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Concepções de ensino-aprendizagem, linguagem e leitura

3 CONTEXTO EDUCACIONAL: A LEITURA NA VIRADA PARADGMÁTICA DOS ANOS

3.1 Concepções de ensino-aprendizagem, linguagem e leitura

No que diz respeito à esfera do ensino, a mudança se estabelecia pelo questionamento ao ensino-aprendizagem de língua materna que se fundamentava nas teorias behavioristas7, nas quais a aprendizagem se dar pela assimilação, em

que o aprendiz se constitui como uma “tábula rasa” e como ser passivo, acrítico, mero reprodutor de informação.

Contrariando a linha de pensamento behaviorista, os estudos socionteracionistas na área da educação provaram que a interação social é fator relevante para o sucesso na aprendizagem. A teoria da aprendizagem desenvolvida por Lev Vygotsky, divulgada nos documentos oficiais de orientação do ensino dessa época, anunciava que a aprendizagem é um processo social, que na interação com o meio, o aprendiz se apropria da cultura socialmente construída, através da inter- relação da criança com adulto ou da criança com um par mais avançado (VYGOTSKY, 2008). Considerando a aprendizagem um processo ininterrupto, Vygotsky acreditava que a internalização dos conhecimentos só é possível pelo processo de mediação de outro ser, por isso defendia que o aprendizado é um elemento social e histórico.

Relacionando a concepção de aprendizagem proposta por Vygotsky com ensino-aprendizagem da leitura na escola, é possível afirmar que este tem uma história prévia, já que o sujeito aprende a partir de suas vivências/ experiências com os diversos textos que circulam no cotidiano, apreendendo habilidades de leituras e até mesmo desenvolvendo hipóteses sobre o funcionamento da linguagem. São as habilidades prévias sobre leitura apreendidas no processo de interação social que serviram de subsídios para o desenvolvimento de habilidades de leitura mais complexas exigidos na escola.

No que diz respeito à concepção de linguagem, era o paradigma formalista que dominava o ensino, sendo desenvolvido pelo linguista suíço Ferdinand Saussure. Esse teórico compreendia a língua como um código linguístico, assim a leitura seria uma decifração desse código. Essa concepção perdeu força em virtude da ascensão da perspectiva de língua e linguagem baseadas nos estudos do filósofo

7 Teorias behavioristas é o conjunto de teorias da psicologia que estuda o comportamento humano.

Esses estudos apontam que as causas do comportamento humano estão sediadas no seu interior, seja em seu organismo ou em sua mente - nas memórias ou nas emoções.

russo Mikhail Bakhtin, que apresenta linguagem como fato social. Conforme se apresenta abaixo:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 2004, p. 123).

Nesse sentido, a língua não está pronta, bastando ao sujeito se apropriar para usá-la de acordo com suas necessidades específicas. Ao contrário, a língua vive e como tal é construída na interação verbal e por isso deve ser compreendida em processo real de uso em suas dimensões social, histórica e cultual, as quais permitem caracterizá-la como heterogênea, já que está sempre suscetível a mudanças. Esse caráter mutável se faz possível através da enunciação, ou seja, da construção de enunciados pelos usuários da língua que a reconstroem conforme suas necessidades e contexto do qual participam.

Para Bakhtin (2010) o enunciado é unidade real da comunicação discursiva, podendo ser oral ou escrito, proferido por participantes de uma determinada esfera da atividade humana. Dessa forma, a cada atividade discursiva ou interação entre os sujeitos, os enunciados são “novos”, não se repetem, porque é um evento único. O enunciado é compreendido a partir de interação entre os sujeitos e, nesse sentido, a comunicação se constitui como processo interdependente, estabelecendo uma interação social que se realiza através de enunciações.

Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta [...]. É impossível alguém definir sua posição sem relacioná-la com outras posições (Bakhtin, 2010, p.297).

Logo, nenhum enunciado é “neutro”, uma vez que sempre funciona como reação-resposta a outros enunciados. Os enunciados são valorados, porque portam sentidos, visões de mundo e também porque refletem a avaliação social que é construída socialmente. A partir desse plano de responsividade inerente aos

enunciados se compreende o sentido do termo dialogismo presente nos estudos Bakhtinianos.

Pode se dizer que o termo dialogismo é utilizado para se referir à constante comunicação entre os sujeitos, cujo processo nunca é vazio nem isolado, porque os sujeitos compartilham experiências e conhecimentos através dos enunciados proferidos, os quais são sempre inseridos em um determinado campo histórico e social.

Nesse sentido, é importante compreender que os sujeitos não são somente interlocutores mediatos, mas que, no ato discursivo, se projetam a partir de discursos variados (passados, atuais, presumidos) e afirmam suas posições sociais, opiniões e ideologias. Essas vozes discursivas que marcam a posição do sujeito, o lugar onde se processa o enunciado, a história do sujeito, entre outros, se instalam no evento comunicativo contribuindo para o discurso em construção.

Por isso, nesse processo dialógico, os sujeitos não são passivos, mas interagentes que assumem caráter responsivo e ativo da linguagem. Pois, até mesmo o “ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso ocupa, simultaneamente, em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discordando dele (total ou parcialmente)” (BAKHTIN, 2010, p. 271). O dialogismo bakhtiniano rompe com a noção de sujeito “assujeitado” pelo sistema, idealizado nos estudos saussureanos, submetido ao ambiente social e histórico, uma vez que os sujeitos são produtores de sentido.

Nessa perspectiva, o processo de compartilhar informações entre os sujeitos possibilita a construção de sentidos diversos ou ilimitados projetados como efeito da interação verbal. Por esse motivo, o sujeito e os sentidos são construídos discursivamente no contexto da interação verbal, conforme afirmou Bakhtin (1997, p. 106):

o sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. Há tantas significações possíveis quanto contextos possíveis. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser uma. Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir. (BAKHTIN, 1997, p. 106).

A abordagem bakhtiniana sobre linguagem trouxe contribuições bastante significativas para o ensino e aprendizagem de língua materna, especialmente

porque fez do uso da linguagem o objeto privilegiado do ensino, em lugar da análise estrutural da frase, e assim mudou o entendimento de texto, leitor e leitura.

Em Bakhtin, conforme revelou Rodrigues (2005), acerca do entendimento de texto pelo pensador russo, o texto é apresentado como sinônimo de enunciado, o qual é manifestado somente na situação social e em conexão com outros textos construídos a partir da relação dialógica. Desse modo, o texto reproduz a história do homem, pois nele se projetam suas ideias e sentimentos, sendo “a realidade imediata para o estudo do homem social e da sua linguagem” (RODRIGUES, 2005, p. 158).

A partir dessas noções referentes à compreensão de língua e linguagem proposta por Bakhtin, a leitura passa a ser compreendida como uma prática discursiva entre texto e leitor. O leitor atribui sentido ao que ler, e ao compreender que o texto é um o todo coerente formado pela união dos elementos de ordem linguística com os aspectos de ordem do discurso, ele pode refletir sobre o texto, criticar suas ideias e saber como deve utilizá-lo em sua vida (SOUZA-E-SILVA, 2012).

A materialidade linguística entendida por Bakhtin são os elementos da estrutura física do texto como os elementos coesivos, em síntese, as frases que formam o texto, já os elementos do discurso são as ideias, ou seja, a parte ideológica do texto, conforme reforça Souza e Silva (2012) a partir das ideias de Bakhtin. Neste sentido, a leitura:

[...] não é apenas como uma questão de texto, cuja descrição e interpretação está na dependência de diferentes competências (a linguística, a genérica e a enciclopédia), mas como uma questão de sentidos depreendidos na confluência dos campos discursivos e nos espaços discursivos que um texto partilha com outros textos (SOUZA-E- SILVA, 2012, p. 193).

Nesta perspectiva, no processo de interação entre texto e leitor, a compreensão do discurso/texto lido se caracteriza como responsiva e ativa:

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...] toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor. (BAKHTIN, 2010, p. 290).

Assim sendo, o leitor jamais é passivo diante de um texto, e o ato da leitura só é possível porque o leitor está atento às ideias que são proferidas pelo autor do texto, seja para concordar ou discordar com os conceitos, valores ou com posicionamentos sobre o mundo afirmados pelo autor, ou seja, na leitura de um texto está intrínseco o estabelecimento de diálogos com os discursos, pois “a compreensão é uma forma de dialogar (...) compreender é opor a palavra do locutor a outra palavra” (BAKHTIN, 2004, p. 131-132). O que torna possível afirmar a partir dessa noção que o leitor se apropria dos conhecimentos que o autor lhe passa via texto e os une as suas experiências sobre o mundo, convertendo-as em novos discursos ou em novos saberes. Nesse sentido, a leitura se constrói a partir de uma relação dialógica entre o autor e o leitor, na qual se inter-relacionam vários discursos.

O que implica dizer que os textos foram construídos a fim de estabelecer um diálogo com o leitor, no sentido de exigir uma ação-resposta ao que lhe é comunicado. Entretanto, conforme teorizou Bakhtin (2004), nem sempre a responsividade do leitor às ideias que são discutidas pelo autor se dar do mesmo modo.

É claro que nem sempre ocorre imediatamente a seguinte resposta em voz alta do enunciado logo depois de pronunciado: a compreensão ativamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na ação (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execução), pode permanecer de quando em quando como compreensão responsiva silenciosa (…), mas isto, por assim dizer, é uma compreensão responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte (…) Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido (Bakhtin, 2010, p. 272).

Conforme as ideias do autor, existem a compreensão responsiva imediata e a compreensão responsiva retardada do texto. Na compreensão responsiva imediata, o leitor responde prontamente ao autor; ou seja, compreende rapidamente as ideias suscitadas pelo autor do texto, e facilmente constrói novos saberes; enquanto que na compreensão de efeito retardado, a construção de um novo saber, a partir das ideias do autor, não ocorre de forma imediata, uma vez que o leitor necessita de mais tempo para responder ao que foi lido, ou seja, para estabelecer compreensão.

A partir dessas noções, é possível afirmar que na atividade de leitura, o nível de responsabilidade que se forma ao longo da compreensão de um discurso/texto é bastante diverso. O leitor pode não se sentir motivado pela leitura e desistir de continuar lendo e assim interromper o diálogo com o autor, como também pode se interessar tanto pelo diálogo estabelecido e assumir uma postura responsiva ativa imediata, ao ponto de estender questionamentos para além do que está escrito, o que possibilita a formação de um leitor mais atento às informações do texto.

Conceber a leitura a partir desta visão muda significativamente a forma de ensino da leitura. A leitura compreendida como um ato de se colocar em relação um discurso com vários outros discursos pressupõe a existência de sujeitos históricos que dialogam: autores e leitores situados social e historicamente em determinado contexto, o que significa dizer que a informação não está pronta no texto, o leitor inicia a construção de sentido do texto desde a ativação de conhecimentos prévios acerca do que é discutido no texto, levanta hipóteses e até mesmo estabelece o confronto de opiniões.

O entendimento de leitura, a partir de Bakhtin, pressupõe sempre a existência do outro, um outro que escreve. Então, há sempre um componente social no ato de ler, ler-se para se conectar com o outro que escreve o texto, para saber o que ele quis dizer, por exemplo, para descobrir qual sua opinião sobre o mundo, sobre as pessoas. Assim, na atividade de leitura, os leitores precisam saber outros conhecimentos além do assunto lido como: quem fala no texto? Quais são as intenções do autor? Para quem fala? Em que contexto? Qual gênero do discurso o texto foi escrito?