• Nenhum resultado encontrado

Frege e a versão modesta da teoria da verdade como identidade

No documento FREGE E A TEORIA DA VERDADE COMO IDENTIDADE (páginas 147-150)

3 A VERSÃO FREGEANA DA TEORIA DA VERDADE COMO

4.2 A relação de Frege com as versões modesta e robusta da teoria

4.2.1 Frege e a versão modesta da teoria da verdade como identidade

Dodd (2000), após criticar as principais teses defendidas pelas teorias da verdade como correspondência, defende que proposições devem ser construídas como pensamentos fregeanos e, ao identificar fatos com pensamentos verdadeiros, postulará uma distinção entre duas versões da teoria da verdade como identidade, baseando esta distinção nas distintas concepções de fato defendidas por elas. Por um lado, teríamos uma versão robusta, na qual fatos são entendidos como estados de coisas e pensamentos verdadeiros são idênticos a eles. Por outro lado, teríamos uma versão modesta da teoria, onde fatos nada mais seriam do que sentidos fregeanos, mas igualmente idênticos a pensamentos verdadeiros. Para Dodd (2000), Frege defendeu, mesmo sem afirmar isso explicitamente, uma versão modesta da teoria da verdade como identidade.

Ainda que exista ao longo das obras de Frege muito mais sobre verdade do que apenas uma teoria da verdade como identidade, a defesa de uma versão modesta é explícita quando ele responde, em Der Gedanke, a pergunta “O que é um fato?” com a afirmação “Um fato é um pensamento que é verdadeiro” (FREGE, 1997, p. 342). A evidência, para Dodd (2000, p. 114), portanto, está em preto e branco no texto de Frege. Dodd (2000, p. 114) cita, inclusive, a seguinte passagem de Dummett (1973, p. 442)111, que auxilia na sua interpretação de Frege como um defensor da versão modesta.

Fatos, na ontologia de Frege, não são constituintes da realidade, do reino da Bedeutung, ao lado de objetos, valores de verdade, conceitos, relações e funções. Eles são, ao invés, identificados com pensamentos verdadeiros. ‘É um fato que Hannibal cruzou os Alpes’ é simplesmente outro modo de dizer ‘O pensamento que Hannibal cruzou os Alpes é verdadeiro’. Fatos, como pensamentos verdadeiros, assim pertencem não ao reino da referência, mas àquele do sentido. Portanto, não podemos dizer que um pensamento é verdadeiro somente no caso dele corresponder com um fato: se ele é verdadeiro, então ele é um fato, e não existem duas coisas entre as quais uma comparação pode ser feita com o intuito de descobrir se eles correspondem.

111

Estou assumindo uma interpretação realista de Bedeutung, pois como discutido no capitulo anterior há mais evidências para defender essa posição do que a oposta.

A teoria da correspondência busca definir verdade por meio de uma relação entre algo pertencente a um âmbito linguístico e algo na realidade. Como na concepção fregeana, por meio do argumento do regresso, verdade não pode ser definida, e como Frege toma fatos como pertencentes a um terceiro reino, constituídos por sentidos, a atribuição da versão modesta da teoria da verdade como identidade a Frege parece ser correta, segundo Dodd (2000, p. 115). A concepção fregeana de fato impossibilita qualquer teoria da correspondência, pois fatos não seriam fazedores de verdade, mas idênticos a pensamentos verdadeiros.

Porém, evidentemente, existem discussões no que tange à atribuição da versão modesta da teoria a Frege. Baldwin (1991), como já citado, é um que não compartilhará da posição de Dodd. Para ele, Frege rejeitou a teoria da identidade por tomá-la como um gênero de teoria da correspondência. Dodd (2000, p. 115), por sua vez, pensará que Baldwin (1991) apenas levou em conta uma versão robusta. A versão modesta não é uma teoria da correspondência e, portanto, não cai sob o escopo do argumento de Frege para rejeitá-las112. A posterior identificação entre fatos e pensamentos verdadeiros justificaria isso.

Além da objeção de Baldwin (1991), ainda haveria duas preocupações a serem resolvidas a fim de atribuir a Frege a versão modesta da teoria da verdade como identidade. A primeira é que Frege nunca se apresentou como um defensor da teoria. A segunda é que ‘verdadeiro’, para Frege, não é um termo relativo e isto poderia sugerir que ele seria contrário ao uso da relação de identidade para explicar a noção de verdade.

Sobre o primeiro ponto, Dodd (2000, p. 118) reconhece que Frege, ao afirmar que fatos são idênticos a pensamentos verdadeiros, certamente não tem em mente que isso fosse uma teoria da verdade. Para Dodd (2000, p. 118), uma teoria da verdade, nos moldes que Frege poderia pensar, seria reservada a algo que procurasse dar uma definição, redução ou explicação do que é verdade. Uma versão modesta da teoria da verdade como identidade não tem estas aspirações e, consequentemente, não é uma teoria da verdade nestes moldes.

O segundo ponto retoma a discussão do final da última seção onde foi dito que a visão fregeana sobre verdade possui duas características que se destacam:

112

Contudo, Dodd (2000, p. 116) afirmará que é preciso distinguir entre o argumento de Frege contra as teorias da correspondência e sua posição frente a elas. O argumento para Dodd (2000, p. 116) é fraco e incapaz de refutá-las. A posição de Frege, por outro lado, tem seu mérito.

verdade como um conceito sui generis e indefinível (resultado do argumento do regresso) e a transparência do predicado ‘é verdadeiro’. A questão aqui é se essas duas características são compatíveis com a versão modesta da teoria da verdade como identidade. As possíveis dificuldades para torná-las compatíveis foram parcialmente respondidas na seção anterior, principalmente com respeito à primeira característica. Recapitulando-a, a teoria da verdade como identidade, neste caso a versão modesta, não busca definir verdade, assim é totalmente compatível com a tese de que “verdade é, obviamente, algo tão primitivo e simples que não é possível reduzi-la a algo ainda mais simples” (FREGE, 1997, p. 228). Mas, mesmo que verdade seja um conceito primitivo, é possível dizer algo de interessante sobre ele. Um exemplo disso pode ser explicar as relações que ele tem com outros conceitos.

Por outro lado, a segunda característica merece uma elucidação mais detalhada. Como Frege (1979, p. 233, 252, 1997, p. 229, 328, etc.) irá defender em vários textos, o predicado de verdade não faz uma contribuição significativa para o pensamento expresso por uma sentença (ver 2.3.2). Afirmar, por exemplo, que ‘p é verdadeiro’ é a mesma coisa que afirmar que p. Para Frege, ‘p é verdadeiro’ pode ser substituído por ‘p’, salva veritate, dentro de contextos hiperextensionais. ‘A neve é branca’ e ‘A neve é branca é verdadeiro’ têm o mesmo sentido.

Para as teorias deflacionistas, o predicado de verdade, essencialmente, não acrescenta nada nos contextos onde ele surge. “O predicado de verdade existe somente por motivo de certa necessidade lógica” (HORWICH, 1990, p. 02). Inclusive, há deflacionismos mais extremos que negarão que verdade seja substancial. Com respeito a Frege, autores como Soames (1999), Burge (1986) e Horwich (1990) afirmam que ele teria defendido uma posição deflacionista. Contudo, para Dodd (2000, p. 120), Frege não foi um deflacionista enquanto tal. Ele – Frege (1979, p. 129, 1997, p. 158, 229) – concorda com algumas teses deflacionistas, mas assume que é a forma da sentença assertiva o primeiro operador de verdade e não o predicado ‘é verdadeiro’. A verdade está afirmada internamente no juízo. O fato de o conceito de verdade ser transparente não exclui a possibilidade de verdade ser uma propriedade substancial. A tese da transparência da verdade, para Dodd (2000, p. 121), não implica que verdade seja também uma noção insubstancial, como defenderia o deflacionismo. A transparência da verdade é completamente distinta da tese deflacionista.

Assim, a teoria da verdade como identidade não conflita com a concepção deflacionista da verdade. Isto se dá porque as duas teorias/teses possuem diferentes interesses. A versão modesta da teoria da verdade como identidade tem como meta ilustrar o erro cometido pelas teorias da correspondência ao tomar fatos como fazedores de verdade. Em adição, a versão modesta não afirma que verdade necessita ser compreendida via a noção de identidade. “Um teórico da versão pode, no entanto, considerar o predicado de verdade como nada mais do que um aparelho de descitação (disquotation)” (DODD, 2000, p. 120).

Para Dodd (2000, p. 123), o predicado ‘é verdadeiro’, em Frege, é um termo monádico e tal situação poderia fazer com que alguém fosse levado a supor que o conceito de identidade, caracterizado como uma relação entre dois termos, não pudesse ser uma elucidação de verdade. Tal objeção estaria correta caso não se fizesse a distinção entre duas tarefas filosóficas, a saber, dar a forma lógica de uma sentença e dizer alguma coisa sobre o conceito expresso por um predicado. Quando Frege afirma que ‘é verdadeiro’ é um predicado monádico, segundo Dodd (2000, p. 123), ele está preocupado basicamente em dar a forma lógica das predicações de verdade. Uma versão modesta da teoria da verdade como identidade, diferentemente, está preocupada com a natureza do conceito expresso pelo predicado.

Consequentemente, nenhuma objeção à visão de Frege como um defensor da versão modesta da teoria consegue ter êxito. Assim, Dodd (2000) conclui, com base na identificação entre fatos e pensamentos verdadeiros, que ele teria defendido tal versão da teoria. Isto, contudo, como se verá agora, é discutível.

No documento FREGE E A TEORIA DA VERDADE COMO IDENTIDADE (páginas 147-150)