• Nenhum resultado encontrado

A concepção psicologista da lógica

No documento FREGE E A TEORIA DA VERDADE COMO IDENTIDADE (páginas 67-70)

2.2 Parte negativa: crítica a concepção idealista

2.2.1 A concepção psicologista da lógica

Hans Sluga (1980), em Gottlob Frege, defende que o psicologismo foi um produto do chamado naturalismo, posição filosófica que surgiu como uma opção frente ao idealismo alemão que estava em estado de decadência. Com a morte de Hegel, o clima filosófico na Alemanha no século XIX sofreu uma grande mudança. A filosofia idealista, que buscava uma espécie de unidade do conhecimento, entrou em colapso, devido a uma série de fatores, dando lugar a novas perspectivas, tanto filosóficas, como científicas. O idealismo, de acordo com Sluga (1980, p. 14), foi substituído pelo materialismo, o racionalismo (raciocínio a priori) pelo empirismo e a filosofia como um atividade intelectual separada por uma ideologia, onde tal filosofia emergiu e desapareceu dentro das ciências naturais. Isso pode ser concebido, em linhas gerais, como o naturalismo científico.

Para Sluga (1980), o pensamento de Frege foi concebido como oposição a este naturalismo científico e não contra um hegelianismo ou idealismo dominante, como teria defendido Dummett (1973). “Frege não estava preocupado nem com a formulação de uma filosofia anti-idealista, nem com uma defesa do realismo” (SLUGA, 1980, p. 15)63.

De qualquer maneira, o naturalismo se propunha a atacar algumas teses centrais do idealismo objetivo hegeliano e da metafísica especulativa de um modo geral. Tinha um fundo materialista e empirista e procurava, a partir disso, uma espécie de naturalização dos fenômenos espirituais. Algumas teses polêmicas do naturalismo e que deram origem ao psicologismo dizem respeito à relação entre lógica e psicologia. Segundo os naturalistas, a lógica trata das leis concernentes ao pensamento e, uma vez que o pensamento é algo psicológico, referente à psicologia, a lógica, portanto, nada mais é do que um ramo, um desdobramento da psicologia.

Por ter fortes raízes empíricas, o naturalismo defendia, por exemplo, que ‘conceitos’ são reflexões do que foi percebido, da atividade sensorial; ‘conceitos matemáticos’, por sua vez, não teriam uma origem a priori, mas seriam originados na experiência. Similarmente, ‘leis do pensamento’ seriam idênticas às leis mecânicas

63

Tal critica, entretanto, foi rebatida por Dummett (1981, p. 72), o qual se defende afirmando que ele não pretendia se referir, ao falar em idealismo, ao idealismo hegeliano, mas sim a uma orientação geral.

da natureza externa e as próprias ‘leis lógicas’ nada mais seriam do que generalizações empíricas, concernentes à atividade mental humana. Essa atividade deveria ser interpretada em conceitos psicológicos, ou seja, tomando uma postura psicologista da lógica. Consequentemente, o raciocínio humano deveria ser todo baseado na indução. “Não há espaço para verdades e conceitos a priori... É a indução que leva de verdades acidentais às, assim chamadas, verdades necessárias da razão” (SLUGA, 1980, p.19).

Mario González Porta (2000), fazendo uma vinculação entre o anti- psicologismo de Frege com a fenomenologia, vai mais além do que Sluga (1980) na caracterização do psicologismo. Segundo Porta (2000, p. 87), não existe ‘o psicologismo’, o que existe, na verdade, são ‘psicologismos’. Em todo caso, as diversas facetas do psicologismo ou diversos psicologismos compartilham certo núcleo comum. Esse núcleo comum encontra-se, principalmente, no fato de não se levar em conta a distinção entre objetivo e subjetivo. A posição psicologista deriva de uma redução do objetivo ao subjetivo e a consequência última disso, como Frege teria defendido nas Grundgesetze, é o solipsismo, o idealismo ou, por fim, o ceticismo. O psicologismo, segundo Porta (2000), seria incapaz de aceitar a existência de algo que fosse ‘objetivo e não real’, ou seja, algo que estivesse numa espécie de terceiro reino fregeano. Ele aceita apenas a existência de algo ‘real objetivo’ ou ‘real subjetivo’. Assim, as coisas e os significados se encontram ou na realidade externa ou devem possuir algum tipo de realidade “interna”. Números, significados e similares são entidades psíquicas.

Nessa linha de pensamento, Porta (2000, p. 90) defende que o psicologismo, sem dúvida, é uma doutrina ontológica, pois ele aceita a existência de certo tipo de entidades ou as reduz a outras. É exatamente isso que acontece com a lógica. Para Porta (2000, p. 90), o psicologismo lógico procede da seguinte maneira: 1º. reduz a lógica à psicologia; 2º. reduz as leis lógicas a leis psicológicas, por meio da redução do significado a representação; e 3º. reduz o psíquico à representação, ao reduzir o objetivo ao real. Assim sendo, as teses psicologistas não são teses baseadas, fundamentalmente, em uma confusão referente ao uso ambíguo de certos conceitos, como o conceito de ‘lei’ ou o conceito de ‘pensamento’. O psicologismo é uma teoria positiva, entretanto uma teoria positiva falsa. “Ele nega a possibilidade da objetividade, tanto porque nega a existência de certos objetos, como porque também torna impossível nosso acesso aos mesmos” (PORTA, 2000, p. 90).

Influenciado diretamente por Frege, Husserl (1999), nas Investigações Lógicas I, também realizará um trabalho minucioso de caracterização e refutação do psicologismo. Se em Frege não podemos encontrar uma obra onde são explicitadas mais detalhadamente as teses contra o psicologismo – temos grande quantidade de alusões na maioria de seus textos, mas não um livro ou um estudo mais aprofundado e sistemático sobre a questão – em Husserl, nos capítulos iniciais das Investigações Lógicas, podemos encontrar um estudo intenso sobre a lógica psicologista, no qual são apresentadas suas ideias centrais, os seus argumentos, as suas falhas e, por fim, a sua refutação.

Segundo o psicologismo, na reconstrução de Husserl (1999, p. 67), os fundamentos teóricos essenciais da lógica residem na esfera da psicologia. As proposições e regras que dão característica à lógica pertenceriam, portanto, a esta outra ciência mais fundamental. A lógica teria uma relação de subordinação com respeito à psicologia do mesmo modo que a aritmética tem com a matemática.

Uma das razões que levam a essa posição é baseada no uso comum que se faz de certos termos tanto na lógica como na psicologia. A lógica normalmente é definida como a ciência que trata dos processos de julgar, raciocinar, conhecer, pensar corretamente. Na literatura lógica é muito comum o aparecimento desses conceitos e o problema oriundo disso é que os psicologistas fundam suas raízes sobre os mesmos conceitos que os das leis lógicas. Temos assim, como ponto de partida, uma confusão conceitual, mesmo que o verdadeiro problema, evidentemente, não seja este.

Se tomarmos como base a ideia de que a psicologia estuda o pensamento como ele é e a lógica, o pensamento como deveria ser, podemos notar que a redução da lógica à psicologia contém certos passos problemáticos. Na análise de Husserl, seguindo uma postura kantiana, a psicologia, por ser uma ciência subjetiva e experimental, somente pode nos conduzir a leis contingentes (ao uso contingente da razão) e não a leis necessárias. Regras ou leis necessárias, aquelas que regem o pensamento toda vez que pensamos, podemos encontrar apenas na lógica. Assim, diferentemente da psicologia, a lógica possui um caráter normativo, procura encontrar as conexões ideais do pensamento, as leis de como devemos pensar.

No entanto, os psicologistas reduzem as leis do pensamento, em sentido lógico (dever ser), às leis do pensamento como ele é. Para a psicologia, o pensamento como deve ser é um caso especial do pensamento como ele é. Surge

assim outra confusão, proveniente da distinta concepção de lei do pensamento. A psicologia, segundo Husserl, estuda as conexões causais dos processos de consciência. Diferentemente ocorre na lógica. Ela não pergunta pela origem e consequências causais das nossas operações intelectuais, mas pela verdade do seu conteúdo. À lógica interessa aquilo que faz com que os juízos sejam verdadeiros ou falsos. A lógica preocupa-se com algo que é totalmente distinto da psicologia. Temos, assim, na relação entre lógica e psicologia, confusões provenientes do uso ambíguo de certos conceitos, mas, principalmente, pelo tratamento e definição de certas noções e pelo posicionamento ontológico, como afirma Porta (2000), frente a certas entidades.

Posto, de modo bastante superficial, a origem do psicologismo e de suas ideias básicas dessa maneira, cabe agora explicitar as teses sustentadas por Frege para refutá-lo. Essa refutação se dá, basicamente, a partir da objetividade das noções de verdade e sentido.

2.2.2 As noções de verdade e sentido como fundamento da crítica ao

No documento FREGE E A TEORIA DA VERDADE COMO IDENTIDADE (páginas 67-70)