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O princípio da intervenção mínima foi desenvolvido no período iluminista, para combater o Estado absolutista. O direito penal era um instrumento de controle social exercido de forma arbitrária pelo soberano. A limitação do jus puniendi do Estado era necessária e já se reclamava do excessivo número de tipos penais (BATISTA, 2007). Em sua obra “Dos delitos e das penas”, Cesare Bonasena (2001, p. 99) expõe sua crítica contrária à política penal da época, dispondo que

se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes, não tendo tais atos nada de nocivo, não se previnem os crimes: ao contrário, faz-se que surjam novos, porque mudam arbitrariamente as ideias ordinárias de vício e virtude, que antes se proclamam eternas e imutáveis.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, positivou o princípio da intervenção mínima em seu artigo 8º, ao exigir que somente fossem punidas as condutas estritamente necessárias. A lesão a um determinado bem jurídico não é suficiente para criminalizar uma conduta; é necessário que esta seja intolerável pela sociedade. O direito penal deve se limitar a poucas condutas, especialmente graves (HASSEMER, 2003), devendo ser utilizado como último instrumento necessário para o controle social. A excepcionalidade do direito penal fortalece o seu conteúdo e sua importância no âmbito social.

A liberdade é um direito fundamental reconhecido no período iluminista. O contrato social foi estabelecido a partir da cessão da mínima parte da liberdade do cidadão, para que ele pudesse desfrutar da liberdade em sociedade. Desse modo, a incriminação excessiva de condutas, muitas desnecessárias, restringe esse direito fundamental. Somente será legítima a criação de tipos penais quando estritamente necessária para o convívio em sociedade, a fim de que ela seja livre e justa. Ao longo da história do direito penal, é possível extrair que a criação excessiva de tipos penais e o endurecimento da pena não são mecanismos eficientes para a prevenção de crimes. A relação entre eficiência e custo social indica a restrição do direito penal ao mínimo necessário, pois outros ramos do direito, por exemplo, o direito civil e o administrativo, são capazes e, por vezes, mais eficientes na função de prevenção e proteção social. Sempre que existir outro meio menos oneroso e com capacidade similar de prevenção, o legislador deverá abdicar do direito penal (SÁNCHEZ, 2010).

O princípio da intervenção mínima não está disposto de maneira expressa na Constituição Federal. Atualmente, ele decorre da análise sistemática do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos e garantias fundamentais, principalmente, o direito à liberdade, considerada inviolável, segundo o artigo 5º do referido diploma. Além disso, decorre da própria ideia de Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus pilares o princípio da proporcionalidade, que, além de impedir a proteção deficiente a bens jurídicos relevantes, proíbe o excesso (ROXIN, 1997).

A liberdade individual está exposta na Constituição Federal de várias formas e o princípio da intervenção mínima busca assegurar o seu exercício ao limitar o jus

puniendi a um núcleo restrito de ameaças e lesões a certos bens jurídicos. Desse

princípio, desdobram-se dois postulados orientadores do direito penal: o postulado da subsidiariedade e o da fragmentariedade.

2.3.1 Princípio da subsidiariedade

A ideia de subsidiariedade no direito penal teve início com Binding, em sua obra “Tratado de direito penal alemão: parte especial” (1896). Assinalava o autor que, diferentemente do direito civil, que corresponde a um sistema contínuo, o direito penal representa um sistema descontínuo de ilícitos, pois não busca proteger todos os bens jurídicos existentes. Em virtude de sua sanção ser a mais gravosa à sociedade – perda da liberdade – sua utilização deve ser considerada somente quando outros âmbitos do direito, menos gravosos, não forem suficientes para tutelar um determinado bem jurídico de grande relevância social. Por isso, diz-se que o direito penal é subsidiário, ou seja, sua utilização será legítima apenas quando outro meio não for capaz de realizar a tutela. Nesse sentido, expõe Claus Roxin (1997, p. 65) que

el Derecho penal sólo es incluso la última de entre todas las medidas protectoras que hay que considerar, es decir que sólo se le puede hacer intervenir cuando fallen otros medios de solución social del problema — como la acción civil, las regulaciones de policía o jurídico técnicas, las sanciones no penales, etc. Por ello se denomina a la pena como la "ultima ratio de la política social" y se define su misión como protección subsidiaria de bienes jurídicos.

O princípio exposto corresponde a um mandamento ao legislador, que deverá, antes de se valer do direito penal, buscar outros mecanismos de composição social. O

direito penal não é o único meio eficaz de proteção a bens jurídicos. Somente com o fracasso das demais áreas do direito é que seria possível a sua utilização. A ameaça e imposição de pena deliberada pelo direito penal inviabiliza a ideia de uma sociedade livre e obstaculiza o seu desenvolvimento (PUIG, 2003). Estudos e dados empíricos são importantes para verificar se outros ramos do direito seriam capazes de desempenhar uma prevenção igual ou melhor que a exercida pelo direito penal para determinadas condutas. A subsidiariedade fortalece o direito penal, estabelece uma relação de confiança entre Estado e sociedade, permite a certeza de punição e garante a prevenção de crimes.

A realidade social demonstra que o direito penal está caminhando em sentindo contrário ao exposto e defendido neste trabalho. Diante dos novos conflitos sociais e das novas áreas de interesse, a sociedade e o Estado têm exigido do direito penal uma resposta que por vezes esse ramo do Direito não é capaz de satisfazer. São contextos estranhos ao direito penal, em que o legislador utiliza-o com a finalidade de prevenir condutas, sem verificar sua capacidade para tutelá-los. Isso é perceptível na quantidade de crimes existentes no direito ambiental e econômico. A consequência é o surgimento de um direito penal (moderno) repressivo, caracterizado pelo excessivo número de condutas criminalizadas, pelo aumento e desproporcionalidade das penas em abstrato e pela presença de um direito penal simbólico. O simbolismo no direito penal representa uma fórmula de “resolver” um problema social de forma rápida. Cria-se uma norma penal incriminadora para inibir determinadas condutas. Entretanto, na prática, sua efetividade é nula. Essa tendência inibe a resolução do conflito e o desenvolvimento de políticas públicas (BARATTA, 2004). A respeito do tema, Hassemer (2003. p. 65) destaca que

las experiencias con los "déficit de ejecución" del derecho penal moderno, y con el "derecho penal simbólico" enseñan que el agravamiento del instrumental del derecho penal (more of the sume) no siempre mejoran su idoneidad para la solución de los problemas; esto puede originarse en que la subsidiariedad del derecho penal en relación con otras estrategias de solución jurídicas, o en su caso, estatales o sociales, no es solamente un principio normativo, sino que, además, está bien fundamentado empíricamente: los medios del derecho penal sirven solamente para algunas pocas situaciones problemáticas.

A subsidiariedade do direito penal é um instrumento importante para deslegitimar sua utilização abusiva, fortalecendo seu núcleo central, para que exista uma relação de confiança entre o Estado e o cidadão.

2.3.2 Princípio da fragmentariedade

Assim como os demais ramos do direito, o direito penal está vinculado à proteção de bens jurídicos, competindo a ele a última parte da função estatal de controle social. No âmbito do sistema jurídico, apenas uma pequena porção compete à tutela do direito penal. Trata-se dos bens jurídicos mais importantes, de maior relevância social, cuja violência ou ameaça são intoleráveis pela sociedade. A restrição a esses bens permite que o direito penal mantenha sua força intimidadora, imponência e legitimidade no âmbito social (LUISI, 2003).

A respeito do tema, Munhoz Conde (2001, p. 124) dispõe:

pero no todas las acciones que atacan bienes jurídicos son prohibidas por el derecho penal, ni tampoco todos los bienes jurídicos son protegidos por él. El derecho penal, lo repito una vez más, se limita sólo a castigar las acciones más graves contra los bienes jurídicos más importantes, de ahí s u carácter "fragmentario" pues de toda la gama de acciones prohibidas y bienes jurídicos protegidos por el ordenamiento jurídico, el derecho penal sólo se ocupa de una parte – fragmentos – si bien la de mayor importancia.

Toda norma penal deve tutelar um bem jurídico, fato que, por si só, limita a atividade punitiva do Estado. Entretanto, a eleição de um bem jurídico não é suficiente para a criação de um tipo penal, pois a este compete apenas a tutela de um fragmento dos bens jurídicos tutelados pelo direito. Para que a criação da norma penal seja legítima, é indispensável que o bem jurídico seja relevante para o desenvolvimento e convívio social. Assim, o princípio da fragmetariedade exerce um juízo crítico capaz de deslegitimar normas penais que não são essenciais à sociedade, aumentando a margem do exercício da liberdade individual. A fim de delimitar o caráter fragmentário do direito penal, Munhoz Conde (2001, p. 124-125) define que

este carácter fragmentario del derecho penal aparece en una triple forma en las actuales legislaciones penales: en primer lugar, defendiendo el bien jurídico sólo contra ataques de especial gravedad, exigiendo determinadas intenciones y tendencias, excluyendo la punibilidade de la comisión imprudente en algunos casos, etc; en segundo lugar, tipificando sólo una parte de lo que en las demás ramas del ordenamiento jurídico se estima como antijurídico; y, por último, dejando en principio, sin castigo las acciones meramente inmorales, como la homosexualidad o la mentira.

O bem jurídico, para ser tutelado pelo direito penal, deve conter um valor social considerável e sua efetiva proteção deve depender indispensavelmente dos instrumentos deste, que devem se apresentar como capazes de realizá-la.