capaz de produzir uma alteração no mundo sensível, enquanto que a força moral representava a culpabilidade do agente, composta por quatro elementos: conhecimento da lei, previsões dos efeitos, liberdade de eleger e vontade de agir (CARRARA, 1877).

Dessa maneira, a culpabilidade inicia uma análise de vinculação subjetiva entre o autor e o resultado.

Anselm von Feuerbach, defensor assíduo do princípio da legalidade, asseverava que a lei deveria ater-se apenas a condutas humanas, afastando a possibilidade de punição pelo “comportamento interno do agente”. Da mesma maneira que Francesco Carrara (1877), dividia o crime em estrutura objetiva e subjetiva. A primeira correspondia à “ação externa antijurídica” e a segunda, ao “desejo antijurídico do agente”, que representava a culpabilidade. O autor inovou ao exigir a consciência da antijuridicidade e da punibilidade da conduta para que fosse possível a punição. Esse postulado contribuiu para o desenvolvimento da teoria normativa da culpabilidade (TAVARES, 1980, p. 13).

No final século XIX e início do século XX, o método positivista passa a exercer grande influência sobre todos os ramos da ciência. Inspirados pelas obras de Spencer, Comte e Darwin, seus seguidores acreditam que por meio do empirismo, da capacidade intelectual do homem e da razão seria possível alcançar o desenvolvimento social. Acreditava-se que a divisão do objeto era necessária para obter o conhecimento do todo. Por isso, conforme relata Nunes (2012), ao definir a teoria do delito, Liszt divide-a em aspectos objetivos e subjetivos. A tipicidade e a antijuridicidade formam os elementos objetivos, enquanto que a culpabilidade compreende os elementos subjetivos.

Conforme exposto no capítulo anterior, a partir do conceito de crime, Liszt (2006) desenvolve sua teoria do delito. Conceitua o crime como ação culposa, contrária ao direito, que realiza a conduta tipificada e ameaçada com sanção pelo direito penal. Extrai desse raciocínio os elementos integrantes da teoria geral do crime, quais sejam: a) ação; b) ação contrária ao direito; c) ação culposa. A ação é composta por dois elementos, vontade e resultado, e a antijuridicidade representa a ação contrária ao direito.

O último elemento definido por Liszt (2006) é a culpabilidade. No âmbito dessa categoria, ele desenvolveu a teoria psicológica da culpabilidade, importante para a coerência de sua teoria do delito. Por meio da teoria psicológica, buscou elementos para afastar a responsabilidade objetiva adotada pelo direito penal. Para o autor, a

responsabilização penal necessitava de uma verificação além do nexo objetivo entre a conduta e o resultado. Era necessário um vínculo subjetivo para que o resultado fosse atribuído ao agente criminoso. Liszt (2006, p. 194) busca essa relação subjetiva no conceito amplo de culpa, afirmando que

o injusto criminal, como o delito civil, é ação culposa. Não basta que o resultado possa ser objetivamente referido ao ato de vontade do agente; é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva. Culpa é a responsabilidade pelo resultado produzido.

A teoria desenvolve-se da ideia de responsabilidade pela conduta ilícita e seu fundamento está na conduta antissocial adotada pelo indivíduo. A culpa lato sensu, elemento subjetivo do delito capaz de responsabilizar o agente criminoso, foi inserida por Liszt (2006) na culpabilidade. Por isso, sua teoria da culpabilidade foi denominada psicológica.

Ao estruturar a categoria dogmática da culpabilidade segundo a teoria psicológica, esse autor nela inseriu os seguintes elementos: imputabilidade do agente (imputabilidade) e imputação do resultado. A imputabilidade refere-se ao homem mentalmente desenvolvido e são, não tendo a ver com livre arbítrio; é o elemento que verifica se o agente possuía, no momento da ação, o discernimento necessário para a compreensão do caráter delituoso do fato. A imputabilidade deveria existir no momento do crime, não importando sua condição psíquica após a realização do resultado. O segundo elemento, a imputação do resultado, estaria presente na conduta quando o resultado fosse previsto (dolo) ou quando o resultado, ainda que não previsto, pudesse sê-lo (culpa em sentido estrito) (LISZT, 2006).

O dolo e a culpa eram formas de culpabilidade e faziam parte do mesmo conceito. Eram as duas modalidades possíveis para estabelecer o liame subjetivo entre a vontade e o resultado. O agente que atuava com consciência e vontade na realização do resultado praticava o crime na modalidade dolosa. O elemento intelectivo do dolo era a consciência, que significa a representação do resultado. Não tem a ver com a consciência da ilicitude, rejeitada pela teoria por ser um elemento normativo. O elemento volitivo do dolo era a vontade. A culpa stricto sensu ocorria quando o agente tinha previsto ou era possível prever a produção do resultado, mas não adotou a cautela adequada (MACHADO, 2010).

Definindo a teoria psicológica da culpabilidade, Jürgen Bauman (1973, p. 206) explica que

según el concepto psicológico de la culpabilidad, que antes predominaba, la culpabilidad era la relación psicológica entre el autor y su hecho. En consecuencia, la culpabilidad era algo que sólo existía en el autor y que, además, se agotaba en una relación interna frente a la acción. En el dolo y en la culpa se veían dos especies de culpabilidad. Ya era culpabilidad el dolo o la culpa. El dolo se caracterizaba por la voluntad de resultado de parte del autor y la culpa por la ausencia de esta voluntad.

A teoria psicológica da culpabilidade não é adequada para definir a culpabilidade. Primeiramente, ao definir o dolo e a culpa como elementos da culpabilidade, incorre em um equívoco, pois eles representam duas formas antagônicas que integram uma mesma coisa. Dolo e culpa são os opostos e consistem em um querer e não querer, respectivamente. Isso impossibilitou a criação de um conceito superior de culpabilidade capaz de abrangê-los. Nesse sentido, argumenta Damásio de Jesus (2014, p. 468) que

o erro dessa doutrina consiste em reunir como espécies fenômenos completamente diferentes: dolo e culpa. Se o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa, pelo não querer, conceitos positivo e negativo, não podem ser espécies de um denominador comum, qual seja, a culpabilidade. Não se pode dizer que entre ambos o ponto de identidade seja a relação psíquica entre o autor e o resultado, uma vez que na culpa não há esse liame, salvo a culpa consciente. A culpa é exclusivamente normativa, baseada no juízo que o magistrado faz a respeito da possibilidade de antevisão do resultado. Ora, como é que um conceito normativo (culpa) e um conceito psíquico (dolo) podem ser espécies de um denominador comum? Diante disso, essa doutrina encontrou total fracasso.

A teoria também apresenta dificuldade de explicar a culpabilidade pela prática de um crime omissivo, pois essa modalidade de conduta não representa, no plano objetivo- externo, um fenômeno causal. Por fim, outro problema são as causas de exculpação, em que o agente quer praticar a conduta, está presente o nexo psicológico entre autor e resultado, mas não há culpabilidade. Aquele que atuasse com dolo em situação de coação moral irresistível poderia ser condenado, posto que não há uma análise valorativa sobre a conduta típica e a antijurídica. A única forma de explicar essa situação satisfatoriamente seria deixar de entender a culpabilidade como vínculo psicológico (BITENCOURT, 2013a).